Nem o governo nem o ministro explicaram o motivo da saída, mas os especialistas acreditam que divergências e a incapacidade do governante são justificações plausíveis
Pode-se dizer que ninguém foi apanhado de surpresa pelo pedido de demissão do ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba. Esta terça-feira, o líder do partido de Volodymyr Zelensky no parlamento, David Arakhamia, já tinha anunciado, sem qualquer justificação, uma “mudança importante” no executivo, podendo mesmo atingir metade dos membros do Conselho de Ministros.
“Zelensky quer refrescar o seu executivo”, diz à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira. “É evidente que nada disto teria o mediatismo que tem se o país não estivesse em guerra. Dmytro Kuleba ocupa esta pasta há quatro anos”, diz o especialista militar, que afirma que, num país que não está em guerra, esta substituição seria “normal”.
Kuleba não justificou o motivo da saída, mas, para Morais Pereira, é “claro que há divergências” e, “num país em guerra”, é tudo o que não se pretende. Do lado do governo também não se houve nenhuma explicação concreta. No Telegram, o presidente ucraniano referiu a necessidade de “dar uma nova força às instituições governamentais” neste outono.
“As nossas instituições estatais devem estar configuradas de forma que a Ucrânia possa alcançar todos os resultados que precisa – para todos nós. Para tal, decidimos reforçar algumas áreas do nosso governo, e foram preparadas decisões a nível de pessoal. Também vai haver mudanças no nosso gabinete. Espero que a certas áreas das nossas políticas externa e doméstica seja dada uma ênfase ligeiramente diferente”, disse o líder ucraniano.
A demissão de Kuleba não foi a primeira desta nova vaga de mudanças. Esta terça-feira, Oleksandr Kamyshin, ministro das Indústrias Estratégicas, Denys Maliuska, ministro da Justiça, Ruslan Strilets, ministro do Ambiente e dos Recursos Naturais, e também Olha Stefanishyna, vice-primeira ministra para a Integração Europeia e Euro-Atlântica, anteciparam-se a Zelensky e apresentaram um pedido de saída.
Também Olha Stefanishyna, vice-primeira-ministra para a Integração Europeia e Euro-Atlântica, Iryna Vereschuk, vice-primeira-ministra, e Vitaliy Koval, líder do Fundo Estatal de Propriedades da Ucrânia, manifestaram intenção de abandonar o cargo. Porém, no caso destes dois últimos, a demissão não foi aceite pelo parlamento.
Sobre o caso do ministro Kuleba, Morais Pereira afirma que esta “é a forma mais elegante de sair”, e Jorge Botelho Moniz, comentador da CNN Portugal, considera que a antecipação do governante é “menos má a nível de imagem para Volodymyr Zelensky, que teria de forçar um ministro a sair. No entanto, prevê que os críticos do presidente digam que “o senhor está desgovernado”.
“Já demitiu no passado o ministro da Defesa, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, agora o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, e não fica por aqui. É uma remodelação grande”, afirma Botelho Moniz, que explica alguns dos motivos que podem ter levado o chefe de Estado a querer afastar o seu ministro dos Negócios Estrangeiros.
“Zelensky parece estar a querer preparar um outono diferente. Dmytro Kuleba era uma figura particularmente importante porque, sendo ministro dos Negócios Estrangeiros, era o principal diplomata do governo de Kiev. O facto de ele não ter conseguido alcançar alguns dos objetivos principais do apoio internacional, em particular dos EUA, no que diz respeito ao desbloquear de verbas rapidamente e à permissão do uso de armas de longo alcance contra território russo. Kuleba também teve muitas dificuldades em garantir que a defesa aérea conseguisse ser algo garantido e que não acontecesse o que aconteceu em Poltava”, apontou, mencionando o ataque que vitimou mais de 50 pessoas na manhã desta terça-feira.
Sinal de fragilidade?
Questionado sobre se esta renovação evidencia alguma debilidade do executivo ucraniano, Botelho Moniz afirma que mostra pelo menos “que é necessário fazer alguma coisa diferente”.
“Zelensky sabe que precisa de algo novo na Defesa, na Energia e nos Negócios Estrangeiros. Já apresentou o Plano para a Vitória, mas sabe que é muito difícil de o alcançar. Ele precisa de algo diferente. A incursão em Kursk é algo diferente. Zelensky acredita que, internamente, é preciso mexer as coisas. Acredito neste momento que pense como Sócrates, não o nosso ex-primeiro-ministro, mas o filósofo: se quer resultados diferentes, precisa de ter uma tática diferente”, começa por elencar.
“Kuleba não foi a tática diferente que Zelensky queria a nível diplomático. O terceiro ponto do Plano para a Vitória passa precisamente pela diplomacia, e o segundo ponto passa pela inclusão da Ucrânia numa estrutura internacional de defesa que garanta a sua segurança, a NATO. A próxima pessoa terá de reforçar esses canais diplomáticos”, conclui.
Por sua vez, Tiago André Lopes, comentador da CNN Portugal, acredita que esta renovação “pode ser vista de duas formas”. “Por um lado, é sempre positiva uma reformulação governamental. É sangue novo. Este é um governo com uma pressão política maior e, em parte, Zelensky está a jogar isto como deve ser porque quando for aos EUA já vai com um elenco governamental novo para apresentar”, explica.
“Por outro lado, temos de pensar como é que analisaríamos se víssemos uma demissão desta escala do lado de Moscovo. Estaríamos a analisar fragilidade e fraqueza. Isso também tem de ser colado a Kiev. Há, claramente, fragilidade. Uma coisa é demitir ministros como o da Justiça ou do Ambiente, são importantes, mas não cruciais. Quando entramos em pastas como as Indústrias Estratégicas, que produzem armamento, ou os Negócios Estrangeiros, e Kuleba é, de facto, uma das figuras mais populares de governo ao nível internacional, é crítico”, diz Tiago André Lopes.
Botelho Moniz olha para a questão de outro prisma. “50% parece um número significativo, mas são 30 meses de guerra, muito desgaste no campo e na frente de batalha, muito desgaste interno. É natural que, mais cedo ou mais tarde, Zelensky precisasse de uma renovação maior. Isto seria impensável num governo em Portugal, mas este é um caso muito especial, está a ser aplicada a lei marcial.”