"Putin parecia um homem derrotado", numa Rússia que questiona "afinal o que se está a passar?". Como uma russa e um ucraniano viram o discurso do Dia da Vitória

9 mai 2022, 17:00
Putin discursa na Praça Vermelha no Dia da Vitória (Getty Images)

O presidente da Associação de Ucranianos em Portugal e uma ativista russa analisaram o discurso de Vladimir Putin e explicam o que pode estar a acontecer na sociedade russa

Não houve declaração oficial de guerra, mas voltaram as justificações habituais: no discurso do Dia da Vitória, Vladimir Putin acusou o Ocidente de não deixar escolha a não ser invadir a Ucrânia e prometeu ajuda para as famílias dos soldados mortos na guerra. Ajuda essa, apontam uma ativista russa e o presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, que pode ter sido uma forma de responder às inquietações da sociedade russa perante aquilo que os dois consideram ser "propaganda".

"Putin não pode falar em vitória de uma coisa que não é uma guerra"

A ativista russa Ksenia Ashruvaulima observa que Putin usou os clichês clássicos da propaganda soviética, naquele que considera ser um discurso "cinzento e sem grandes declarações, para não provocar mais alergias". "Há um inimigo, alguém que quer atacar a Rússia. Estamos rodeados de países que só querem o nosso mal e apenas temos de nos defender", parafraseia.

"É um discurso gasto, falso e reciclador: remastigou as mesmas coisas que foram ditas na propaganda soviética", diz Ksenia Ashruvaulima.

Também por isso, Ksenia salienta que Putin apenas falou das vitórias do passado. Até porque, para a ativista, o presidente russo tem medo de admitir que há uma guerra. "Ele não pode falar em vitória de uma coisa que não é uma guerra. E ele não quer que as pessoas saibam que há guerra, não pode admitir que mentiu".

"As coisas não estão a correr como ele pensava", destaca a ativista.

Enquanto os media internacionais tentam perceber a mensagem subliminar no discurso de Putin, os jovens russos estão a procurar no YouTube formas de evitar o alistamento e canais sobre como sair da Rússia, aponta a ativista. Aliás, Ksenia revela que os próprios pais não sabem como é que os filhos que foram para a guerra morreram. "O caso do Moskva foi divulgado na Rússia como uma história heróica para contar aos pais como é que o seu filho morreu". Mas há ainda muitas famílias sem respostas, que se questionam nos grupos de Whatsapp e Telegram. E talvez por isso Putin tenha anunciado os apoios às famílias vítimas desta "tragédia". "A astúcia do regime diz que, aos olhos da lei, quem está desaparecido não recebe subsídio", aponta a ativista.

Também Pavlo Sadokha, presidente da Associação de Ucranianos em Portugal, conta à CNN Portugal que quando o presidente falou ao povo russo e garantiu que ia fazer tudo para apoiar os familiares das vítimas, pode ter dado a entender que "o movimento das famílias está a reivindicar apoios e respostas".

Parece-me que há algo muito instável na Rússia", afirma o ucraniano.

No fundo, aquele que é um dia em que se celebra a vitória na Segunda Guerra Mundial, deixa os russos a refletir sobre os paralelismos com a situação atual, aponta a ativista russa. "Para a minha família, este sempre foi um dia muito privado, nem era ostentado na rua. Cantávamos e celebrávamos em casa. Mas agora, com a informação que nos tem vindo a chegar com o passar dos anos, muitos russos estão a perceber que se devem ter cometido muitas violações durante a guerra mundial e começam a pensar: 'porquê este silêncio?'" 

"A maioria das pessoas começa a perguntar 'afinal o que se está a passar?' De uma maneira inesperada estamos a ver os padrões e tudo bate certo" , diz Ksenia Ashruvaulima.

"Há muita coisa que ainda não sabemos. As pessoas estão com muitas questões, sobretudo sobre a Segunda Guerra Mundial, coisa que não acontecia antes. 'Será que foram omitidas muitas coisas?' e fazem essa comparação", explica a russa.

No mesmo sentido, o presidente da Associação de Ucranianos em Portugal considera que "o povo russo já não é o do século passado": "A sociedade russa quer é viver bem e não estará interessada em dedicar a sua vida à meta de um maluco ditador". E, nesse sentido, frisa também que "Putin também deve sentir que os russos já não acreditam na propaganda".

"As palavras dele para justificar a invasão até pareciam menos fortes do que o que disse no dia 24 de fevereiro. Bem como a desculpa do Ocidente - eu conheço os russos, isso não foi forte. Isso não chega para mobilizar a sociedade russa", diz Pavlo.

"Putin parecia um homem que foi derrotado"

Recordando o discurso, Pavlo Sadokha diz que a primeira impressão que teve ao ouvir o presidente russo esta segunda-feira foi a de um "homem derrotado". "Temos a sensação que Putin está a perder, até pela reação da comunidade pró-Putin em Portugal", aponta, explicando que todos os anos essa comunidade realiza eventos de comemoração do dia 9 de Maio. "Mas este ano ninguém apareceu. Isso mostra que Putin perdeu o povo, os apoiantes. Quem o seguiu durante anos já não mostra convicção".

"O povo russo começa a perceber que algo não está bem", diz Pavlo Sadokha.

Apontando que foi "uma mensagem muito curta e nada habitual para Putin, Pavlo destaca que o presidente russo deu a entender que não tem outra escolha a não ser continuar com o ataque: "Não deu nenhuma palavra para tentar resolver o conflito". Mas nada que os ucranianos já não estivessem à espera, revela. "Não tínhamos nenhuma esperança. Ele diz uma coisa e faz outra".

Embora desvalorize o conteúdo do discurso, o ucraniano não desvaloriza o perigo que a Ucrânia continua a sentir. "O que mais me preocupou é que ele esteja a preparar o povo russo para um conflito maior".

"Ele mente. Tivemos medo que no dia 9 pudesse perder a cabeça e atacar em massa. Ninguém sabe o que vamos passar - portanto não ter atacado já é positivo", refere, acrescentando: "Isto tudo que ele falou é a vida dos meus compatriotas. Nós estamos completamente convencidos que nós estamos a ganhar a guerra. Tanto com as sanções, as ajudas... mas quem morre é ucraniano".

"Quando terminei de ver fiquei muito triste porque percebi que vamos assistir a mais mortes e mais sofrimento", lamenta, concluindo: "Mas nós, ucranianos, já não temos medo dele".

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