Comissão Von der Leyen 2.0. Um executivo "mais à direita" com sobreposição de pastas, onde uma portuguesa "pode vir a desempenhar um papel importante"

17 set, 22:00
Ursula Von der Leyen apresenta composição da sua próxima Comissão Europeia (Teresa Suarez/EPA)

Há uma ou outra surpresa na composição do novo executivo comunitário, que Ursula Von der Leyen apresentou esta terça-feira em Estrasburgo. O quem é quem está delineado, a França de Macron é a que sai mais a ganhar (para já) e tudo o resto está em aberto. Processo formal de audições aos comissários indigitados arranca amanhã

Houve quem previsse que estaria reservada a Maria Luís Albuquerque uma pasta como a das Pescas na segunda Comissão Von der Leyen, mas a presidente do executivo comunitário tinha outros planos.

Após intensas semanas de negociações com os governos nacionais – e exigências de mais paridade de género, com uma proposta final que integra 40% de mulheres comissárias, quatro delas vice-presidentes – confirmou-se esta terça-feira que a antiga ministra das Finanças de Portugal ficará a cargo de um portfólio que abrange a integração dos mercados financeiros na Europa, o reforço do investimento privado em áreas estratégicas (como a Defesa) e a “difícil” pasta da união dos mercados de capitais.

“A questão do mercado único de capitais é um tópico político difícil, e não estou muito otimista que a UE consiga investir profundamente nisso – há vontade política suficiente para avançar e para resolver as disputas existentes, agora resta saber se isso será suficiente”, aponta Victor Warhem, do Centre for European Policy (CEP) em França.

Com um novo nome, a pasta atribuída à comissária nomeada pelo governo português – “crucial”, nas palavras de Luís Montenegro – envolve áreas financeiras que prometem agitar as águas comunitárias nos próximos anos. Na carta de missão que enviou à portuguesa, Von der Leyen elogia a experiência da antiga ministra das Finanças e sublinha que a sua tarefa principal será "desbloquear o montante substancial de investimento privado necessário salvaguardando, ao mesmo tempo, a estabilidade financeira" da UE.

“Albuquerque pode vir a desempenhar um papel importante, os serviços financeiros vão seguramente registar evoluções, e [a comissária portuguesa] pode tornar-se importante se França e a Alemanha finalmente chegarem a acordo quanto aos eurobonds, que neste momento são a forma mais fácil de expandir o orçamento da UE”, adianta o especialista em assuntos europeus.

Se o impasse entre França e a Alemanha for resolvido, o papel a desempenhar por Maria Luís Albuquerque será importante, diz o analista Victor Warhem - Luís Montenegro fala numa pasta "crucial" Foto: Getty Images

O tabu dos eurobonds

Com a apresentação do relatório Draghi, um documento assinado pelo antigo primeiro-ministro de Itália e bastante aguardado nos corredores de Bruxelas, que delineia aquelas que devem ser as prioridades da Comissão Europeia nos próximos anos no rescaldo da pandemia Covid e em plena guerra na Ucrânia, fala-se de um pacote de até 350 mil milhões de euros para a reindustrialização da Europa.

Esse pacote seria financiado com os chamados eurobonds, ou euro obrigações – emissão de títulos de dívida pelos 19 países que integram a Zona Euro para financiar diferentes projetos de revitalização económica no bloco, em particular uma indústria europeia de Defesa mais robusta, uma das principais linhas orientadoras do novo mandato de Ursula Von der Leyen.

Fontes familiarizadas com o processo dizem que as discussões ainda estão “numa fase inicial”, até porque esta é uma questão sensível que, há muito, opõe Paris e Berlim – após as eleições europeias do início de junho, o chanceler alemão, Olaf Scholz, voltou a repetir que os eurobonds “não são a forma certa” de melhorar a cooperação em matéria de Defesa, uma posição diametralmente oposta à do presidente francês, Emmanuel Macron.

Na mesma altura, jornais dedicados a assuntos europeus como o Euractiv já antecipavam que “o financiamento da defesa poderá ser a próxima grande batalha travada dentro da UE”, já depois de a Euronews referir, por alturas da cimeira europeia de março, “o tabu das obrigações de defesa”.

Há receios em Bruxelas de que as obrigações iminentes no pós-pandemia e o custo de uma guerra que se prevê longa contra a Rússia afetem o poder de compra da UE nos próximos cinco anos – algo que Mario Draghi deixou claro no seu antecipado relatório, ao advertir que a relutância dos Estados-membros em dar à Comissão poderes para aumentar a receita e gerar mais dinheiro deixa a UE à beira de uma crise orçamental debilitante.

Num discurso aos eurodeputados na sessão plenária desta terça no Parlamento Europeu, Draghi não fez referência aos eurobonds mas ressaltou que "a Europa enfrenta uma escolha entre a saída, a paralisia ou a integração", delineando a sua agenda de competitividade que exige "um financiamento anual de entre 750 e 800 mil milhões de euros".

“Há discussões quanto a este novo pacote de 350 mil milhões angariados através dos eurobonds, não sei bem em que ponto estão”, indica Victor Warhem. “Temos de esperar para ver, mas neste contexto, Maria Luís Albuquerque pode desempenhar um papel importante, a sua pasta está ligada a diferentes questões, desde a indústria à defesa e ao orçamento.”

Draghi foi a Estrasburgo esta sexta-feira apresentar as suas recomendações para reforçar a competitividade da UE, menos de uma semana depois de apresentar um antecipado relatório sobre a situação económica e financeira do bloco Foto: Teresa Suarez/EPA

Quem é responsável pelo quê? “Esperar para ver”

Apresentada a composição do novo executivo, “é interessante ver que há uma grande sobreposição de pastas entre as seis vice-presidências e os diferentes comissariados”. Um exemplo: a pasta de Maria Luís Albuquerque sobrepõe-se à nova pasta da Economia e Produtividade, a cargo do comissário da Letónia, Valdis Dombrovskis, e de outros, como a do comissário polaco Piotr Serafin (Orçamento, Anti-Fraude e Administração Pública) ou da búlgara Ekaterina Zakharieva (Startups, Investigação e Inovação, outra novidade). Outro exemplo: o comissário da Lituânia, Andrius Kubilius, ficou com a pasta Defesa e Espaço, que liga diretamente à pasta do vice-presidente francês Stéphane Déjourné, responsável pela Prosperidade e Estratégia Industrial.

“Em termos de conteúdo, não há grandes surpresas, talvez apenas a atribuição da pasta da Defesa à Lituânia”, aponta o analista do CEP. “O país tem incomodado a Rússia e isto pode ser uma forma de passar uma mensagem à Rússia, mas não é o mesmo que dar esta pasta a França, o que infelizmente, na minha opinião, reduz a importância deste tópico. Mas dito isto, ainda não sabemos como é que todas estas pastas vão interligar-se, os novos nomes incluem muitas das palavras-chave das orientações apresentadas por Von der Leyen em junho e que constam do relatório Draghi.”

Num discurso em Estraburgo, após ter estado reunida com os presidentes dos grupos políticos do Parlamento Europeu para lhes apresentar a sua equipa, Von der Leyen defendeu a sua aposta em "prioridades fundamentais alicerçadas na prosperidade, na segurança e na democracia, num contexto marcado pela competitividade na dupla transição" e abandonando "os processos compartimentados e inflexíveis", nas palavras da alemã "uma das principais recomendações do relatório Draghi".

Para Warhem, a distribuição dos cargos mostra que “os vice-presidentes vão basicamente fazer o que lhes mandarem fazer”, ainda que exista uma outra leitura possível. “Alguns dizem que estas linhas difusas entre pastas e entre vice-presidências traduzem concessões de Von der Leyen para obter as garantias necessárias para aprovar o próximo orçamento comunitário, o que também é uma possibilidade. Neste momento é difícil perceber que tópicos vão ficar com que comissários, temos de esperar para ver – mas não me parece que Macron e Séjourné deixem o poder todo nas mãos de Von der Leyen.”

Comissários indigitados por Ursula Von der Leyen para o novo executivo comunitário Foto: Comissão Europeia

“Voz de Macron” – e o que aí vem

A grande surpresa em relação à nova Comissão Von der Leyen surgiu não hoje, mas na segunda-feira de manhã, com a demissão relativamente inesperada do comissário francês Thierry Breton. Numa carta aberta, o antigo ministro francês das Finanças alega pressões sobre França para que escolhesse outro candidato em troca de uma pasta “alegadamente mais influente” para o país.

“Há alguns dias, no último trecho das negociações sobre a composição do futuro colégio [de comissários], [Von der Leyen] pediu a França que retirasse o meu nome – por razões pessoais que, em momento algum, discutiu comigo – e ofereceu, como contrapartida política, uma pasta alegadamente mais influente a França”, acusou Breton na carta de demissão, que divulgou na rede social X.

“A substituição de Breton por Stéphane Séjourné diz-nos duas coisas”, aponta Victor Warhem quando questionado sobre a aparente jogada de bastidores. “A primeira, que Macron e Von der Leyen querem reinar no seu próprio poder e livraram-se de um terrível opositor. E ao mesmo tempo, diz-nos que Macron está a impor a sua voz, porque Séjourné é a voz de Macron, ele é 100% leal a Macron, até às custas do [novo primeiro-ministro francês] Michel Barnier. O presidente Macron sai reforçado com esta nova posição na nova Comissão Europeia.”

A outra capital que parece ter saído a ganhar foi Roma, numa aparente cedência de Von der Leyen a Georgia Meloni para garantir o apoio do grupo parlamentar da primeira-ministra italiana nas votações do orçamento. Com a atribuição de uma das vice-presidências a Raffaele Fitto, que fica a cargo da Coesão e Reformas, assistimos a “uma espécie de vitória de Meloni”, admite Warhem, “mas ao mesmo tempo, e embora seja importante, esta não é uma pasta-chave, Fitto terá obviamente influência, mas não tanta quanto Séjourné – e nesse sentido, a escolha surpreende-me tanto quanto a posição atribuída à comissária espanhola”. Também vice-presidente da nova Comissão, Teresa Ribera Rodríguez assume a pasta da Transição Verde, “um grande portfólio que provavelmente a colocará ao leme do novo Plano Industrial do Pacto Ecológico introduzido por Von der Leyen, juntamente com Séjourné”.

A nomeação de Stéphane Séjourné, antigo ministro francês que foi eurodeputado entre 2019 e 2024, “traduz o regresso do motor francês pela porta dos fundos”, diz Victor Wahrem Foto: Thomas Padilla/AP

A nova “voz de Macron” dentro da Comissão Europeia também poderá “facilitar o trabalho entre Von der Leyen e o presidente francês, ambos menos protecionistas que Thierry Breton” mas, acima de tudo, “traduz o regresso do motor francês pela porta dos fundos”. Contudo, o nome do comissário poderá ser um dos mais contestados quando chegar a hora de os eurodeputados aprovarem a nova Comissão Europeia.

Para quarta-feira está marcada uma conferência de imprensa do presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu sobre o que vai acontecer com os comissários indigitados, marcando o início do processo formal de audições dos nomes apontados por Von der Leyen para o executivo. E Victor Warhem diz que quase tudo está em aberto. 

“Em termos de equilíbrio político, esta comissão pende muito mais para a direita do que a anterior e, como é sabido, são necessários os votos da extrema-direita [para ser aprovada]. Com a nomeação de Fitto, o grupo de Meloni não deverá opor-se, mas alguns comissários podem ser rejeitados e isso é algo que temos de ter em conta.” 

Para o analista, da lista de candidatos mais tremidos consta o austríaco Magnus Brunner, nomeado para a pasta de Assuntos Internos e Migrações, quando faltam menos de duas semanas para as legislativas no país, onde o Partido da Liberdade (FPÖ) pode sair a ganhar.

“Brunner ficou com uma pasta-chave para a Áustria, ele que vem de um governo bastante anti-imigração e de um país onde essa postura deverá manter-se, especialmente se a extrema-direita chegar ao poder. Brunner poderá ser uma preocupação, e talvez também Séjourné – mas é muito cedo para saber, para perceber o equilíbrio de poderes e como é que cada candidato vai ser recebido.”

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