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Banho de sangue? "Trump é ambíguo o suficiente para não poder ser acusado de incitar à violência, mas as consequências têm sido certamente violentas"

Trump promete "banho de sangue" se perder as presidenciais. "Neste momento existe um conjunto significativo de americanos que considera legítimo o uso de violência em contexto político" - e nem todos são republicanos

Foi um discurso que fez manchetes em todo o mundo: no fim de semana, num evento político no Ohio, Donald Trump, candidato republicano às presidenciais, disse que alguns migrantes que atravessam a fronteira do México para os Estados Unidos “não são pessoas” mas sim “animais”; que os seus apoiantes no banco dos réus pela invasão do Capitólio são “patriotas inacreditáveis” feitos “reféns” pelo Estado federal; que Joe Biden é um “presidente estúpido” e um “filho da mãe”. Pelo meio, disse assim: “Se eu não for eleito, vai haver um banho de sangue para todo o… vai ser o mínimo. Vai ser um banho de sangue para o país”.

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Em plena campanha para as eleições de novembro, numa altura em que não restam dúvidas sobre uma desforra Trump-Biden, a equipa do democrata não perdeu tempo a reagir. “Ele quer mais um 6 de janeiro, mas o povo americano vai dar-lhe outra derrota eleitoral em novembro porque continua a rejeitar o extremismo dele, a afeição dele pela violência e a sede dele de vingança”, disse James Singer, porta-voz da campanha de Biden, num comunicado em que acusou Trump de “duplicar as suas ameaças de violência política”.

O porta-voz do candidato republicano, Steven Cheung, interveio para dizer que Trump se referia à economia e à indústria automóvel, de grande importância no Ohio, e não a um “banho de sangue” político. Em comunicado oficial, Cheung acusou “o vigarista Joe Biden e a sua campanha” de se envolverem “em edições enganosas e tiradas de contexto”.

Para Diana Soller, “há quem vá ver isto e quem vá acusar Trump de incitação à violência, mais ou menos como aconteceu a 6 de janeiro” de 2021, sobretudo tendo em conta que o próprio Trump também está a ser julgado por suspeitas de incitar à invasão do Congresso após as presidenciais de 2020. Mas para a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), “a questão é mais complexa” e não pode ser limitada às leis que Trump possa ou não ter violado com este discurso.

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“Donald Trump é um homem antissistema que se dá a liberdades retóricas que não achamos próprias de um político sério, essa é a principal conclusão”, aponta Diana Soller. “As palavras dele podem ser interpretadas como incitação ao ódio, mas eu estudo política, não estudo leis, não sei até que ponto pode ser sancionado pelo que disse. Acho que o mais importante, e o que é preciso pôr em cima da mesa, é que neste momento existe um conjunto significativo de americanos que considera legítimo o uso de violência em contexto político.”

A prová-lo estão sondagens recentes, como uma do Public Religion Research Institute (PRRI) em parceria com o Instituto Brookings divulgada no final de outubro e que indica que quase um quarto da população norte-americana (23%) considera que “os patriotas americanos podem ter de recorrer a violência para salvar o país” (contra 15% em 2021). No mesmo inquérito de opinião, uma maioria avassaladora – 75% dos inquiridos – disse concordar que “o futuro da democracia americana está em risco nas presidenciais de 2024”.

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“A sabedoria comum diria que são todos republicanos, mas isso não é verdade, a maioria são republicanos mas os restantes são democratas”, diz Diana Soller. “Continua a haver uma preponderância entre os republicanos neste ponto da violência como arma política legítima, mas não é exclusivo deles. E acho que aí é que reside verdadeiramente o problema – nesta radicalização do eleitorado americano relativamente a questões políticas.”

A mobilização do eleitorado em 2024

Desde março de 2021, o PRRI, grupo apartidário de inquéritos de opinião sobre política, cultura e religião, fez oito sondagens diferentes com as mesmas questões e, no final do ano passado, foi a primeira vez que o apoio à violência política ultrapassou os 20%. De acordo com o inquérito mais recente, cerca de um terço dos republicanos apoia a violência como forma de “salvar os EUA”, em comparação com 22% dos eleitores independentes e 13% dos democratas. 

Entre o eleitorado republicano, as diferenças também são abissais, com a última sondagem a indicar que é três vezes mais provável que aqueles que votam Trump apoiem a violência como arma política em comparação com os republicanos que não têm uma visão favorável do ex-presidente e novamente candidato à Casa Branca. “Quer se referisse à indústria automóvel ou não, estamos perante o tipo de linguagem violenta que Trump usa muitas vezes quando fala à sua base de apoiantes”, indica Alan Abramowitz, especialista em política interna norte-americana, sondagens e eleições da Universidade Emory.

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Diana Soller concorda. “Em Relações Internacionais dizemos normalmente que o discurso político acaba por só ter verdadeiramente importância se houver audiência para esse discurso e, neste caso, há”, refere a especialista, reforçando que, apesar de não ser vasta, “é significativa” a quantidade de eleitores que se revê em discursos de natureza violenta. “É importante começar a prestar atenção a isto. Acho pouco importante ele ser um político extemporâneo, que fala mais depressa do que pensa. Nada disso teria qualquer importância se não houvesse uma fatia da população que, de facto, pode ouvir esse discurso como permissão para efetuar atos de violência perante situações políticas que não considere legítimas.”

No discurso no Ohio, a frase de Trump sobre um antecipado “banho de sangue” seguiu-se à promessa de impor uma tarifa de 100% sobre todas as importações de carros para os Estados Unidos, numa clara tentativa de mobilizar o eleitorado de um estado em que quase 110 mil pessoas trabalham na indústria automóvel e que é hoje responsável pelo fabrico de 82,5% do total de viaturas ligeiras made in America (e de 65,5% da produção total na América do Norte).

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“Geralmente ele permanece ambíguo o suficiente para não poder ser diretamente acusado de incitar à violência, mas as consequências têm certamente sido violentas, em particular a 6 de janeiro”, indica Abramowitz, autor do livro “Voice of The People: Elections and Voting Behavior in the United States”, quando questionado sobre o impacto deste discurso à luz do ataque ao Capitólio. “Muitos dos seus apoiantes parecem apreciar este tipo de linguagem, que veem como um ataque ao sistema político e aos liberais - que consideram seus inimigos.”

É o chamado “fenómeno da mobilização do eleitorado”, numa altura em que “sabemos que as campanhas eleitorais não se ganham ou perdem com discursos explicativos, apelativos relativamente à ideias, com programas eleitorais”, indica Diana Soller. “Quem ganha é quem consegue mobilizar o maior número de eleitores e portanto estes discursos incendiários acabam por ter uma vantagem e uma desvantagem: têm força sobre o eleitorado que vai votar, mas permitem ao adversário, no caso Joe Biden, apelar ao seu próprio eleitorado para que não vote em alguém com estas características.” 

Por esse motivo, a especialista em Relações Internacionais considera que “as palavras de Trump, acima de tudo, estão a tornar-se uma questão mobilizadora” no contexto da atual campanha, que tudo indica será uma das mais renhidas das últimas décadas. “Não é mensurável o que ele ganha ou perde com discursos deste tipo, mas é estratégico, no sentido em que ambos os candidatos estão à procura de formas de mobilização do seu eleitorado.”

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