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"Na palavra de Deus não há relacionamentos entre mulher e mulher": fomos a duas igrejas evangélicas descobrir como encaram a homossexualidade e foi isto que ouvimos

A CNN Portugal visitou a IURD e a Assembleia de Deus com uma identidade fictícia para perceber de que forma acolhem (ou não acolhem) as pessoas que lhes surgem com “tendências homossexuais”. “É pecado”, “vai contra a natureza”, “é uma ação do mal”, “não nos faz bem” foram apenas algumas das afirmações ouvidas.

“O casamento veio dele, o primeiro casamento que ele fez foi Eva e Adão. Ele não fez Eva e Eva ou Adão e Adão, ele fez Adão e Eva, então aí já nos deu o molde do que esperava”. Ouvimos estas palavras numa visita à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), onde somos recebidos por Moti, uma fiel praticante da religião evangélica que nos explica a visão de Deus sobre a homossexualidade. Está ali porque pedimos ajuda no papel de “Joana”, uma jovem de 28 anos que tem vindo a questionar-se sobre a sua orientação sexual e que se encontra em “conflito”.

Quisemos perceber de que forma é que estas congregações reagem quando confrontadas com situações semelhantes e contactámos por email algumas sedes e filiais em Portugal. A primeira resposta chegou-nos da IURD, igreja cristã evangélica e neopentecostal protestante, cuja sede fica em São Paulo, no Brasil. Quem quer que estivesse do outro lado sugeriu que nos dirigíssemos ao “Templo Maior”, na Rua Dr. José Espírito Santo, em Lisboa, pelas 18:00. Estariam à nossa espera.

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Não havia qualquer receio de nos perdermos, afinal é praticamente impossível passar por aquela localização sem reparar no enorme edifício branco e espelhado com letras garrafais: “Jesus Cristo é o Senhor”. Assim que chegamos, as portas estão abertas e algumas pessoas já se encontram na entrada. Moti aguarda-nos na receção de sorriso rasgado e encaminha-nos até ao auditório onde as mesmas palavras saltam à vista: “Jesus Cristo é o Senhor”.  Para quem está acostumado à arquitetura das casas católicas, esta acaba por ser uma versão indiscutivelmente mais minimalista e moderna. Ali a claridade impera, e em vez dos habituais bancos de madeira sentamo-nos numas cadeiras acolchoadas em tons de vermelho, tal e qual uma sala de teatro. Diante de nós um altar com adornos dourados entre dois grandes ecrãs e um homem observa-nos a partir de um canto, envergando um fato extremamente bem engomado. Ficamos a saber que é um dos pastores.

Templo Maior da Igreja Universa do Reino de Deus, em Lisboa. (Imagem: Google Street View)

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“Não fique nervosa, isto vai ser só uma conversa, está bem?”, introduz Moti. Está ali há cerca de 30 anos e conta-nos que a IURD a ajudou num momento de extrema fragilidade, desde então é devota àquela igreja. Depois de ouvir atentamente as razões que trazem “Joana” àquela congregação, inicia um discurso sobre o “alívio” que Deus lhe poderá oferecer caso ela vá “até ele”: “Vemos aqui uma parceria, e Deus dirige-se a ti e diz ‘queres alívio, eu vou dar-te esse alívio, mas tu tens uma parte nesse processo e a tua parte é vir até mim”. “Nós estamos aqui para te providenciar um ambiente em que te podes apresentar a Deus, mas esse ambiente, o apresentar, cabe a ti”, continua.

À medida que a conversa se desenrola, alguns membros vão chegando para a sessão das 20:00, o “Curso de Reconstrução do Eu”. Segundo o site oficial da igreja tem a duração de sete meses e consiste em “transformar a pessoa de dentro para fora” de modo a ter “a oportunidade de recomeçar a vida amorosa da forma certa”, “quer esteja solteira e amargando um passado de traições, de rejeições”. Cerca de uma hora antes já há quem guarde lugar, uns sozinhos e de semblante um tanto ou quanto apático, outros estendem as mãos no altar, de cabeça para baixo.

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É "uma ação do mal" e "vai contra a natureza"

Moti resgata a nossa atenção abordando o assunto que nos levou ali: a atração de “Joana” por outras mulheres. Descreve-nos os conflitos como “uma ação do mal”. “Eu gosto do meu marido, eu entrego-me ao meu marido e depois penso ‘ah, já não quero mais, eu quero outro’, é uma ação do mal, todo o sofrimento é uma ação do mal”, esclarece. Segundo ela, quem fez Eva pecar na história foi esse mesmo mal, o que por sua vez “mudou o plano de Deus completamente”. “Deus não podia mais guardar e proteger o ser humano, porque ela fez a sua própria escolha de ouvir uma outra voz que não fosse a dele”, e o mesmo aplica-se à homossexualidade aos olhos daquela congregação.

“Ele criou relacionamentos e criou relacionamentos entre o homem e a mulher”, defende. “Ele não te vai fazer nada, porque te deu esse poder de escolha, mas se tu te conectas com ele e te baseias na palavra dele e na sua palavra não há relacionamentos entre mulher e mulher. Não há, em nenhuma parte da bíblia”. Aliás, Moti explica que a bíblia ensina que os relacionamentos são heterossexuais, e os que os que não são “não nos fazem bem, não nos deixam felizes, deixam-nos em conflito porque vai contra a natureza”, assim como “em todas as espécies há a fêmea e o macho”, Deus “criou o ser humano, um homem e uma mulher para se relacionarem”.

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“Se ele criou o homem e a mulher e nós escolhemos fora desse ensinamento ele vai respeitar assim como respeitou Eva, mas vamos ter de nos retirar da presença dele, assim como Adão e Eva fizeram, esconderam-se dele porque sentiram que não estavam mais em comunhão com ele”, diz e compara ainda o casamento a Cristo e à igreja: “O homem vai cuidar da sua esposa assim como Deus cuida da igreja, então ele quer trazer-nos um companheiro que se vai entregar completamente e fazer de tudo para que nos demos bem”.

As luzes acendem-se, a poucos minutos do início da sessão que ali terá lugar. Moti convida-nos a ficar para assistir, mas recusamos. Fornece-nos o seu contacto e dá-nos um forte abraço: “Que Deus a abençoe” – repete três vezes esta frase.

Aqueles que dizem ter sido "aliviados"

Passam 19 dias desde aquele encontro e somos surpreendidos por um email da IURD: “Querida Joana, escrevemos para ver como está depois da nossa conversa. Temos orado para seu bem-estar”. Reforçam aquilo que foi dito durante a conversa, sobre “o desejo do Senhor Jesus” de “dar o alívio para aqueles que sofrem, removendo o fardo de dor e o tormento que têm carregado”. “Mas é preciso que cada um entenda que não é porque alguém está sofrendo que Jesus irá ao seu encontro para libertá-lo, é preciso o exercício da fé para que o milagre aconteça”, lê-se.

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Em anexo enviam alguns links de “relatos de pessoas que encontraram o alívio que buscavam”. São três vídeos disponíveis no YouTube: o primeiro corresponde a uma mulher de 32 anos que conta a sua história como “ex-lésbica” que “mudou a sua vida”, o segundo trata-se do relato de um homem que casou, “mas tem desejos homossexuais”, contado no âmbito do programa “Escola do Amor – The Love School”, destinado a “quem quer aprender como ser feliz na vida amorosa” – e onde está integrado o “Curso de Reconstrução do Eu” referido anteriormente. Por fim, no terceiro vídeo, surge “Hanna” e a sua experiência de “lesbianismo, drogas e assaltos”. Conta que na adolescência se sentia “igual aos meninos e queria a mesma coisa que eles”, mas diz ter recebido o “Espírito Santo” e adquirido “a sabedoria certa para não voltar à prática das coisas que fazia”.

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Em resposta ao email pedimos casos em Portugal, para que possamos ouvir as suas vivências na primeira pessoa, mas o pedido é-nos recusado. “Zelamos por preservar a privacidade daqueles que nos procuram, em busca de ajuda. Então não costumamos expor os casos particulares das pessoas, a não ser que elas, por livre e espontâneo arbítrio, falem das suas experiências”, explicam. “Nós temos um grupo formado por jovens que passaram por diversas adversidades na vida e hoje superaram ou estão num processo de superar. Durante as várias atividades do grupo será possível conhecer outros jovens e ouvir as suas histórias. Tenho a certeza que irá se identificar com o que passaram”. O grupo é a Força Jovem Portugal, que se reúne na Central Jovem, no Templo Maior, todos os sábados.

Nunca mais voltámos a ver Moti, tampouco mantivemos contacto. Na sequência do storytelling que foi também publicado este sábado no site da CNN Portugal, procurámos saber mais sobre a posição da Assembleia de Deus face ao tema que aqui tratamos, sob o mesmo nome fictício. Um dos testemunhos dera conta de que o líder da filial do Porto acolhia trans e homossexuais para posteriormente os encaminhar num processo de “mudança”, mas não obtivemos resposta por parte do mesmo quando contactado por este órgão de comunicação.

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Acorremos à página oficial daquela congregação, carregamos em “liderança” e em poucos segundos o perfil de Samuel Lopes surge em primeiro lugar no ecrã do computador. “Pastor presidente – Isabel e Samuel Lopes”, lê-se na descrição, ao lado de outros pastores e presbíteros. É possível verificar que todos os elementos da lista se fazem acompanhar da respetiva esposa, quase como uma propaganda do modelo de “família convencional”.

Seguidamente entramos em contacto com a mesma instituição, trocam-se alguns emails e o casal em questão mostra-se disponível para receber esta personagem criada, numa tarde. Aguardamos alguns minutos numa rua estreita, na Travessa 9 de abril, perto de uma entrada com estores de segurança. O cenário parece-nos consideravelmente mais humilde do que aquilo que observámos na IURD. A placa “Igreja Evangélica Assembleia de Deus Pentecostal do Porto” mostra que estamos na localização correta, mas ali não passa vivalma, pelo menos até aparecer Samuel Lopes e, como já era de esperar, Isabel. Entro sozinha.

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Não se encontra ninguém no interior do edifício, o que torna a situação francamente mais intimidante. De um lado uma ampla cantina social, e do outro um lanço de escadas pelas quais o casal me encaminha. Alcançado o segundo piso, passamos por uma espécie de auditório onde várias cadeiras apontam para um altar diferente daquele ao qual estamos habituados. Há apenas uma cruz e um projetor utilizado em cultos e outras reuniões. Sem figuras bíblicas, santos, ou abside, apenas linhas retas e branco como cor predominante.

Convidam-me a sentar num gabinete não muito distante, com uma decoração medianamente antiquada. Os dois encaram-me muito atentos, aguardando que “Joana” introduza o motivo que a traz ali. “Tens de abrir o jogo”, atira o pastor. “Queremos ouvir-te e queremos ajudar”. Gradualmente vou confidenciando uma atração por mulheres que desejo bloquear, tendo sido motivada pela família.

Assembleia de Deus do Porto. (Imagem: Google Street View)

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Deus, "dono da verdade"

“Achas que houve alguma coisa que espoletou isso?”, “já te envolveste com uma mulher?”, “como te sentes no teu interior?”, “sonhas ser mãe?”, são algumas das questões lançadas numa primeira fase da conversa, mas o diálogo começa muito lentamente a ganhar outra forma. “Acho que o mais importante neste momento, se calhar é conheceres mesmo Deus”, sugere Isabel. “As coisas só farão sentido para ti se conheceres aquele que é o absoluto, o dono da verdade”. Defende que sem “um absoluto” e “uma verdade autêntica” não é possível chegar a uma conclusão “daquilo que está certo e daquilo que está errado”.

E o que é que Deus diz sobre a homossexualidade? A resposta, quase imediata, vem do marido: “A bíblia é clara sobre isso”. “Todos nós fazemos coisas, hoje isso está muito em voga e parece que é esse o pecado capital deste tempo”, continua. “Por um lado, há muito mais abertura, por outro há mais um vincar de rejeição de uma oposição cerrada. Ficámos extremados, a nossa sociedade está extremada”.

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Mas para Isabel e Samuel Lopes tudo tem solução, enquanto “Ele” existir para nós. No caso daqueles que ainda não o “experienciaram”, como “Joana”, afirmam que o primeiro passo é ler a bíblia “para meter ordem na vida e falar com Jesus”. Aparentemente há até aplicações de telemóvel para isso.

Genesis é o primeiro livro da bíblia hebraica e da bíblia cristã, que antecede o Livro do Êxodo. Nessa publicação são referidos os princípios de Deus e a criação do homem e da mulher que, segundo o casal, “é o projeto de Deus para a família”. “Se eu anular Deus da minha vida, então o projeto dele não irá fazer sentido para mim”, defende Isabel. “Por isso é que te estamos a desafiar a conheceres Deus e a sua palavra”.

Na sua perspetiva, o marketing e tudo aquilo que o rodeia “acaba por nos influenciar”, como quando a publicidade nos leva a adquirir determinados produtos. E compara isso aos relacionamentos “menos convencionais” dos dias de hoje. “Quer queiramos, quer não, quando temos uma multidão a dizer que assim é que está certo achamos que se calhar eles é que estão certos e nós é que estamos errados, embora haja uma minoria a dizer ‘não, não vás por aí, que é errado’”, argumenta. “Tens de ter uma verdade sólida para te afirmares e para te segurares, mesmo que as tuas emoções te estejam a puxar para outro lado. Nós sabemos que hoje as nossas emoções estão de um lado e amanhã podem estar do outro”. 

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Pecado ou abstinência

Passados 20 minutos de conversa, opto por uma abordagem mais direta: afinal sentir atração por alguém do mesmo género é normal? Deve ou não ser negado?

“O sentimento, o desejo, a inclinação, ou o que lhe quisermos chamar, pode ser provocado por vários aspetos”, começa por responder o pastor. “Desde a violação até a alguma carência na educação. E é verdade, Joana, pode ser natural, mas nem tudo o que é natural em nós é correto”.

E continua: “É natural, porque nós não somos perfeitos. Eu sou casado, e se tiver um problema em que me sinto atraído por todas as mulheres, gosto de ter relações com várias mulheres, e vou dizer à minha mulher ‘eu sou assim’, ela tem de me aceitar? É obrigada? Nem tudo o que é natural é bom para nós ou para as pessoas que nos rodeiam”.

“A abstinência” é a solução, diz assertivamente. “Podemos pensar, ‘mas isso é reprimir-me, nunca vou ser feliz’. Mas e seu for escravo desse sentimento? Vou ser feliz?”

Pergunto-lhe se, tendo estes sentimentos, devo recorrer à abstinência “até passarem”. “Sim, ou até nunca passarem”, devolve. Caso contrário, estarei a “ceder a uma satisfação pessoal”. “A bíblia ensina-nos que o ato sexual é altruísta, e não egoísta, é para o outro e não para nós”, acrescenta. “Foi ele que criou o sexo, mas os distúrbios…”.

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“Cum dilectione hominum et odio vitiorum” (“Com amor à humanidade e ódio aos pecados”), escreveu o bispo e teólogo Santo Agostinho na Carta 211, em 424 d.C.., tendo acabado por se traduzir na teoria defendida por padres e pastores de que se deve “amar o pecador e odiar o pecado”.  E é deste modo que Samuel Lopes explica a visão de Deus sobre a homossexualidade. Serve-se, aliás de um exemplo mais mundano: “Imagina que a minha mulher comprava um vestido. Se eu não gostasse do vestido podia dizer-lhe, mas o facto de eu não gostar não toca no meu amor. Não gosto é do vestido”.

Mas há mais pessoas dentro da congregação cujo “vestido” não o apraz. Garante, porém, que todas são recebidas e auxiliadas “sem apontar o dedo, sem crucificar e sem condenar”. Por exemplo, as trabalhadoras do sexo, sobretudo mulheres trans. “Fazemos trabalho com prostitutas, e dentro das prostitutas há transsexuais. É um trabalho recente, mas vamos para as ruas falar com eles e ajudá-los”, explica. Aos sábados à noite uma equipa de mulheres liderada por Isabel dedica-se a esta tentativa de integração, e o casal assegura que algumas pessoas chegam “a mudar”.

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“Não é maltratando, não é enxovalhando, não é acusando que os problemas se resolvem. Afinal de contas só os marginalizamos. Eles existem, estão aí, e se poderem conhecer Jesus…” - interrompe a frase e lembra-se de um caso específico na sua igreja, um rapaz que “está em processo”. “É um bocado mais complicado. Ele tem uma tendência homossexual e nós estamos a ajudá-lo”, relata. “Nesta hora está a seguir o caminho dele, tem uma relação com um homem. Agora, nós podemos fazer duas coisas: proibir a entrada dele ou respeitar a decisão e continuarmos disponíveis para o ajudar. Nós não fazemos milagres, mas Jesus pode”.

A conversa termina com um agradecimento da minha parte. Perguntam se podem orar por mim e respondo com um aceno. Ambos fecham os olhos e dão início à súplica.

Direito de resposta da Igreja Universal do Reino de Deus

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