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Um festival de amigos e melómanos #VodafoneParedesDeCoura

20 ago 2022, 18:02

Existe um concurso novo na RTP que testa o conhecimento geral de famílias, mais especificamente de cinco pessoas com elos familiares entre elas. Há uns dias, perante a emissão desse programa, encarnei aquilo que sou – um indignado crónico de meia idade – e barafustei com o próprio televisor quando assisti às falhas clamorosas em resposta a uma pergunta. Dos cinco concorrentes, nenhum sabia o significado da palavra “melómano”. Nas hipóteses de escolha múltipla, se não estou em erro, havia opções como “pessoa que gosta de mel” ou “pessoa que gosta de melancia” – por mais absurdas que pareçam, qualquer uma delas foi mais escolhida do que a resposta certa. “Só podem estar a gozar comigo”- berrei da poltrona.

Talvez esteja a ser injusto e pedante; lá porque palavras e música estão na minha cartilha de preferências, não faz com que a definição de melomania pertença, de caras, ao compêndio do “conhecimento geral”. No entanto, os últimos dias não me têm ajudado a abandonar o refilanço de sofá em relação àquela pergunta; é que a melomania anda por Coura, tão abundante e clara que me parece uma qualidade essencial, uma definição elementar. Por estes dias, mais grave do que não saber o que é um melómano só, talvez, não sê-lo.

Se me acham pretensioso, juro que só quero estar elogioso. O Paredes de Coura não será, certamente, o único festival onde a música ainda constitui o factor mais importante, nem o único a rejeitar a tendência feira-popular, feira das vaidades. Também, convenhamos, não está absolutamente imune ao espírito “colónia de férias dos meninos rebeldes”. Mas, que eu seja surdinho se não é um festival exemplar por, para além do cartaz, também convocar um público exemplar.

Sinto, ainda, que é o festival em que mais facilmente amigos se congregam (e congregações se tornam amigas), não por um artista em especial, mas pela melomania em geral. É por isso que os meus relatos desta edição do Paredes de Coura, por muito que soem ensimesmados, estão eles também baseados na confiança que deposito naquelas criaturas exemplares: os melómanos courenses.

Muito do que aqui tenho trazido (embora tisnado pelas casmurrices da minha escrita) tem também o crivo das opiniões dos amigos com quem converso. Estou cercado de ouvidos sensatos e críticos, e que raio de criatura seria eu se não aproveitasse as riquezas que me cercam? A provar a confiança total na criteriosidade musical dos meus comparsas, exponho a manobra mais flagrante: o meu destaque maior do dia de ontem vai para um concerto a que nem sequer assisti.

Antes, ainda selecciono duas actuações onde marquei presença e que preciso destacar. Primeiro, a Márcia. Quem sabe da minha relação próxima com a Márcia pode levantar o sobrolho em suspeita. Este destaque soa a amiguismo evidente. E têm razão, isto é mesmo amiguismo. Mas há algo a clarificar: a génese da minha amizade com a cantora sucedeu por intermédio dum enorme entendimento musical. Assim sendo, não há vestígio de amizade que não contenha profunda admiração artística.

Estive ao lado de dois músicos da nossa praça durante o concerto da Márcia. A qualidade de escrita dela, e a sensibilidade que transpira, punham-me a tecer comentários junto dos músicos que me ladeavam – comentários tão amistosos quanto técnicos; sempre maravilhados. E, embora eu compreenda a necessidade de promover com atenção particular as nossas cantoras-compositoras (as “mulheres da música”) com a Márcia tenho dificuldade em fazer tal compartimentação. Não sou eu que lhe dou atenção especial; é a qualidade dela que me acciona toda a atenção.

Falo ainda do Ty Segall, devidamente acompanhado pela Freedom Band. Trata-se de uma figura que tenho seguido com diligência na última década e, não sendo o concerto mais entusiasmante que dele já vi, ontem o californiano voltou a cumprir com esmero os desígnios roqueiros do palco principal. Depois de Idles e de Turnstile, a electricidade das guitarras de Segall & Companhia parecia provocar, entre os eufóricos, a pressa de escavar mais um mosh pit. A poeira levantou-se com toda a ivetesangalosidade, mas o alinhamento escolhido pela Freedom Band era, claramente, voltado para uma fruição menos enérgica e gesticulante. Ao ver a garotada mais movimentada junto às grades, recordei-me da minha própria adolescência, quando andávamos tão viciados na moshada que já quase qualquer música servia de receita para caos e nódoas negras. Em meados dos 90, até com o riff de guitarra da Latin’América (num concerto a solo do Luís Portugal) cometemos o pecado de armar a confusão total. Como diria o bom Segall (de forma teologicamente certíssima): “Thank God for sinners”.

Finalmente, o grande destaque do dia vai para o tal concerto que não vi. Juram-me a pés juntos que a noite pertenceu a The Blaze. Não preciso da jura, nem dos pés juntos, que a palavra de melómanos courenses vale tanto quanto os seus ouvidos: vale tudo!

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