Vodafone Paredes de Coura: “Porta-te bem, meu rapaz”. Sam the Kid em palco com os avisos do avô

17 ago 2022, 09:10

Dois anos depois, o festival de Paredes de Coura está de regresso com chuva, como é seu apanágio. Ontem, o primeiro dia de festival fez-se com uma maratona de mais de doze horas de música portuguesa. O concerto da noite foi o de Sam the Kid, acompanhado por uma orquestra e pelos Orelha Negra. E atenção: os australianos King Gizzard & the Lizard Wizard cancelaram o concerto desta quarta-feira

Não há mesa de madeira nem cadeira giratória de escritório. O bocado de quarto onde Sam the Kid compõe desde adolescente – o MPC no meio da desarrumação, intocável – não foi transferido para palco em contexto de festival. Foi-o em Maio no Campo Pequeno, não o foi no Sol da Caparica nem agora em Paredes de Coura.

São onze e quarenta da manhã e no palco principal está o rapper de Chelas acompanhado de uma orquestra, dirigida pelo também saxofonista Pedro Moreira, filho de um histórico do clube de jazz Hot Clube de Portugal, Bernardo Moreira. O projecto é completado pelos Orelha Negra e estão a fazer o sound check. São onze e quarenta da manhã e o recinto está vazio, atrás do palco há uma parede de árvores de um verde imperial imponente, silencioso, e o cinzento por igual do céu forma uma neblina branca suave. Chove. Ouve-se Sangue, um tema do segundo álbum Sobre(tudo), de 2001, tinha Sam the Kid (STK) 21 anos.

Vai ser o concerto da noite. Arrepia ouvir STK com orquestra e Orelha Negra nos vídeos com excertos de actuações colocados no Youtube. A expectativa de ouvi-los ao vivo tem um efeito de suspense, sabemos ao que vamos. São agora onze e quarenta mas da noite e Samuel Mira diz para o público que, apesar de ser difícil criar a intimidade de um quarto num contexto como o de um festival a céu aberto, quer partilhar as memórias de quando o avô o ouvia a compor no quarto, enquanto “fazia puzzles do outro lado da porta”. O anfiteatro está cheio, compacto.

Ouve-se de seguida o sample da voz da cantora norte-americana Millie Jackson, retirado da canção (If Loving You is Wrong) I Don’t Want to be Right, de ’74, e Sam the Kid começa a cantar Sangue: entra na porta e sente o obscuro anonimato/ compreende o presente e actua no momento exacto/ não ambiciono o trono, não quero nem tenho dono/ eu sei que ‘tou a dormir mas não consigo sair do sono”. Logo quando diz “obscuro anonimato”, entra a linha de orquestra e é um momento musical lindíssimo. Há uma leveza singular conferida às palavras de Sam the Kid. Sangue é o tema mais bem conseguido da parceria com o ensemble reunido por Pedro Moreira. No ecrã de fundo do palco, é projectada uma montagem gráfica de fotos de família do rapper, bilhetes de identidade, passes de transportes públicos, intercalados com peças de puzzle geradas por computador a caírem. No final da canção, uma gravação do avô, que também sabia rimar, versa assim: “eu já tive a tua idade/ e tu para aqui virás/ na altura, não havia tanta vaidade/ porta-te bem, meu rapaz”.

O concerto começou às 23 e 30 em ponto. As actuações começam de forma pontual, higiénica, de modo a que o público consiga ouvir tanto os concertos do palco Vodafone como os do palco secundário, o Vodafone FM. Um homem de camisa preta começa por declamar “na noite em que tu nasceste o Américo Faria/ ofereceu-me um golfinho/ era de vidro esse delfim/ eu não cabia em mim, tal era o deslumbramento”. Samuel entra, de fato de treino e chapéu panamá de pano brancos – sim, chapéu panamá –, e diz: “pessoal, este é o meu pai, Napoleão Mira. O meu nome é Samuel Mira. Estamos aqui em família.”

Passaram, diz, 20 anos desde que tocou em Paredes de Coura. E é chamado o primeiro convidado, NBC. Os temas das canções são sempre de pele, em STK: a origem, as raízes, a família, Chelas, a não cedência ao sistema, ser imperativo manter-se fiel à arte, a hipocrisia da indústria. É o que ambos cantam em Juventude, canção do álbum Pratica(mente): “Boatos querem alvos mas erram na pontaria/ Miséria que é companhia na terra da chibaria”. E, mais à frente: “Só quero tar informado com vontade de saber mais/ Criticado por não ser criticado pelos reais”.

Depois de Sangue, chega novo convidado, Mundo Segundo. O rapper de Gaia e o rapper de Chelas cantam em duo a canção, da autoria de ambos, Tu Não Sabes: “tagarelas, cobardolas/ só balelas, só artolas/ Gaia, Chelas, não controlas”. O público canta, conhece a letra, a noite vai avançada, o álcool ajuda. Até porque a tarde de concertos começou cedo.

Mas é no tema seguinte que o público sabe a letra toda de cor. É um clássico de STK: Não Percebes o Hip Hop.  Aqui já se percebe que este é de longe o melhor concerto da noite. É fácil, e natural, a Samuel Mira encher o espaço com música, o do palco, o do público, o físico, o emocional. Forma-se uma enorme massa de conforto no recinto a que se chama “isto é perfeito”, apesar do tempo cronometrado do concerto. Seguem-se Retrospectiva de um Amor Profundo, Hereditário. O pai volta para junto do filho, que é também filho de J Dilla pelas referências claras – principalmente nos primeiros trabalhos – na composição musical. Em 16-12-95, um rap “de sete minutos”, Sam the Kid efabula sobre uma noite de amor aos 16 anos em que a rapariga, chamada Sofia, engravida e toda uma vida a dois se sucede: “só amava a criança, ela já não me atraía/ porque eu tirava a aliança cada vez que eu a traía.

A seguir, vem o estrondo. Dedicado ao rapper Barbosa, aka GQ, falecido em 2012 num acidente de mota, falamos de Poetas de Karaoke. São grupos e grupos de amigos no público a dançarem a música abraçados e aos pulos, a cantarem-na a plenos pulmões. Tudo em uníssono: “dizem que cantam hip hop, mas não dizem nada/ vêm com poesia mas é só fachada/ o português não está cansado eles vêm com o inglês/ eu pratico praticando a nossa língua outra vez/ seja hip hop, seja rock são poetas de karaoke”!! A propósito, Sam the Kid tem um podcast intitulado Assim ou Assado, em que coloca questões relacionadas com a coloquialidade da língua portuguesa ao professor da Universidade Nova de Lisboa Marco Franco Neves.

O dia de concertos, neste que é dedicado à música portuguesa numa maratona em versão speed date cujo circuito é traçado no percurso cá e lá entre os dois palcos, começou cedo e bastante chuvoso. Foi neste ambiente que a actuação de Noiserv no palco secundário foi especialmente mignon, serviu para aconchegar o público do frio. Rapaz multi-instrumentista e one man show, de ténis All Star cinzentos e t-shirt às riscas, a música encantatória que sai dos teclados, guitarra e voz que resultam em samples gravados e sobrepostos em loop por David Santos transporta-nos para um mundo onírico. Mesmo que a letra não seja propriamente pêra doce, como é o caso de Neutro, do disco mais recente Uma Palavra começada por N. No final do concerto, um apontamento de poesia: Noiserv sai do palco e ficam os samples de instrumentos e de voz a tocar. Arranjou maneira de ficar lá sem ter ficado.

Antes, no palco principal, o som pujante da guitarra e percussão de influências tuaregue do projecto de Tó Trips e João Doce, Club Makumba, invadiu os corpos dos festivaleiros, a chegarem aos poucos ao recinto, e a lembrá-los que, apesar da chuva, o Inverno ainda se quer longe.

Apontamento também para a actuação do trio portuense 10.000 Russos. Uma encarnação sólida do classicismo do krautrock, a toada fime e linear da bateria de João Pimenta (que é também o vocalista e cuja voz tem ressonâncias a Mark E. Smith dos The Fall) é o pilar da estrutura musical das composições do trio. Confere ao som uma intensidade em crescendo, compacta. É a antítese da plasticidade tanto sonora como performativa de Hélio Morais na bateria dos Linda Martini, que tinham tocado antes no palco principal, agora acompanhados por Rui Carvalho, o guitarrista Filho da Mãe, em substituição de Pedro Geraldes. O uso dos pedais pelo guitarrista de 10.000 Russos, Pedro Pestana, coaduna-se com a t-shirt que tem vestida, com a palavra “Fuzz” impressa – é uma marca de pedais mas é também o nome da editora londrina que lhes editou o disco Superinertia em Setembro do ano passado, a Fuzz Club Records.

Já os Mão Morta, depois de Linda Martini e antes de Sam the Kid, anunciaram o fim dos tempos. Se antes a banda de Braga falava do caos e do sujo e da falta de sentido do mundo terreno, agora passou esses conceitos do plano terrestre para o da ascese. Há, conta Adolfo Luxúria Canibal, uma força superior, extraterrestre, que vem acabar connosco. Uma força de cima, exterminadora. A distopia, a “mancha negra”, tomou conta da narrativa do diseur que se tornou num poeta do dilúvio (para fazer jus à meteorologia).

As duas últimas notas vão para Bruno Pernadas e Conjunto Corona, no palco mais pequeno. Ponto assente: tudo o que Bruno Pernadas faz é bom. Mas a escolha do alinhamento e o som relativamente baixo não fez do concerto um vencedor. Já Conjunto Corona estiveram iguais a eles próprios, mas a jarda – ou a falta dela – não deu para compensar a insuficiência de voz do seu Mcing. Como dizia alguém no público, “eles hoje estão lentos”, com a mesma pronúncia nortenha com que eles personificam o bimbo acima do Mondego. A expectável Santa Rita Lifestyle não conquistou o show, mas conquistou a genial Mãe, Birei Gandim, cuja letra reza: “três gramas, três gramas, duas noites de hotel”.

Com tanta pontualidade, esteve mal o facto de o concerto de Moullinex começar quinze minutos antes da hora, cujo barulho matou o final da actuação de Conjunto Corona, sempre bem acompanhados por projecções em fundo de bombas de gasolina, “gajas boas”, garrafas de Coca-Cola a rodopiar e a Nossa Senhora vestida de lingerie sexy preta.

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