Putin quer que saiba que não se vai deixar humilhar

CNN , Michael Bociurkiw
11 out 2022, 16:00
Presidente da Rússia, Vladimir Putin (SERGEY GUNEEV/EPA via Lusa)

OPINIÃO | Michael Bociurkiw (@WorldAffairsPro) é um analista de assuntos globais. É membro sénior do Conselho Atlântico e antigo porta-voz da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. É um colaborador regular da CNN. As opiniões expressas neste comentário são suas

Mesmo no meio de uma alegria irreprimível aqui na Ucrânia, na sequência de uma explosão imensa que atingiu a enorme e estratégica ponte do Estreito de Kerch durante o fim de semana, os receios de retaliação por parte do Kremlin não desapareceram.

Nesta segunda-feira, aconteceu o esperado.

De manhã cedo, os ataques de mísseis atingiram a capital Kiev pela primeira vez em meses e em áreas bastante mais próximas do centro do poder.

O bombardeamento russo em grande escala atingiu várias cidades em todo o país quase simultaneamente, incluindo zonas mais distantes da Ucrânia ocidental perto do flanco oriental da NATO, impelindo o conflito para uma nova fase e fazendo com que o país andasse uns meses para trás.

Os ataques ocorreram enquanto as pessoas se dirigiam para o trabalho e as crianças eram deixadas nas escolas. Uma amiga em Kiev enviou-me uma mensagem a dizer que tinha acabado de sair de uma ponte, dez minutos antes de ser atingida. É uma das ucranianas mais resilientes que conheço, simplesmente escreveu: “Não estou bem neste momento.”

Carros queimados após um ataque militar russo no centro de Kiev, Ucrânia, 10 de outubro (Associated Press)

Um vídeo nas redes sociais mostrou os ataques perto da Universidade Nacional Taras Shevchenko de Kiev e perto da Praça Maidan, a apenas uma pequena distância do edifício do gabinete presidencial. De acordo com as autoridades ucranianas, cinco pessoas foram mortas em resultado dos ataques à capital.

Foram também reportados ataques nas cidades de Dnipro, Zhytomyr, Ivano-Frankivsk, Sumy, Kharkiv, Lviv e Mykolaiv.

A partir do meio-dia, a área à volta do meu escritório em Odessa permaneceu assustadoramente silenciosa entre as sirenes de ataque aéreo, com relatos de que três mísseis e cinco drones kamikaze foram abatidos. (Normalmente a esta hora do dia, os restaurantes próximos estariam repletos de clientes, tagarelando sobre os planos para os próximos casamentos e festas).

Os ataques de segunda-feira também vieram apenas algumas horas depois de Zaporizhzhia, cidade do sudeste perto da maior central nuclear da Europa, ter sido atingida por múltiplos ataques a edifícios residenciais, enquanto as pessoas dormiam. Morreram pelo menos 19 pessoas e mais de uma centena ficaram feridas.

Num vídeo filmado no exterior do seu gabinete na segunda-feira, um destemido presidente Volodymyr Zelensky disse que muitos dos cerca de 100 ataques de mísseis na Ucrânia tinham como alvo as infraestruturas energéticas do país. Foram danificadas pelo menos 11 infraestruturas importantes em oito regiões e na capital. “Algumas províncias estão sem energia”, indicou o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal.

Uma nação de volta à vida

Em cenas que lembram os primeiros dias da guerra, quando as forças russas se aproximaram da capital, alguns meios de comunicação de Kiev moveram temporariamente as suas operações para abrigos antibombas subterrâneos. Numa estação de metro que servia de abrigo, um grande número de pessoas abrigou-se nas plataformas enquanto um pequeno grupo cantava canções patrióticas ucranianas.

A pedido das autoridades, milhões de pessoas espalhadas pelas cidades da Ucrânia irão passar a maior parte do dia em abrigos antibombas e foi pedido às empresas que passassem a trabalhar a partir de casa. De acordo com a rádio local, o ministro da Educação apelou também ao ensino à distância para as crianças até sexta-feira.

Tal como muitas regiões da Ucrânia estavam a começar a voltar à vida normal, e com inúmeros requerentes de asilo de regresso a casa, os ataques arriscam-se a causar outro golpe na confiança comercial.

O significado da Ponte da Crimeia para Putin

De certa forma, os ataques de segunda-feira não foram uma surpresa, especialmente depois de o presidente russo Vladimir Putin ter acusado Kiev de atacar a ponte Kerch, chamando-lhe um “ato de terrorismo”.

Para Putin, o simbolismo da única ponte que liga a Rússia continental e a Crimeia não pode ser sobrestimado. O facto de o ataque se ter realizado um dia após o seu 70.º aniversário (a coincidência levou à criação de um vídeo de Marilyn Monroe cantando 'Happy Birthday, Mr. President' ao lado do bombardeamento da ponte) pode ser interpretado como um golpe adicional a um autocrata envelhecido cuja capacidade de resistir à vergonha e humilhação é provavelmente nula.

Construir projetos dispendiosos e quebrar recordes em territórios recentemente ocupados parece ser uma tendência entre ditadores. Em 2018, Putin inaugurou pessoalmente a ponte Kerch, a mais longa da Europa, ao atravessá-la ao volante de um camião. Nesse mesmo ano, uma das primeiras coisas que o presidente chinês Xi Jinping fez depois de Pequim ter recuperado Macau e Hong Kong foi ligar os antigos territórios portugueses e britânicos com a ponte marítima mais longa do mundo. A ponte rodoviária de 20 mil milhões de euros, de 33 quilómetros, foi inaugurada após cerca de dois anos de atrasos.

Para acrescentar ao sentimento de humilhação de Putin, a explosão da ponte ocorreu durante uma  contraofensiva ucraniana que apreendeu áreas importantes do território controlado pela Rússia, incluindo regiões que Putin havia anexado recentemente.

A reação dos ucranianos à explosão foi instantânea: os memes humorísticos iluminaram as redes sociais como uma árvore de Natal. Muitos partilharam o seu sentimento de alegria através de mensagens de texto.

Não durou muito tempo.

Para Putin, um homem consumido pelo orgulho e egoísmo, ficar quieto nunca foi uma opção. Ele respondeu da única forma que sabe, provocando mais morte e destruição, com uma força que provavelmente é natural para um antigo agente do KGB.

Foi também um ato de desespero egoísta: perante as crescentes críticas nacionais, até mesmo na televisão que ele próprio controla, Putin foi posto sobre uma camada de gelo excecionalmente fina.

O que se segue?

Antes dos ataques de segunda-feira, o chefe da Direcção-Geral dos Serviços Secretos do Ministério da Defesa da Ucrânia, o major-general Kyrylo Budanov, tinha dito ao jornalista ucraniano Roman Kravets em finais de agosto que “até ao final do ano" tinham "de infiltrar a Crimeia”. Sugeriu ainda um plano para fazer recuar as forças russas para as linhas pré-2014, algo que conta com um grande apoio dos ucranianos com quem tenho falado.

Porém, ao ter capacidade para atingir as principais cidades ucranianas, incluindo a capital, a Rússia demonstrou que ainda pode causar danos e deslocações enormes. Os ataques de segunda-feira intensificaram o conflito Rússia-Ucrânia para uma das suas fases mais perigosas desde 2014. A tensão já era elevada face às declarações anteriores de Putin, sugerindo que a possibilidade do uso das armas nucleares tácticas continuam em jogo.

A importância dos ataques no centro de Kiev, e perto do bairro do governo, não pode ser sobrestimada. Os governos ocidentais deveriam vê-lo como uma linha que foi ultrapassada neste 229.º dia de guerra.

Neste momento, é crucial que Washington e outros aliados usem a diplomacia telefónica urgente para instar a China e a Índia, que presumivelmente ainda têm alguma influência sobre Putin, a resistir ao impulso de usar armas ainda mais mortíferas.

Face a um homem que procura fraqueza e tende a explorar divisões, a coisa mais importante para o Ocidente neste momento é mostrar unidade e determinação. Os governos ocidentais também precisam de perceber que a retórica e as sanções têm pouco ou nenhum impacto nas atitudes de Putin. Precisam de continuar a armar os ucranianos e a fornecer urgentemente treinos e formação, mesmo que isso signifique enviar peritos militares mais próximos do campo de batalha para acelerar a integração de armas de alta tecnologia.

Além disso, são necessários sistemas de defesa de alta tecnologia para proteger Kiev e as infraestruturas energéticas vitais em todo o país. Com o inverno ao virar da esquina, a necessidade de proteger os sistemas de aquecimento é urgente.

Chegou também a altura de o Ocidente isolar ainda mais a Rússia com restrições comerciais e de viagem, mas para que isso tenha impacto suficiente, a Turquia e os Estados do Golfo, que recebem muitos turistas russos, precisam de ser pressionados a juntarem-se à luta.

Qualquer coisa abaixo destas medidas só permitirá a Putin continuar a sua violência desprovida e exacerbar ainda mais uma crise humanitária que terá repercussões em toda a Europa. Uma fraca reação será tomada como um sinal claro para o Kremlin de que podem continuar a utilizar a energia, a migração e a alimentação como armas.

Esta é uma guerra global e deve ser tratada como tal.

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