A teoria. Era bem conhecida a teoria de Rui Rio para chegar ao poder, que muitas vezes o líder social-democrata explicitou: não são as oposições que ganham eleições, antes de tudo são os governos que as perdem. Só depois dos governos perderem o apoio do eleitorado é que a oposição pode ambicionar triunfar. Foi isto que Rio disse sempre, e foi o que Rio apostou que aconteceria no domingo passado. Enganou-se redondamente, mas o problema é mais grave do que isso: não só o Governo não perdeu, como o maior partido da oposição lhe ofereceu uma maioria absoluta. Esta é a maior responsabilidade de Rui Rio, e é a herança mais pesada que deixa ao fim de quatro anos de liderança do PSD: é corresponsável por uma maioria absoluta que nem o PS acreditou que poderia alcançar.
A resiliência do PS. Vamos por partes: Rio enganou-se de forma clamorosa no primeiro pressuposto. O apoio ao PS não estava a diminuir, nem Costa se encaminhava para perder o poder. Basta olhar para mais de dois anos de sondagens. Sim, eu sei que elas valem o que valem, e que também se enganam. Mas o PS manteve-se sempre com intenções de voto ao nível ou acima do resultado que conseguiu nas legislativas de 2019. Apesar do stress da pandemia, dos erros de avaliação sobre a covid, da mortalidade excessiva, do quase colapso do SNS nalguns momentos, apesar da crise económica que atingiu o país e da angústia social que é evidente, apesar de um Governo desgastado com membros que deviam ter recebido ordem de marcha há muito - apesar de tudo isso, todas as sondagens indicavam a continuação de um forte apoio ao PS e a Costa, olhado pela maioria dos eleitores como o melhor primeiro-ministro. E mesmo quando as sondagens, em plena campanha, indicavam um empate técnico, o PS estava em regra à frente, Costa continuava a ser o preferido para chefiar o Governo, e a esmagadora maioria dos inquiridos apostava que a vitória seria do PS.
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Realidade e ficção. Não é provável que todas as sondagens estivessem enganadas o tempo todo, ao longo de dois anos. Que se tivessem enganado na inclinação de voto, na preferência para primeiro-ministro e na expectativa de quem venceria. Ou que tenham, todas, sido “manipuladas”. Nem na cabeça conspirativa de Rui Rio isso faria sentido. Rio terá acreditado mesmo que as sondagens estavam todas mal? Se sim, o equívoco de o colocar à frente do PSD foi ainda maior do que se poderia imaginar. Mesmo nas eleições autárquicas, a erosão do apoio ao PS não chegou para beliscar uma vitória clara dos socialistas. Quem leu nessa vitória do PS - com mais câmaras, mais juntas de freguesia, mais mandatos e mais votos - uma derrota do PS, confundiu realidade com ficção.
O empurrão do PSD. No sistema português, há duas condições para que um partido alcance uma maioria absoluta: o resultado do partido mais votado e a distância em relação ao segundo partido. Quanto maior a distância entre o primeiro e o segundo, maior a probabilidade de o partido mais votado conseguir a maioria absoluta dos votos. É uma consequência do método de Hondt, a fórmula de conversão de votos em mandatos adotada em Portugal e em boa parte das democracias europeias. Nunca houve em Portugal uma maioria absoluta com uma percentagem tão magra de votos como a que o PS acaba de alcançar. Com 41,7%, o PS conseguiu 117 deputados (e chegará provavelmente aos 119 quando se contarem os votos da emigração). A principal explicação? O péssimo resultado do PSD, que ficou a mais de 10 pontos percentuais dos socialistas - em rigor, quase 13 pontos atrás. Não foi só o PS que não perdeu, foi também o maior partido da oposição que lhe deu um brinde.
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Basta fazer a comparação com os anos em que o PS esteve à beira da maioria absoluta. Em 1995, António Guterres teve 43,7%, mas apenas 112 deputados - o PSD ficou “apenas” 9,6 pontos atrás, e com isso desperdiçou menos votos. Outro “pormenor”: em 1995 e em 1999, o PSD ficou acima dos 30%, fasquia essencial para o segundo partido reduzir as hipóteses do vencedor chegar à maioria absoluta. A combinação de fatores é mais complexa do que apenas uma ou duas razões, e também tem a ver com a maior ou menor dispersão de votos por outros partidos. Mas há algo que a história da nossa democracia nos demonstra: nunca houve maioria absoluta quando o segundo partido ficou acima dos 30%. Ao invés, nas duas maiorias absolutas de Cavaco, na única de Sócrates e na que Costa acaba de conseguir, houve a combinação fatal: mais de dez pontos de vantagem do vencedor, e o segundo partido abaixo dos 30%. Em 1999, Guterres só cumpriu uma dessas condições: cresceu até aos 44%, e até ficou 11,7 pontos percentuais à frente do PSD, mas os sociais-democratas chegaram aos 32,2%. Guterres ficou a um deputado da maioria absoluta.
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Conclusão: não basta que os governos percam, também é preciso que a oposição ganhe qualquer coisinha. O bom resultado do PS é mérito de Costa; a maioria absoluta é demérito de Rio.
Simples. Na noite eleitoral, Rui Rio perdeu uma boa oportunidade para ser direto e consequente, sem politiquices, como gosta de dizer que é. Bastava anunciar a sua demissão e abrir o processo de sucessão interna. Em vez disso, foi abstruso e sinuoso, como costuma ser. Podia ter encerrado de vez a sua liderança do PSD, vergado por mais uma derrota pesada, bastando para isso ler os números e a encruzilhada em que enfiou o PSD. Podia ter feito o que fez Francisco Rodrigues dos Santos, sem alimentar novelas, especulações e cálculos de 25ª hora. Rodrigues dos Santos foi direto, foi digno na hora da derrota, e foi exemplar. Sem dramas, pôs fim ao que não podia arrastar-se. E, sim, é estranho ter-se chegado a um ponto em que Chicão possa ser apontado como um exemplo do que quer que seja.
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Limbo. A declaração de Rui Rio na noite eleitoral - “Se houver maioria absoluta, sinceramente não estou a ver como é que posso ser útil neste enquadramento” - abre a porta a uma demissão, mas não é uma demissão. Rio acrescentou que “o partido decidirá”, abrindo a possibilidade de poder decidir mantê-lo. E foi mais longe: “Eu não consigo argumentar como é que posso ser útil ao partido havendo 4 anos de maioria absoluta. Só se alguém argumentar…” Sem o dizer, Rio lançou a hipótese de “alguém” argumentar a favor da sua continuidade. Em quase 30 anos de jornalismo político, já vi muitas vezes este comportamento pela parte de líderes na corda bamba, que tentaram ganhar tempo a ver se uma “vaga de fundo” lhes salva a liderança. Rio lançou esse isco. Resta saber se alguém o morde.
O povo que estava na sala onde Rio discursou parecia convencido de que ele tinha condições para ficar. Isabel Meireles, que muita gente pode nunca ter dado conta, mas é vice-presidente do PSD, disse, preto no branco, na RTP, que “Rui Rio foi reconduzido de maneira expressiva nesta liderança [nas diretas de novembro], não há de modo nenhum razão para que ele saia, antes pelo contrário”. Mas ontem à noite David Justino, outro vice-presidente laranja, pareceu empurrar Rio pela borda fora, ao anunciar na CNN Portugal que Rio irá mesmo sair, num prazo de “dois ou três meses”.
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Note-se que não é a primeira vez que Rio faz um compasso de espera para ver como param as modas e avaliar as suas hipóteses de sobrevivência. Nem é a primeira vez que surgem sinais contraditórios de dentro da sua direção. Em outubro, quando Paulo Rangel exigiu diretas e se candidatou contra Rio, boa parte dos dirigentes distritais e responsáveis do aparelho laranja colocaram-se do lado do eurodeputado. As hipóteses para Rio pareciam tão más que mesmo na sua direção houve quem admitisse que este nem se recandidatasse. Rio esperou, os seus homens de mão bateram o terreno, e viraram a onda a seu favor. Enquanto o dono do Zé Albino pondera se ainda tem mais uma vida ou se deixa descendência política, o PSD vive num limbo.
Tudo a favor. Rui Rio é um especialista a queixar-se do que lhe acontece. Mesmo que lhe aconteça a mesma coisa que aos outros. Enfrentou enorme turbulência interna no PSD? Sim. Como aconteceu com Sá Carneiro, com Balsemão, com Mota Pinto, com Marcelo, com Durão Barroso, com Santana, com Marques Mendes, com Menezes, com Ferreira Leite, com Passos Coelho. Nenhum deles viveu em lamúrias constantes sobre a sua triste sina, apenas Rio. Também se queixou do grupo parlamentar que herdou, do PSD ser como é, das sondagens que temos, do jornalismo que existe, enfim, do mundo em geral. Até que, nestas eleições, Rio teve tudo à sua maneira. Como bem sintetizou o Miguel Santos Carrapatoso no Observador: Rui Rio fez a campanha que quis, como quis e quando quis. (...) teve as condições que sempre desejou para enfrentar António Costa: a ‘geringonça’ desmontou-se, as autárquicas deram o pântano sonhado, a conjuntura externa penalizou o socialista, as sondagens moralizaram o partido e a oposição interna calou-se e apareceu em peso ao beija-mão. Desta vez, não havia desculpas.” Tendo tudo como sempre quis, voltou a falhar.
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A direita. Até à direita do PSD Rui Rio teve exatamente o que queria: abundância de alternativas para conquistar as fatias do eleitorado que a ele, Rio, não interessavam. Há muitas declarações do líder do PSD, nos últimos quatro anos, a dizer que não se preocupava com os deputados que o CDS pudesse eleger - porque, explicava, era um eleitorado diferente do seu, e no fim do dia os dois partidos haveriam de se coligar. Na campanha eleitoral chegou a recomendar o voto no partido de Francisco Rodrigues dos Santos. Olhou com simpatia o crescimento da IL, convencido de que também aí havia um eleitorado que não era do PSD, mas que esse partido acabaria por juntar-se ao PSD. E, sobre o Chega, Rio disse explicitamente que não queria esse eleitorado.
Na noite eleitoral, Rio queixou-se por esse eleitorado todo - do Chega, da IL e do CDS - não ter concentrado os votos no PSD, ao contrário do voto útil que o PS conseguiu à esquerda. Fica-se sem saber: Rio queria esses votos ou não queria esses votos? Se desdramatizou sempre o crescimento desses partidos, por que razão só percebeu o drama depois de ele acontecer? E, se anda há quatro anos a dizer que não é de direita, por que razão a direita havia de lhe entregar os seus votos? Enfim, mistérios que só na cabeça de Rio terão uma explicação.
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O povo percebeu. Para o PSD, a maior tragédia da liderança de Rui Rio é a reconfiguração que permitiu - e promoveu - no espaço à direita. Desde o primeiro dia, Rio encostou o PSD ao PS, deixou o PS governar sem o incomodar, e não se incomodou a fazer oposição a não ser em campanha eleitoral. O povo entendeu a mensagem e no domingo transformou-a em votos. Como dizia o Sebastião Bugalho ontem à noite na CNN Portugal, “estamos a ver uma materialização nas urnas daquilo que se passou no Parlamento durante dois anos: Rui Rio entregou a governação ao PS e a oposição ao Chega e à IL. E os eleitores portugueses fizeram exatamente o mesmo.”
O Chega. Mas nada foi mais danoso para o PSD do que a forma ambígua e contraditória como Rui Rio lidou com o Chega. Sobre isto, cinco pontos rápidos:
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A herança. Em 2017, o atual líder do PSD assumiu funções numa circunstância muito difícil. Depois da austeridade da troika, Passos liderou o partido durante dois anos sem rumo, os sociais-democratas afundaram-se nas autarquias, um dos seus bastiões de sempre, e perderam a classe média. Rio propunha-se recuperar terreno autárquico (e começou esse caminho), mas também recuperar a classe média e o centro político, indo buscar o voto dos abstencionistas - toda esta parte ficou por cumprir. O centro não fugiu ao PS; e creio que os novos partidos fizeram muito mais para conquistar abstencionistas.
Rio deixa o PSD perdido no labirinto da direita, com um grupo parlamentar à imagem do líder, escolhido pelo único critério da fidelidade ao líder, depois de uma vassourada que não deixou vestígio das diversas correntes que, bem ou mal, sempre fizeram o tecido do PSD.
E deixa o Parlamento pior apetrechado para o controlo político do Governo e o escrutínio permanente da ação da maioria, graças à ideia peregrina de acabar com os debates quinzenais. Farão falta nestes quatro anos.
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Em compensação, Rio deixa as contas do PSD equilibradas, porque fez uma campanha poupadinha. Não deu muitos votos, mas também não deu prejuízo. Podia ser pior.
“Não oferecemos nada”. Rio deixa, também, uma perplexante incapacidade de admitir erros. Acha que fez uma campanha “excelente” e que esteve sempre certo na forma como fez oposição. Ontem à noite, David Justino defendeu o mesmo; na véspera, também Manuela Ferreira Leite foi incapaz de apontar um erro que fosse a Rio. Quanto à hoje célebre Isabel Meireles, tem a certeza de que “o que falhou foi o povo português”, conforme proclamou, na mais brilhante e sintética análise sobre estas eleições.
Encontrei uma única vaga admissão de alguma coisa que poderá ter corrido mal na campanha de Rio: “Não oferecemos nada”, disse David Justino ontem à noite, em mais um estimulante Crossfire frente a Augusto Santos Silva. Com isto, Justino queria dizer que Rio não prometeu nada, ao contrário de Costa, que se desmultiplicou em promessas eleitorais.
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É meia verdade. Costa, tendo-se apresentado com um Orçamento do Estado pronto a entregar no Parlamento, tinha muitas promessas escritas e contabilizadas. Bastou-lhe desfiar tudo o que esse Orçamento já previa. Por sinal, a opção de Costa - que até levou esse documento para o debate com Rio - foi ridicularizada por muita gente, por insistir em apresentar-se a exame com as respostas que já tinham levado um chumbo. O sorriso de há uns dias deve ter amarelecido mal.
Mas não é verdade que o PSD não tenha oferecido nada ao eleitorado. Ofereceu exatamente a mesma coisa que todos os outros partidos: um caminho. O caminho oferecido por Rui Rio era, como ficou claro, bem distinto do de António Costa. Um exemplo evidente: oferecia prioridade à redução do IRC, enquanto Costa dava prioridade ao alívio do IRS. Rio oferecia aumentos do salários mínimo incertos, e não se sabe quando, e Costa oferecia-os contabilizados e calendarizados. E por aí adiante.
Não foi falta de oferta. Foi incapacidade de explicar os méritos da oferta do PSD. Ou, simplesmente, a recusa daquilo que Rio oferecia.
“Prefiro ter menos votos”. No domingo ouvi Manuela Ferreira Leite dizer “eu prefiro ter menos votos e ser mais coerente e leal àquilo que sempre foi o PSD”. Pondo de parte a presunção de que o PSD “sempre foi” aquilo que algum PSD imagina, a verdade é que o povo fez a vontade a Ferreira Leite. Costa agradece. Cotrim e Ventura, também. Tudo pesado é mesmo difícil argumentar com a utilidade da liderança de Rui Rio no PSD. Mas essa dificuldade não começou no domingo.
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