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Como a 'paz' na Ucrânia pode pôr em causa a ordem internacional. "Se a paz que for conseguida é a paz no terreno, as guerras vão proliferar"

Aceitar as exigências de Vladimir Putin para o fim da guerra seria, para os analistas, abrir um precedente para a “proliferação de guerras” em todo o mundo, da África à Ásia

Volodymyr Zelensky congratulou-se este domingo com "o sucesso" da cimeira de paz, que decorreu este fim de semana na Suíça, "para a Ucrânia e para os aliados”, mas os especialistas não fazem a mesma análise, apontando-lhe várias “fragilidades”, como o facto de nem todos os países participantes terem aceitado assinar o texto final que defende a soberania e a integridade territorial da Ucrânia.

“Em bom rigor, a cimeira não correu bem e não teve consequências positivas do ponto de vista da alteração da dinâmica dos aliados”, argumenta Tiago André Lopes, especialista em Relações Internacionais, explicando que nesta cimeira a Ucrânia “confirmou que tem uma base de aliados já estável, mas não conseguiu dar passos significativos para chegar a outras geografias”.

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Exemplo disso mesmo foi a ausência de alguns Estados de peso: além da Rússia, que não foi convidada, a China também não esteve presente, tal como não estiveram Egito, Nigéria, Malásia ou Etiópia. Segundo o professor, estes países “não chegaram sequer a responder ao convite que lhes foi endereçado”, o que é, no seu entender, “uma fragilidade” desta cimeira para a Ucrânia.

Além disso, dos mais de 100 países e organizações que estiveram representados nesta cimeira, 12 Estados recusaram-se a assinar o texto final que reafirma “os princípios da soberania, da independência e da integridade territorial de todos os Estados, incluindo a Ucrânia”. Entre eles, destacam-se o Brasil, um país que se apresentou na cimeira como observador e que, por essa razão, segundo Tiago André Lopes, não pôde assinar o documento. É certo que o texto ainda está aberto a recolher assinaturas nos próximos meses, mas a ideia que ficou é que o Brasil também não estava disposto a ser signatário do mesmo.

Além do Brasil, também Índia e África do Sul - que, juntamente com Rússia e China, fazem parte do grupo de economias emergentes conhecido como BRICS - e México recusaram assinar o texto, bem como Arménia, Bahrein, Indonésia, Líbia, Arábia Saudita, Tailândia e Emirados Árabes Unidos. 

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No final, 84 países assinaram o documento, incluindo os países da União Europeia, Estados Unidos, Japão, Argentina, Chile e Equador. Na perspectiva de Tiago André Lopes, porém, este não é um número “real” de signatários relevantes para o processo de paz.

“Alguns dos Estados signatários fizeram-no do ponto de vista formal mas não trazem capacidades que ajudam a Ucrânia, como Fiji, Palau, Mónaco, San Marino, Andorra, Liechtenstein, que acrescentam ao número, mas em bom rigor os signatários reais serão menos de 70”, argumentou.

Para o tenente-general Marco Serronha, “a paz e o sucesso dessa paz não se medem por votos quer de um lado, quer do outro”. “O que importa à Ucrânia é ter do seu lado os países que têm de facto capacidade para a apoiar sob ponto de vista político, militar, económico e diplomático, e esses tem que chegue”, considerou.

As "vitórias" de Zelensky e Putin "no banco dos réus"

Numa perspectiva mais otimista, o tenente-general Marco Serronha enumera algumas “vitórias” de Volodymyr Zelensky ao longo desta cimeira, desde logo o facto de ter deixado claro que a Rússia está a violar as regras da Carta das Nações Unidas e do direito internacional. 

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“A Ucrânia parte para esta cimeira não com uma perspectiva de negociar paz nenhuma, mas sim delinear os aspetos essenciais da sua estratégia e do que consegue atingir para chegar à paz”, observou o tenente-general. Ora, tendo em conta a adesão de “muitos países” a esta questão de não esquecer as regras do direito internacional e a Carta das Nações Unidas, Zelensky “retira para fora de jogo um conjunto dos requisitos da Rússia” no seu plano para um cessar-fogo, apresentado por Putin precisamente na véspera da cimeira.

Na sexta-feira, o presidente russo prometeu um cessar-fogo imediato na Ucrânia se Volodymyr Zelensky aceitasse retirar as tropas das quatro regiões anexadas por Moscovo em 2022 e renunciasse aos planos de adesão à NATO - uma proposta que foi prontamente rejeitada por Zelensky e pelos seus aliados.

Aceitar as exigências de Putin seria, para o tenente-general Marco Serronha, abrir um precedente para a “proliferação de guerras” em todo o mundo, da África à Ásia.

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“Há guerras em muitos sítios, há guerras que depois conduzem a situações contra o direito internacional, como o Azerbaijão contra a Arménia, etc., mas o resultado dessas guerras não altera a ordem internacional. Esta guerra, se houver uma vitória da Rússia, vai alterar a ordem internacional”, alertou Marco Serronha, questionando quem é que depois tem legitimidade para parar outros países em África ou na Ásia” com pretensões territoriais. 

“Se a paz que for conseguida é a paz de facto no terreno, as guerras vão proliferar, porque a ordem das Nações Unidas foi posta no lixo”, advertiu.

Para o tenente-general, “a grande vitória de Zelensky nesta cimeira é que assumiu a liderança do processo de construção da paz e colocou logo desde o início a Rússia no banco dos réus”, estando isolada no meio de um conjunto de países que defende uma paz de acordo com a Carta das Nações Unidas e com o direito internacional. Sendo assim, a Rússia é quem “está ilegal no conjunto das nações”, sublinhou.

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