Enquanto a esquerda europeia foi a Nova Iorque ver como se vencem eleições, Mamdani preparou-se para "uma guerra iminente"

5 nov, 18:00
Zohran Mamdani (Angelina Katsanis/AFP/Getty Images)

Ao vencer as eleições em Nova Iorque, Zohran Mamdani conseguiu seduzir o eleitorado de uma forma que nenhum democrata conseguia desde Barack Obama. Mas essa foi a parte fácil, porque as dificuldades começam agora - Mamdani é "o adversário que Trump quer"

Era uma vitória esperada mas que nem por isso deixa de ser histórica: na noite de terça para quarta-feira, Zohran Mamdani tornou-se aos 34 anos o candidato mais jovem em mais de 100 anos a ser eleito autarca da cidade de Nova Iorque; tornou-se o primeiro desde 1969 a conquistar mais de um milhão de votos numa das eleições locais mais participadas de sempre; e é o primeiro imigrante (nasceu no Uganda filho de pais indianos) e o primeiro muçulmano a ser eleito para chefiar a cidade mais famosa dos Estados Unidos, fundada em 1624 por imigrantes dos Países Baixos e de outros países europeus sob o nome “Nova Amesterdão”.

“Nova Iorque vai continuar a ser uma cidade de imigrantes, construída por imigrantes – e, a partir desta noite, governada por um imigrante”, declarou Mamdani vitorioso. “Derrubámos uma dinastia política. Afinal, se alguém pode mostrar a uma nação traída por Trump como derrotá-lo é a cidade que o criou. Ouça quando lhe digo, presidente Trump: para chegar a um de nós, vai ter de passar por todos nós.”

Foi um discurso de vitória em linha com a campanha do autodeclarado socialista democrático, até agora um deputado da assembleia municipal nova-iorquina relativamente desconhecido e que em menos de um ano, num salto estratosférico, captou as atenções da cidade, do país e do resto do mundo. 

Deste lado do Atlântico multiplicam-se os artigos sobre como Mamdani tem muito para ensinar à esquerda nesta era em que os populistas de direita parecem somar e seguir. Antes da ida às urnas na terça-feira, o Politico revelou inclusivamente como vários políticos da esquerda progressista europeia deslocaram-se a Nova Iorque nos últimos meses para encontros com a equipa de campanha do agora novo presidente da Câmara – uma campanha baseada na acessibilidade e no combate à acumulação de riqueza em prol da justiça social, que conseguiu combinar alcance nas redes sociais, e ainda uma campanha porta a porta e olhos nos olhos com a ajuda de um exército de voluntários.

Ao longo de meses, sobretudo desde que venceu as primárias democratas no final de junho, Zohran Mamdani lidou com inúmeros ataques dos rivais, à cabeça o ex-governador caído em desgraça Andrew Cuomo, que após ser derrotado pelo jovem candidato na votação do partido decidiu continuar na corrida como independente. Mais de uma dezena de milionários gastaram coletivamente mais de 22 milhões de euros para impedirem a eleição de Mamdani. Apoiantes de Trump pintaram o cenário da sua vitória antecipada como pôr um jiadista a governar Nova Iorque 24 anos depois dos atentados de 11 de setembro (tinha Zohran 9 anos). O próprio Trump disse, à última da hora, que apoiava Cuomo, o homem que mais de 10 mulheres acusam credivelmente de assédio sexual, em detrimento do “comunista” Mamdani. E já depois de este ganhar, um ministro israelita apelou a todos os judeus que fujam da cidade agora que será governada por um “apoiante do Hamas”.

Nada disto travou a ascensão e vitória de um candidato que conseguiu injetar esperança entre o eleitorado de uma forma que nenhum democrata conseguia desde a histórica eleição de Barack Obama como o primeiro presidente negro dos EUA. Mas esta foi a parte fácil. As dificuldades começam agora. 

“95% do que ele falou, na verdade, não vai poder fazer porque é Albany [capital estatal] que controla as finanças de Nova Iorque”, refere à CNN o cientista político Ruy Teixeira, autor da newsletter The Liberal Patriot e do livro Where Have All the Democrats Gone?. O programa de campanha de Mamdani “até pode funcionar na cidade de Nova Iorque”, admite Teixeira, mas “é improvável que ele consiga ter sucesso” em muitas das propostas.

Isso significa que poderá transformar-se em “mais um problema para os democratas", adianta o analista, até porque "uma pessoa até pode ser eleita, mas, uma vez eleita, tem realmente de fazer coisas de que as pessoas gostam e que melhorem as suas vidas e tem de ser vista como um sucesso – e acho que as hipóteses de Mamdani conseguir isso são muito pequenas”.

Antes das eleições, Trump prometeu congelar fundos federais para Nova Iorque se Mamdani vencesse e, segundo um jornalista da revista The Atlantic, disse aos seus assessores que estava só à espera desta ida às urnas para enviar tropas para a cidade onde nasceu e cresceu foto Yuri Gripas/EPA/Pool

Num artigo publicado no rescaldo da vitória de Zohran Mamdani, a revista The Atlantic apontava ainda um outro potencial problema no caminho do novo autarca nova-iorquino. “Em breve terá de trocar a sua retórica elevada pelo trabalho municipal árduo por garantir a segurança pública, limpar a neve das tempestades e enfrentar a desigualdade de rendimentos cada vez maior. Os anteriores presidentes da Câmara de Nova Iorque, claro, tiveram de assumir essas tarefas, mas Mamdani também vai enfrentar um desafio único: uma guerra iminente com o presidente dos Estados Unidos, ele próprio um nova-iorquino.”

O título do mesmo artigo colocava Mamdani como “o adversário que Trump quer”, uma ideia que outros analistas afloraram na reta final da campanha, sobretudo face aos esforços dos republicanos para capitalizar da vitória do jovem socialista, pintando-o como “o rosto demasiado à esquerda do Partido Democrata” a um ano das eleições intercalares.

Para analistas como Ruy Teixeira, que têm estudado o comportamento dos eleitores por grupo demográfico ao longo das últimas décadas, há pelo menos um sinal positivo na candidatura e na vitória de Zohran Mamdani em Nova Iorque – patente no facto de estar a dar respostas, pelo menos em retórica, às preocupações do eleitorado com as desigualdades e as dificuldades económicas. “Podemos dizer que é bom Mamdani não estar a praticar a economia neoliberal”, diz Teixeira à CNN Portugal – “só que não praticar a economia neoliberal não é suficiente; só porque se rejeita um paradigma não significa que aquilo que não se rejeita vai funcionar - acho que isso será um desafio.”

Além disso, é preciso alguma cautela na leitura dos resultados destas eleições, quer quanto à vitória de Mamdani em Nova Iorque, quer quanto à vitória dos candidatos democratas nas outras corridas de terça-feira, à cabeça Abigail Spanberger, eleita governadora da Virginia, e Mikie Sherrill, eleita governadora de Nova Jérsia. Os primeiros dados disponíveis sobre as  eleições mostram que cerca de 40% dos eleitores nos dois estados votaram na opção democrata por oposição a Trump, sendo ambos estados tradicionalmente democratas. Já a eleição de Mamdani, adianta Ruy Teixeira, “é completamente impossível interpretar em termos de uma reação contra Trump ou como uma espécie de eleição nacional – é um reflexo das mudanças dentro do Partido Democrata, porque foi realmente disso que se tratou toda a eleição”.

Quem procurava nestas eleições pistas sobre o que o futuro reserva aos democratas, ou mesmo aos Estados Unidos da América ao final de 10 meses do segundo mandato Trump, deve pensar duas vezes. A única grande certeza, por ora, é a querela que se avizinha entre o presidente e o novo autarca da cidade que também já foi de Trump, mas onde Trump não vota há muitos anos – até porque foi sem pudores que o presidente norte-americano prometeu congelar fundos federais a Nova Iorque caso Mamdani fosse eleito.

Reduto democrata que rejeitou Trump de forma contundente nas presidenciais de 2024, “Nova Iorque tem sido poupada até agora da ira do presidente”, mas só “porque Trump tem estado à espera”, aponta Jonathan Lemire na The Atlantic. “Este ano, e até agora, [o presidente dos EUA] desafiou os desejos dos presidentes das câmaras — e as ordens judiciais — e enviou tropas da Guarda Nacional para Los Angeles, Chicago, Washington e Portland”, tudo cidades democratas, usando vários argumentos para justificar essas mobilizações - à cabeça proteger os agentes do ICE e combater o crime. 

Contudo, “absteve-se deliberadamente de o fazer em Nova Iorque”, continua Lemire, invocando o que lhe disseram os assessores do presidente. “Ele queria ver quem venceria a corrida para presidente da Câmara. Em particular, Trump deixou claro que, se Mamdani vencesse, ele usaria esse resultado como justificação para mobilizar tropas para uma cidade que, segundo ele, ficaria inerentemente insegura sob o regime socialista.”

Questionado sobre o assunto na noite da vitória, Mamdani disse que está preparado para ir à guerra. “Isto são ameaças, muitas das quais vão muito além do poder da presidência, e este é dinheiro que os nova-iorquinos têm direito a receber. Vamos recorrer aos tribunais; vamos usar o púlpito para intimidar; vamos usar todas as ferramentas à nossa disposição para defender a nossa cidade.”

Quando prestar juramento nos degraus da Câmara de Nova Iorque no primeiro dia de 2026, e começar a liderar uma cidade com quase 8,5 milhões de habitantes, Zohran Mamdani vai estar a ser observado por todos em geral e por um ex-nova-iorquino em particular. Onze meses depois,  nas intercalares de novembro de 2026, saberemos se o “fenómeno Mamdani” teve ou não repercussões para um partido que continua a tentar encontrar-se desde a derrota de novembro passado.

E.U.A.

Mais E.U.A.