A incrível história de Xi Jinping: nascido para reinar

16 out 2022, 08:00
Xi Jinping. Li Xueren/Xinhua via AP

Nasceu entre a “realeza” maoísta, mas a sua família caiu em desgraça. Foi condenado e obrigado a trabalhos forçados, mas chegou ao lugar que foi de Mao. Dois momentos moldaram-no como líder: a Revolução Cultural e o fim da URSS. Este domingo arranca o Congresso do Partido Comunista da China, que deverá mantê-lo na liderança

A fama da família Xi é tão antiga como a existência da República Popular da China (RPC). Em 1949, ano em que o velho “Império do Meio” foi apresentado ao mundo com um novo nome, de ADN comunista e revolucionário, estava um Xi ao lado de Mao Tse Tung, o fundador e primeiro líder da nova república: Xi Zhongxun, revolucionário e camarada do Camarada Mao durante a Grande Marcha, e figura de primeira linha da política chinesa pelos anos seguintes. 

Nas décadas subsequentes, para o bem ou para o mal, o nome Xi continuou a ser proeminente na política chinesa. Tanto nos anos em que Zhongxun fez parte da pequena elite que governava o país, como nos anos em que caiu em desgraça. Passados mais uns anos, o patriarca Xi voltou à alta política chinesa. 

A esse Xi, cuja história se confunde com as desventuras das primeiras décadas de existência da RPC, seguiu-se outro membro da família com notoriedade nacional. Partilhava os valores patrióticos do velho patriarca, e também tinha servido no Exército Popular de Libertação (EPL, as forças armadas chinesas), embora não tivesse pedigree revolucionário nem currículo político que se visse. Mas era uma figura reconhecida pelas elites e pelo povo, povoando o imaginário de muitos e cujo trabalho era seguido por milhões: Peng Liyuan, uma soprano com uma carreia de enorme sucesso graças às suas canções patrióticas, músicas de séries de tv chinesas, interpretações em musicais de gosto popular e aparições em programas de televisão vistos por dezenas de milhões de telespectadores. Tem vários álbuns disponíveis no Spotify.

Peng já era uma vedeta quando se juntou ao clã Xi, ao casar-se em 1987 com Jinping, um dos filhos do célebre Xi Zhongxun. Ao contrário do pai, Jinping não era uma celebridade e nada tinha feito que o destacasse. Peng era, de longe, a pessoa mais famosa lá em casa.

Num dos muitos programas de televisão em que a cantora atuava e era entrevistada, o apresentador chega a condoer-se com a sina do marido anónimo da grande estrela. “Deve ser difícil para o homem que se casou consigo, porque a maioria das pessoas só o deve conhecer como ‘marido da Peng Liyuan’”, disse-lhe o apresentador de um canal de televisão de Hong Kong, no início dos anos 90. Peng sorriu e teve resposta pronta: “Eu não estou preocupada com isso. Eu nunca casaria com alguém que eu achasse que estivesse abaixo de mim.”

Por esses dias, o marido da cantora, Xi Jinping, estava bem longe da movida de Hong Kong e das luzes da ribalta. Era um responsável do Partido Comunista Chinês (PCC) numa província distante, sem notoriedade nem importância. Até no campeonato do comunismo Xi perdia aos pontos para a sua mulher - ela podia não ser uma dirigente regional do PCC, mas era há anos uma fervorosa militante do partido e havia protagonizado um momento marcante na história do comunismo chinês: em 1989, quando o mundo estava de olhos postos na Praça Tiananmen, Peng atuou aí - não perante os milhares de estudantes que encheram a praça exigindo democracia e liberdade, mas, uns dias depois, perante os militares do EPL que haviam massacrado os manifestantes e reposto a autoridade comunista.

Longe desses palcos, Xi levava uma vida bem mais discreta, de bom funcionário do partido. Ninguém diria que estava, de facto, a percorrer o caminho lento, paciente e calculista que havia de fazer do “marido de Peng Liyuan” o homem mais poderoso do mundo.

O principezinho

Xi Jinping nasceu em Pequim em 1953, como se fosse realeza. Cresceu no Zhongnanhai, o complexo de edifícios de habitação onde vivem os principais líderes do PCC e figuras de topo do governo chinês e da hierarquia militar - uma espécie de versão chinesa do Kremlin. Era aí que o seu pai vivia e trabalhava, e o pequeno Jinping brincava com os filhos de outros líderes revolucionários, “príncipezinhos” como ele, descendentes das principais figuras da China maoísta. 

O pai Xi não era um maoísta qualquer - estava mesmo no inner circle, desde que ambos se conheceram e lutaram juntos durante a Grande Caminhada que conduziu o Partido Comunista ao poder. Xi Zhongxun chegou a vice-primeiro-ministro, chefiou o departamento de propaganda do PCC e foi vice-presidente do Congresso Nacional do Povo.

Os seus sete filhos, de dois casamentos, sendo herdeiros dos pais da revolução, estavam destinados a ser parte da elite chinesa. Em casa, o patriarca deu-lhes uma educação rigorosa e disciplinadora, complementada pela educação formal numa das melhores escolas da capital. Da dieta educativa faziam parte doses generosas de ideologia maoísta e fervor patriótico. A mãe de Xi Jinping, embora com um percurso público menos proeminente, também lutou na guerra civil chinesa e trabalhou na escola de quadros do PCC. 

A purga

Final dos anos 50, inícios dos anos 60, Mao decidiu que a sua revolução permanente impunha o “Grande Salto em Frente”, com a coletivização forçada de toda a produção, desde a agricultura à indústria. O principal resultado foi a fome generalizada. A obstinação revolucionária de Mao provocou uma calamidade por toda a China, e uma mortandade sem paralelo - mas a culpa, Mao lançou-a sobre os seus colaboradores, a quem acusou de toda uma variedade de crimes, desde simples incompetência a complexas conspirações. 

O pai Xi foi um desses bodes expiatórios, afastado do governo e condenado a prisão domiciliária e, depois, a um campo de trabalhos forçados. O seu crime? Alegadamente corriam versões sobre a sua participação na revolução chinesa que empolavam o seu papel - um crime imperdoável num regime cuja história oficial só podia ter um único protagonista e um único herói: o próprio Mao. 

O opróbrio caiu também sobre a família - os Xi, até então revolucionários modelo, caíram em desgraça, e o jovem Jinping, então com cerca de 10 anos, tornou-se alvo do bullying dos colegas, até que deixou de ter esses colegas: foi afastado da escola reservada à elite, e humilhado publicamente pelos Guardas Vermelhos devido aos “crimes” do seu pai. Uma das meias-irmãs de Xi, mais velha, não suportou a pressão e suicidou-se. 

Xi, conforme contaria mais tarde, também achou que a sua história tinha chegado ao fim enquanto estava preso. Num dia, a Guarda Vermelha disse-lhe que lhe restavam 5 minutos de vida. Xi tinha 14 anos. Na sua história oficial, o sofrimento que passou nestes anos às mãos do PCC e do fundamentalismo maoísta da Guarda Vermelha não só não é omitido, como é um dos capítulos que mais engrandece a sua mitologia.

A família de Xi foi das primeiras a cair devido às purgas ordenadas por Mao, mas não foi a única. A razia maoísta foi quase total, na Revolução Cultural que destruiu quase todas as figuras com poder e autoridade, deixando de pé apenas Mao e um partido vergado e reconfigurado à sua vontade.

O jovem Xi acabou por ser enviado para a província, para um choque de realidade e um banho de humildade. À semelhança de milhões de jovens chineses urbanos, foi enviado para o campo, numa grande campanha nacional pela qual Mao esperava impor uma “reforma do pensamento” a uma população que considerava burguesa, degenerada e pouco empenhada na causa da revolução. Os jovens citadinos eram afastados das suas famílias e mandados para o campo e zonas montanhosas, para aprenderem sobre as dificuldades da vida, trabalhando no duro ao lado do “povo simples”. A operação também serviu para Mao tentar por ordem no caos provocado pela sua Revolução Cultural.

A estrada de Damasco

Em 1969, com 15 anos, Xi Jinping foi para Yanchuan, na província de Shanxi. Devido a este facto, esta localidade olvidável tornou-se um íman turístico, enquanto local decisivo na formação do atual líder chinês - o culto de personalidade em torno de Xi não poderia deixar de engrandecer a terriola perdida onde o grande líder viu a luz, trabalhando ao lado de operários rudes e agricultores pobres. 

Foram anos decisivos para a formação de Xi Jinping. E para consolidar o seu empenhamento em relação ao partido. Yanchuan foi a sua Estrada de Damasco. Segundo disse num documentário da televisão estatal chinesa de 2004: “Foi uma experiência incrivelmente formativa na minha vida. De crescimento e purificação.”

Segundo o próprio Xi, no comboio que os levou de Pequim todos os jovens que haviam sido retirados às suas famílias para irem para o campo choravam. Mas não ele. Xi diz que sorria. “Se tivesse ficado em Pequim não sei se teria sobrevivido”. Lição nº1 para se perceber o percurso de Xi e a mentalidade chinesa: num país que ao longo da história foi assolado por guerras civis, invasores, reviravoltas de poder e grandes fomes, nada é mais importante do que sobreviver.

Diz a mitologia oficial que durante sete anos Xi viveu numa espécie de caverna. O trabalho era extremamente duro, o jovem Jinping estava fora do seu meio, a comida era tão pouca que num dia em que encontrou carne a comeu crua. Um dia, fugiu desesperado de volta para Pequim, mas foi apanhado e como castigo foi obrigado a trabalhos forçados, abrindo valas e fazendo esgotos. 

Voltou a Yanchuan um ano depois, aparentemente decidido a aceitar a sua sorte. Começa então a transformação de Xi em cidadão exemplar, o rapaz privilegiado da cidade que, no meio do povo dos campos, descobre a virtude do trabalho e dá o seu melhor à comunidade, seja com rudimentos de cuidados de saúde, cavando poços, construindo barragens ou reparando estradas. Um podcast lançado há duas semanas pela revista The Economist sobre a vida de Xi (“The prince”) faz um extraordinário retrato da sua vida, nomeadamente destes tempos de exílio interno durante a sua juventude (esse trabalho de oito episódios foi uma das fontes deste texto, juntamente com outras biografias, publicadas em livro e pela imprensa internacional).

Fé comunista pós-maoísta

Quando deixou Yanchuan, Xi tinha 22 anos e sentia-se “um homem mudado”. “Eu tinha estabelecido firmemente qual era o meu propósito final, e estava confiante”, escreveu sobre esse período.

Foi em Yanchuan que Xi aderiu ao PCC. Um passo óbvio, nem que seja por instinto de sobrevivência, mas nem por isso fácil. Não da parte de Xi, mas da parte do partido, que olhava com desdém para este filho de um “conspirador” proscrito por Mao. Consta que foi rejeitado sete vezes, antes de conseguir, por fim, militar na juventude do partido - e só terá entrado porque se tornou amigo de um dirigente da estrutura local. Entrar para o PCC foi ainda mais difícil - só à décima tentativa, em 1974, Xi conseguiu tornar-se militante do partido de que o seu pai havia sido alto dirigente. Dois anos antes, a família tinha conseguido, por fim, reunir-se pela primeira vez desde as purgas. 

Quando Mao Tse Tung morreu, em 1976, levou consigo a Revolução Cultural, e os alvos das purgas foram reabilitados no partido e no governo. O pai Xi voltou aos círculos do poder, recuperado por Deng Xiao Ping, o novo líder máximo do PCC.

Outros “principezinhos”, cujos pais foram igualmente vítimas das purgas maoístas dos anos 60, passaram a encarar o partido com horror e revolta, pelo sofrimento e injustiça a que os havia sujeito. Muitos abandonaram a China, repudiando o totalitarismo comunista e abraçando a causa da liberdade. Outros passaram a olhar o partido apenas pelo seu valor utilitário: permitia a uma pequena elite um modo de vida e um acesso a bens e experiências vedadas à restante população. 

Não Xi. Nem abandonou o país, nem voltou as costas ao partido, nem descreu das virtudes do comunismo. Pelo contrário. Acentuou a sua ligação ao Partido Comunista - afinal, também o seu pai havia dedicado a vìda à causa, fora purgado e perseguido, e continuava a acreditar no partido e na revolução. Xi não só reforçou a sua fé no partido como consolidou a crença na necessidade de ordem e autoridade. E a conclusão de que só o PCC, liderado com mão firme e propósitos bem definidos, podia assegurar essa previsibilidade à China.

O trauma da purga, da perseguição e dos trabalhos forçados teve em Xi um efeito improvável: passou a olhar para o partido - o mesmo partido que inflingira tanto sofrimento a si e à sua família - como o único garante da estabilidade, capaz de evitar a repetição do que aconteceu na Revolução Cultural. A sua alternativa não era mais liberdade e poder para o povo, era mais autoridade e poder para o partido. 

Enquanto outros “principezinhos” celebravam a reabilitação, consumiam bens ocidentais e faziam planos para mudar por dentro o Partido Comunista, abrindo-o e garantindo que nenhum outro líder pudesse acumular tanto poder e controlo como Mao, Xi mantinha-se discreto, cumpria ordens e tornava-se “mais vermelho do que o vermelho” - expressão usada num telegrama diplomático (já lá iremos).

O funcionário exemplar

De volta a Pequim, Xi entrou na universidade - um curso de Engenharia Química que, de acordo com as boas práticas vigentes à época, tinha tanto de maoísmo e marxismo como de engenharia e química. Fez o curso ao mesmo tempo que era trabalhador e soldado do EPL. Licenciou-se em 1979 e teve a sorte de o nome da família já estar reabilitado. O pai ajudou-o a conseguir o seu primeiro emprego.

Sem surpresa, Xi nunca trabalhou como engenheiro químico - e não faltam na China, à boca pequena, piadas sobre as suas habilitações académicas nesta área. Seguindo as pisadas do pai, entrou na política pela porta dos militares. Entre 1979 e 1982, foi o secretário pessoal de Geng Biao, militar de carreira que fora subordinado do pai Xi, e que nessa altura era vice-primeiro-ministro e secretário-geral da Comissão Central Militar (CCM), a mais alta estrutura de comando militar do país. Era um posto perfeito para Xi fazer networking, conhecer os meandros da máquina militar e movimentar-se nos intrincados bastidores do poder. A principal tarefa de Geng por esses dias era a modernização do Exército Popular de Libertação, processo que Xi acompanhou por dentro - um conhecimento que seria precioso décadas depois, quando Xi chegou ao poder. Por outro lado, sendo um civil, Xi teve nesta fase um posto militar, o que lhe acrescentou lustro ao currículo.

Mas em 1982, Xi faz uma escolha surpreendente: decide deixar de trabalhar com Geng e sair de Pequim. Aceita ir para a província de Hebei, como nº2 do PCC em Zhengding, uma região pobre, rural e sem qualquer relevância política. Xi parecia decidido a fazer toda a escalada do aparelho partidário pelos seus meios, sem privilégios de “principezinho”. A estratégia era incomum, arriscada, e lenta na melhor das hipóteses. Destinada ao fracasso, na pior. 

O trauma da Revolução Cultural e a experiência de ter tudo e tudo perder ensinaram várias lições a Xi. Não apenas sobre a importância de ordem e estabilidade, mas também sobre a melhor forma de sobreviver num país dominado por um partido: aderir à narrativa oficial, evitar controvérsias, nunca dar passos maiores do que a perna. Xi decidiu ser o funcionário exemplar, avesso a polémicas, decidido a manter a cabeça baixa e a nunca ir para fora de pé. 

Um ano depois da sua chegada, Xi foi promovido a secretário do partido em Zhengding. Hebei foi a primeira de quatro províncias onde Xi fez uma carreira de trinta anos em cargos regionais. Trinta anos bem contados, entre 1982 e 2012, entre ser o “vice” do partido numa cidade perdida e líder máximo do partido em Pequim.

Depois de três anos em Hebei, Xi mudou-se em 1985 para Fujian, então uma das províncias mais pobres da China. Foi aí que Xi fez boa parte do seu tirocínio político: ao longo de 17 anos, subiu na estrutura partidária de Fujian e foi ganhando alguma relevância no partido. A sua vida náo era glamourosa nem o desempenho de Xi era notável. E era assim que o próprio queria. Conhecedor da efervescência que sempre se vivia nos corredores do PCC, dos golpes e traições que promoviam uns e fulminavam outros, Xi fazia questão de não dar muito nas vistas. Se se elevasse demasiado, podia ter o destino das espigas de trigo, como Maquiavel escreve n’”O Príncipe”: as mais altas são as primeiras a ser cortadas.

O incorruptível contra Lai

Mas foi impossível-lhe continuar sem dar nas vistas quando, nos anos 90, um extraordinário caso de corrupção em Fujian se tornou um escândalo nacional. O caso do Grupo Yuanhua tornou-se o maior escândalo de corrupção da China em muitas décadas, aconteceu nas barbas de Xi, e rebentou quando este era o governador da província. 

Centenas de quadros e dirigentes do partido e do governo, a nível provincial e nacional, foram envolvidos neste escândalo - beneficiavam de favores e benesses várias, ou estavam na lista de pagamentos de Lai Changxing, um poderoso empresário pouco escrupuloso, fundador do grupo de import/export Yuanhua. 

Os anos de prosperidade desse empresário aconteceram num ambiente de corrupção generalizada no Partido Comunista de Fujian. Ao longo desses anos, Xi continuou a subir a escada do poder, chegando a vice-governador, e depois a governador. Mas conseguiu nunca ser salpicado por esse escândalo. Apesar da improbabilidade de a cúpula de um sistema corrupto ser alheio a toda a corrupção, nunca houve qualquer suspeita em relação a Xi. E este aproveitou para fazer do combate à corrupção a sua bandeira e uma das suas imagens de marca. 

Chamado a Pequim, o governador Xi prometeu limpar Fujian. Saiu do caso com fama político imaculado, fiel servidor do partido e do povo, e rótulo de incorruptível. E aprendeu outra lição preciosa sobre a utilidade do combate à corrupção como arma para consolidar poder e, em sendo preciso, afastar adversários. 

Foi com rótulo de incorruptível, e já merecedor da atenção das chefias do partido em Pequim, que Xi se mudou em 2002 para a província vizinha de Zhejiang. Nesse mesmo ano, entrou para o Comité Central do PCC - vinte anos depois de deixar Pequim, voltava à alta roda da política na capital.

Depois de muitos anos à espera, Zhejiang dava-lhe uma oportunidade para dar nas vistas por boas razões: ao contrário das regiões onde Xi servira antes, Zhejiang estava em franco crescimento económico, na vanguarda das reformas económicas que permitiram à China o enorme crescimento do século XXI. 

Essa mudança económica, por um mero acaso, tinha a assinatura de outro Xi: o pai de Jinping, visto como um reformador, havia sido encarregado por Deng Xiaoping de fazer de Guangdong uma zona económica exemplar para o futuro da China. Foi a primeira “zona económica especial” promovida ao abrigo da abertura determinada por Deng, para horror e sacrilégio das correntes mais ortodoxas do partido. Era o capitalismo à chinesa que florescia, sob o comando do patriarca Xi. Noutra província, o filho, tudo o indicava, seguiria as suas passadas. 

Como governador de Zhejiang, Xi manobrou com habilidade a frente económica e a frente política. A região registou crescimentos anuais na ordem dos 14%, e Xi juntou a esse triunfo económico a ação decidida contra a corrupção, em linha com o que havia feito no seu posto anterior em Fujian. 

Xi era o homem que personalizava os valores de honestidade, retidão, justiça e firmeza, ao mesmo tempo que entregava resultados económicos. E, como já estava no Comité Central, passou a ser alvo crescente das atenções dos responsáveis partidários e, consequentemente, da comunicação social. 

A confirmação da sua estrela ascendente veio em 2006. Outro escândalo de corrupção abalou o PCC (eram muitos, e por todo o lado, nesses tempos) em Xangai. Como diz a canção: “Who ’ you gonna call?” Xi Jinping! 

O escândalo levou à demissão do secretário do PCC em Xangai, Chen Liangyu, e em março de 2007 Xi foi transferido para a cidade. O escândalo Chen era um caso de corrupção - e Xi tinha a seu favor a fama de ter resolvido o maior caso de corrupção que havia abalado o partido. Mas no caso Chen também havia uma luta de poder, com o então líder do PCC, Hu Jintao, a aproveitar para afastar um crítico interno ligado a uma facção rival do partido - e Xi tinha a seu favor o facto de não estar ligado a qualquer facção. 

Xangai acabou por ser o trampolim final de Xi para a grande política a nível nacional. Na nova Comissão Permanente do Politburo, escolhida em outubro de 2007, Xi foi o homem que subiu ao palco a seguir a Hu. Estava dado o sinal. Era ele o sucessor para o congresso seguinte, marcado para 2012. Xi, que tinha feito todo o seu percurso sem arriscar, sem brilhar, sem mostrar a sua força, ali estava, sob os holofotes, na calha para ser o novo homem-forte do país. Surpreendeu os que o desvalorizaram, ultrapassou os que se puseram em bicos de pés, e guardou para si aquilo que pensava, deixando que outros o avaliassem mal. 

Xi Jinping, o segundo a contar da direita, com os outros novos membros da Comissão Permanente do Politburo, a 22 de outubro de 2007.

O “Nelson Mandela da China”...

Há dois anos, um artigo do The Wall Street Journal sobre Xi Jinping tinha um daqueles títulos felizes que explicam tudo: “Como os EUA se enganaram sobre Xi: esperavam um globalista, tiveram um autocrata”. O engano não aconteceu apenas em Washington. Houve, noutras latitudes, quem se enganasse de forma ainda mais espalhafatosa. Em 2007, assim que Xi foi apontado como o senhor que se segue, Lee Kuan Yew, antigo primeiro-ministro de Singapura, classificou-o como “o Nelson Mandela da China”. 

Depois de um encontro privado a dois, Lee não teve dúvidas em garantir aos jornalistas que as vivências de Xi durante a Revolução Cultural tinham feito dele um homem  “ponderado”, comparável ao ícone sul-africano da liberdade. "Eu colocá-lo-ia na classe de pessoas de Nelson Mandela. Uma pessoa com enorme estabilidade emocional que não permite que os seus infortúnios ou sofrimentos pessoais afetem o seu julgamento. Por outras palavras, ele é impressionante".

A última frase confirmou-se. 

Mas, logo na altura, por muito misterioso que Xi pudesse ser (e era), um artigo da revista Time punha em causa a comparação feita pelo político de Singapura. “Parece um pouco rebuscado, para dizer o mínimo, comparar o ‘santo’ Mandela, que passou 27 anos na prisão, com Xi, quaisquer que sejam os seus méritos. Independentemente de tudo o resto, como qualquer outro quadro superior do partido, Xi presidiu à habitual ladainha de abusos dos direitos humanos quando era chefe do partido nas províncias de Fujian e Zhejiang”.

… ou o dirigente chinês que gostava dos EUA

Há dez ou 15 anos, era fácil deixar-se enganar por alguns aspetos da história de Xi Jinping. Sim, ele trazia as cicatrizes da Revolução Cultural. Sim, era filho de um comandante maoísta que se tornara um reformador da China pós-maoísta. Era fácil retirar daí certas conclusões.

E, sim, em plena Guerra Fria Xi até tinha viajado pela América, mostrando-se bastante impressionado com o que vira. Não era um período qualquer para um chinês conhecer os EUA. No auge do conflito entre os EUA e a URSS, Ronald Reagan personificava o sonho americano - um ator de Hollywood que chega a presidente - e o anti-comunismo, e a América apresentava-se ao mundo como o país do Rambo. Xi tinha 31 anos e era secretário do partido em Zhengding. Conheceu o Midwest, pernoitou em casa de famílias americanas, dormiu em quartos decorados com posters da Guerra das Estrelas, conduziu um trator agrícola made in America e experimentou pipocas pela primeira vez. Guardou o itinerário e inúmeras recordações da viagem, da qual continuava a falar muitos anos depois com gosto e admiração. 

A viagem marcou-o tanto que, em 2012, quando Obama o convidou a visitar os EUA para poder conhecer melhor o novo líder chinês, Xi fez questão de voltar ao Ohio e aos lugares onde havia sido feliz. Ainda hoje viajantes chineses passam pela casa do Ohio onde Xi dormiu vários dias.

Mas esta foi a mesma América que venceu a Guerra Fria, e celebrou a derrota soviética. A mesma América que incentivou os protestos de Tiananmen, esperando que a perestroika de Mikhail Gorbachev contaminasse a China, cuja liderança se dividia entre os ortodoxos e os reformadores, à semelhança do que acontecia ao comunismo por todo o mundo. A mesma América que “interferia” na política chinesa denunciando violações dos direitos humanos e tentando exportar “o seu modelo” de democracia.

URSS, um trauma partilhado com Putin

Quem avaliou Xi apenas como o homem marcado pela Revolução Cultural não podia se não falhar na avaliação, pois deixou de lado o outro grande acontecimento histórico que moldou o seu pensamento político: o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética.

Em junho de 1989, enquanto Peng Liyuan cantava para os soldados chineses que haviam esmagado - literalmente - os manifestantes que haviam feito tremer o regime em Tiananmen, o marido da cantora estava bastante longe do epicentro dos acontecimentos. Mas seguiu cada pormenor como se a sua vida dependesse disso. Do que se sabe hoje, talvez dependesse mesmo.

O PCC estava dividido entre a linha dura e os que compreendiam as reivindicações dos estudantes. Deng Xiao Ping mandou prender o principal dirigente partidário que apoiava os protestos e ordenou que os tanques avançassem contra os milhares de manifestantes na madrugada de 4 de junho de 1989. Terão morrido centenas ou milhares de pessoas (não há dados oficiais, porque oficialmente o massacre nunca aconteceu, apesar de ter sido testemunhado por milhares, incluindo jornalistas ocidentais - a versão oficial é que terá havido escaramuças entre manifestantes que se viraram contra as forças de segurança). 

Xi terá suspirado de alívio ao ver a linha dura levar a sua avante. Temia que o seu país seguisse as pisadas da União Soviética, o farol do comunismo que se estava a apagar sob a liderança de Gorbachev. Ao ver a URSS desagregar-se, com o colapso do partido e da federação de países que a constituíra, Xi via o risco que corria o seu país, igualmente vasto, multi-étnico e complexo de gerir e manter colado. Um caminho semelhante ao da URSS significa, para Xi, a repetição do caos e desordem da Revolução Cultural.

O colapso soviético às mãos de Gorbachev foi um choque para Xi - e é, sem dúvida, um trauma que partilha com o seu “amigo” Vladimir Putin, o líder internacional com quem mais vezes se encontrou pessoalmente ao longo desta década de poder. Consciente ou inconscientemente, Xi assumiu-se como o “anti-Gorbachev”, usando a expressão de François Bougon, autor do livro “Na Cabeça de Xi”, recém-editado em Portugal (Zigurate)

O colapso da URSS continua também a ser um fantasma que assombra o PCC. Este ano, em preparação para o congresso que começa este domingo, dirigentes do partido, dos mais diversos níveis, foram incentivados a ver, mais uma vez, um documentário sobre a desagregação da União Soviética. E esse continua a ser tema de intenso estudo por parte dos intelectuais do partido.

Embora incentive essa contínua autópsia da URSS, Xi tem ideias bem firmes sobre as razões por que o Partido Comunista Soviético falhou e se “dispersou como um bando de pardais”. Houve várias causas, mas foi sobretudo por “niilismo histórico”, disse Xi pouco tempo depois de ter assumido a liderança do PCC. “Lenine e Estaline foram rejeitados” e “a confusão ideológica estava por todo o lado”. Para Xi, a confusão e e ausência de uma linha firme são a base de todos os males, quer isso seja alimentado por divergências internas ou por críticas externas que minam a narrativa oficial e a autoridade do líder.

Há poucas semanas foi divulgado, sob a forma de artigo, um discurso feito por Xi em 2018 a altos quadros do partido, no qual o líder chinês refletia mais uma vez sobre as lições do colapso soviético. "A União Soviética já foi tão poderosa, agora é apenas uma memória ténue. Se não tivermos uma perspectiva histórica e um planeamento a longo prazo, traremos a ruína sobre nós próprios", avisou Xi. Considerando que o Partido Comunista Chinês é agora o porta-estandarte do movimento socialista global, o secretário-geral alertou para a necessidade de o PCC aprender a auto-corrigir-se constantemente para evitar o destino da URSS.

"Espírito revolucionário", “auto-reflexão” e “auto-correcção” permanentes são os ingredientes de Xi para a longevidade do partido e do regime. Sem isso, alertou, "mesmo o regime mais poderoso" pode desmoronar-se. "O nosso destino reside no caminho que escolhemos. Se enveredarmos pelo caminho errado, não alcançaremos os nossos objectivos e poderemos mesmo quebrar o grande rejuvenescimento da civilização chinesa", disse Xi. "Durante este longo período, como podemos assegurar que o Partido Comunista não entrará em colapso e que o nosso sistema político manterá o seu vigor? Vai ser um enorme desafio e risco", concluiu, posicionando-se, claro, como o homem certo para indicar o caminho e superar o desafio.

Dez dias depois da divulgação desse artigo de Xi, um outro artigo, assinado por He Yiting, que foi um dos principais ideólogos do regime até 2018, insistiu no mesmo ponto: “O Partido Comunista Chinês é um grande partido e lidera um grande país. Não pode, de forma alguma, cometer erros estratégicos. (...) Se cometesse erros estratégicos, as consequências seriam terríveis e o custo seria grave. Já sofremos lições dolorosas antes". Quando? Não é preciso adivinhar, pois He clarificou: a Revolução Cultural e o colapso da União Soviética - os dois momentos históricos que mais moldaram a visão do mundo de Xi Jinping. E, como Xi, He defende que uma visão estratégica e um líder  supremo são as condições essenciais para que um país avance.

François Bougon, jornalista e sinólogo que foi durante anos correspondente da France Press em Pequim, tem uma fórmula simples para explicar essa visão estratégica: “Para Xi, o futuro está no passado.”

"O poder político cresce do cano de uma arma"

Há outra lição que Xi retirou do fim da URSS, e que pôs em prática no seu processo de consolidação de poder: a ligação estreita entre o aparelho militar e o poder político, com a total submissão daquele a este. "Um país forte deve ter um exército forte", e “o partido controla a arma”, são as máximas que Xi retira da análise do estertor soviético.

Na origem destes lemas para estar outro, cunhado por Mao Tse Tung: "o poder político cresce do cano de uma arma". Mao sabia do que falava - criou o Exército Popular de Libertação como braço armado do PCC, as duas organizações conquistaram o poder e nunca perderam a sua ligação umbilical. 

Numa série televisiva sobre o pensamento de Xi Jinping que tem sido transmitida pela televisão estatal chinesa, um dos episódios é sobre a relação entre militares e poder político, e a análise de como a falha nessa relação contribuiu para o declínio soviético. "Um sistema de comando de cima para baixo e unificado é um imperativo militar. A decisão do Partido Comunista Soviético de abolir a educação política [dos militares] é um dos fatores-chave que levou ao seu colapso", defendeu, nesse programa, Jiang Tiejun, um teórico militar chinês da Academia de Ciências Militares (AMS). Trata-se de uma das principais academias do EPL, conforme frisa o jornal South China Morning Post, que escreveu um artigo sobre a importância deste episódio televisivo para se compreender mais uma lição que Xi retirou do fim da URSS. 

"A lição da queda do regime soviético e do seu partido advertiu-nos que a liderança absoluta do partido sobre o exército é uma questão fundamental, que só deve ser reforçada - sem relaxamento", defende o mesmo académico militar.

O conhecimento que Xi tem da máquina militar - desde que assessorou o seu primeiro chefe - revelou-se útil na sua consolidação do poder. E a sua prática de ordenar purgas com o argumento de combater a corrupção permitiu-lhe fazer uma revolução também nas chefias das Forças Armadas, hoje povoadas por elementos absolutamente fiéis a Xi. Na última década, centenas de generais, incluindo dois antigos vice-presidentes da CCM, foram afastados dos seus postos e substituídos por gente mais alinhada com Xi. "O apelo de Xi à lealdade do EPL indica que os militares ainda precisam de promover a sua moral, que foi afetada pela campanha anti-corrupção no exército durante os últimos anos", diz o mesmo académico.

Não por acaso, Xi considera que é essencial que o líder do partido seja também o líder da CCM, e incluiu essa ideia nos seus pensamentos, que hoje fazem parte da política essencial do partido. “Deter as duas posições essenciais garantirá que o EPL siga o partido para sempre”, diz Shen Zhihua, professor especializado em educação política, também entrevistado na série da televisão estatal. 

Make PCC great again

Em 2012, quando Xi tomou as rédeas do partido, este estava mais uma vez em risco de desagregação. A corrupção era endémica, a desconfiança da população era generalizada, e o partido deixara de ocupar o lugar central na vida coletiva. O crescimento económico permitido desde as reformas promovidas por Deng Xiao Ping - que também abriram caminho, anos depois, à entrada da China na Organização Mundial do Comércio, que voltou a dar fôlego à economia chinesa -, havia criado uma nova e vasta classe média mais interessada em adquirir casa, carro, eletrodomésticos e outros confortos da vida moderna, do que em discutir os ensinamentos de Mao ou o futuro do comunismo à maneira chinesa (estavam mais interessados na componente capitalista desse mix). 

Quem se empenhava em política e na vida comunitária, mostrava-se mais entusiasmado com a emergência das redes sociais do que com os velhos procedimentos do PCC. O partido era um corpo visto como inútil, corrupto, ultrapassado e em degradação. Xi decidiu salvá-lo, para salvar a sua carreira política e a sua ideia de China. 

Mas mesmo no partido havia ideias diferentes sobre o caminho a tomar. Tal como a sociedade chinesa se mostrava dividida, com uma nova geração com novas prioridades, novas plataformas de intervenção e novas formas de fazer política, também no PCC havia quem defendesse caminhos diferentes dos de Xi. A velha cisão entre conservadores e reformistas nunca desapareceu. 

Em 2012, o porta-estandarte da renovação do PCC era Bo Xilai, o principal rival de Xi. Era carismático, bom comunicador, e chefiava o partido na região de Chongqing, no sudoeste do país. Um discurso populista que misturava denúncias de corrupção e a nostalgia da grandeza passada dos tempos de Mao garantia-lhe apoio popular mas também de uma facção do partido, de cujo Politburo Bo fazia parte. 

Ainda antes de assumir a liderança do PCC, Xi tratou de matar a concorrência - no início de 2012, Bo foi preso sob acusações de corrupção e abuso de poder. Em 2013, com Xi já no comando do partido, Bo foi julgado e condenado a prisão perpétua.

Seguiram-se outros dirigentes do partido, por coincidência todos próximos de Bo ou de outras facções adversas a Xi. Quando a purga chegou ao antigo ministro da segurança, e ex-membro do Comité Permanente do Politburo, Zhou Yongkang, todos perceberam que Xi não estava a brincar. Se Zhou podia ser derrubado, qualquer um no partido podia ser.

Foi nestas limpezas partidárias que Xi eliminou qualquer sombra de contestação interna e começou a consolidar de forma irreversível o seu poder. Os julgamentos de membros do partido por corrupção no início do primeiro mandato de Xi traziam à memória as purgas maoístas mas também os ajustes de contas contra o Bando dos Quatro após a morte de Mao. Não era o cartão de visita que muitos esperariam, mas impressionou.

Por que razão um líder recém-eleito, ainda por cima alguém que passara quase toda a sua vida longe da grande política de Pequim, conseguia ter a força para derrubar figuras bem estabelecidas no topo do establishment comunista chinês? Uma das razões terá sido o facto de esse mesmo establishment ter bem clara a noção de que as lideranças anteriores haviam erodido muito do poder do partido. Nem Jiang Zemin nem Hu Jintao (sobretudo este), os antecessores de Xi, haviam exercido lideranças fortes, e o declínio da força partidária estava à vista. A corrupção e os desvios burgueses eram só mais um elemento (embora o mais visível) dessa degradação. Xi Jinping apresentava-se como o antídoto dessas lideranças fracas. O seu slogan podia ser um muito trumpiano “make PCC great again”. 

Um telegrama enviado em 2009 para o Departamento de Estado pela embaixada dos EUA em Pequim citava uma fonte chinesa, um professor não identificado, que conhecia Xi e tinha uma teoria sobre o seu percurso: "O nosso contacto está convencido de que Xi tem um genuíno sentido de que 'tem direito', acreditando que os membros da sua geração são os 'legítimos herdeiros' das realizações revolucionárias dos seus pais e, portanto, 'merecem governar a China'", lê-se no despacho diplomático que entretanto foi revelado pela Wikileaks e é citado no texto de capa da edição de 1 de outubro da revista Economist, sobre o percurso do líder chinês (e no podcast citado acima). Segundo o mesmo académico, Xi não era motivado pela ideologia, mas para sobreviver politicamente tinha decidido tornar-se “mais vermelho do que vermelho". Uma espécie de camuflagem para atingir o seu objetivo de chegar ao poder e cumprir esse “direito”. “Ao camuflar-se no comunismo, ele seria visto pela elite do partido como um par de mãos seguro”, conclui a revista inglesa. 

“O partido tudo conduz”

A experiência da desordem da Revolução Cultural, que Xi sentiu na pele, e do caos pós-soviético, que Xi seguiu de perto, reforçaram nele a convicção da necessidade de um partido forte, sob um pulso de ferro. Como diz o próprio: “Leste, Oeste, Sul, Norte e Centro - o partido tudo conduz”.

Com uma liderança firme, concentrada e não disseminada, e com o apoio total do Exército Popular de Libertação, que é, na realidade, o braço armado do partido. Acrescente-se uma doutrinação ideológica intensa e permanente desde a escola primária, a obrigatoriedade de conhecer o pensamento do líder máximo, um controlo férreo da comunicação social e das redes sociais, a repressão de qualquer sinal de dissensão mesmo em territórios distantes ou “especiais” (seja Hong Kong ou Xijiang), a edificação de um aparelho de vigilância topo de gama que recorre à melhor tecnologia de ponta e não deixa zonas de sombra num território gigantesco, e uma intervenção cada vez maior nos grandes grupos económicos, não só para mostrar quem manda, mas também para travar ambições ou concentrações excessivas de poder.

A necessidade de policiamento permanente das redes sociais, com recurso a todas as potencialidades da Inteligência Artificial, mas também com milhares de funcionários cuja única função é apagar e bloquear tudo o que cheire a crítica ou oposição, mostra bem que o descontentamento existe, e que a unidade inquestionável do povo chinês em torno do PCC e do seu líder não passa de um mito da propaganda. O descontentamento existe, a revolta de muitos é real, a vontade de oposição também, e por vezes é tal que consegue romper a formidável máquina de censura e repressão, como se viu nos protestos contra os confinamentos da covid, ou na revolta de milhões de proprietários que se recusam a pagar hipotecas de casas que nunca foram construídas.

Movimentos populares de cidadãos, operários, agricultores, estudantes, que se organizam para contestar o poder absoluto do PCC, a ausência de liberdades, todo o tipo de decisões impostas de cima, são esmagados sem hesitações. Não se trata apenas de censura, mas também de repressão violenta sobre ativistas e participantes em qualquer tipo de perturbação. Prisões arbitrárias, condenações à porta fechada, rapto de cidadãos pelas forças de segurança, deslocação forçada para regiões remotas ou internamento em “campos de reeducação” são cada vez mais comuns.

No domínio público, essas irrupções de revolta e contestação são rapidamente esmagadas por uma máquina censória cuja malha, cada vez mais fina, que proíbe o uso de um número crescente de palavras e expressões. Viu-se esse aparelho repressivo em ação na semana passada, quando surgiram duas tarjas num viaduto de Pequim exortando ao afastamento do “ditador traidor Xi Jinping” e denunciado os lockdowns contra a covid e a repressão das liberdades. As imagens desse protesto tornaram-se virais em poucos minutos nas redes sociais chinesas, mas os censores foram rápidos a apagá-las e a cancelar as contas de quem as publicou. Já não era possível escrever palavras como “protesto”, mas tornou-se impossível escrever “viaduto”, o nome da ponte ou a zona da cidade onde as tarjas foram colocadas.

Uma estimativa recente indica que só em 2020 o PCC terá gasto 6 mil milhões de dólares apenas com censura (e este não é o valor real desse sistema, porque as despesas oficiais não são todas assumidas, e uma grande parte desse trabalho é feita e paga pelas empresas de comunicação e plataformas de redes sociais que arriscam multas, procedimentos criminais e encerramento se não forem rápidas a suprimir qualquer vestígio de crítica).

Quanto à comunicação social, há muito que se habituou a ser a voz do poder, e as poucas experiências de abertura, nos anos 90 e primeira década de 2000 foram esmagadas por Xi. O Departamento de Propaganda do PCC deixa bem claro que nenhum jornalista tem autorização para noticiar o que quer que seja de forma independente - o trabalho “jornalístico” limita-se a reproduzir as notícias e reportagens da agência de notícias oficiais. Nos últimos meses, disparou a quantidade dessas histórias glorificando todos os aspetos da vida de Xi, o homem que disse que “a comunicação social deve ser absolutamente leal ao Partido Comunista”. É como se PCC fosse o nome do meio de qualquer órgão de comunicação social.

Na cúpula desta máquina colossal, um único homem, Xi, cujo pensamento foi entretanto elevado ao panteão dos grandes, lado a lado com Mao e Deng. Xi deixou de ser primo inter pares, como os seus antecessores imediatos, para ser o líder supremo. Veremos se sai deste congresso com o título de “grande timoneiro”, ou de “presidente Xi”, como Mao. Nos campeonatos da concentração de poder e do culto de personalidade, Xi chegou tão longe como Mao e Deng. Resta saber se conseguirá marcar a história da China também noutros planos, mais substanciais.

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