ANÁLISE || Aleksandar Vucic, presidente da Sérvia, diz que é das pessoas que conhecem melhor Putin. Mas e se for o próprio Vucic que está com medo? "Se houver um ataque nuclear da Rússia, a Sérvia está ali ao pé"
Foram palavras proferidas há pouco mais de uma semana mas passaram despercebidas no Ocidente: a 19 de novembro, dia seguinte ao ‘ok’ de Joe Biden para o uso de armas americanas de longo alcance contra alvos em território russo, o presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, afirmou que Vladimir Putin "tem medo".
"Vou dizer-vos abertamente o que penso. Penso que ninguém hesitará em utilizar todas as armas de que dispõe (...) No Ocidente, dirão que Putin está a brincar e a ameaçar com isto, mas na realidade ele tem medo, e digo-vos que poucas pessoas conhecem o presidente Putin como eu."
Vucic não concretizou sobre este alegado medo de Putin. À primeira vista, pode parecer estranho que um líder visto como aliado do Kremlin descreva o presidente russo desta forma mas, para o comentador da CNN Portugal Francisco Pereira Coutinho, estas declarações não são um acaso e muito menos um lapso.
"Putin já ameaçou o Ocidente com armas nucleares vezes sem conta. O que Vucic está a tentar dizer é ‘não, isto é mesmo a sério’. Parece a história do Pedro e do Lobo. Das outras vezes não, mas desta vez é mesmo para levar a sério."
Na mesma intervenção, o líder sérvio lamentou o facto de o seu país estar “completamente impreparado” para uma guerra nuclear. "Temos espaço para 257 mil pessoas em abrigos e teremos de recomeçar a reconstruir as infraestruturas, pelo menos para atingir o número de um milhão, um milhão e meio, que podemos acolher em abrigos. Iremos trabalhar diligentemente nesse sentido. Peço desculpa aos cidadãos por não termos começado este trabalho a tempo, mas vamos tratar do assunto."
Para Francisco Pereira Coutinho, que é especialista em Direito Internacional, a retórica de Vucic está alinhada com as dos líderes autoritários. “Está no fundo a atemorizar a população, a fazê-la acreditar na ameaça nuclear de Putin. Este tipo de líderes vive muito com a ansiedade e as perceções de insegurança das populações”, explica Francisco Pereira Coutinho, que desdramatiza o suposto medo de Vladimir Putin.
"Vucic tenta que esta retórica nuclear seja levada a sério, mas estamos numa fase em que as tropas russas estão a ter algum sucesso no campo de batalha e em que vem uma nova administração nos EUA supostamente mais favorável. Não seria este o momento para a utilização de armas nucleares, não lhe traria qualquer vantagem", sublinha Francisco Pereira Coutinho. "Vucic não disse que Putin estava louco. Aí sim deveríamos estar preocupados. Vucic disse que Putin estava com medo. (…) Mas medo de quê? Podia estar com medo se a contraofensiva ucraniana tivesse sido bem-sucedida, se os ucranianos estivessem já a entrar pela Rússia adentro ou se [Yevgeny] Prigozhin voltasse do reino dos mortos e investisse novamente sobre Moscovo. Neste contexto, não acredito."
O comentador da CNN Portugal Tiago André Lopes é menos taxativo quanto à possível ameaça de Putin. Sobre a credibilidade das palavras do presidente sérvio, o especialista em Relações Internacionais vinca que “é difícil sabermos com certeza” a verdade do que foi dito. "Eu penso que havia um pequeno fundo de credibilidade quando a Rússia temeu inicialmente o uso dos mísseis de longo alcance, porque a ideia inicial de Zelensky, que não é a atual, era ter o longo alcance para atacar Moscovo, para poder atacar bases no centro. Não era para atacar Kursk, Bryansk e Belgorod e ficar ali ao pé”, explica o comentador da CNN Portugal. “Acima de tudo, o receio eram os ATACMS, os SCALP e o Storm Shadow."
"No entanto", prossegue Tiago André Lopes, "parece que de repente o Kremlin respirou fundo outra vez, está com menos medo do que há uma semana. Ninguém falou. Nem Putin, nem Lavrov, nem [Mikhail] Mishustin. Sei que [Dmitry] Medvedev falou, mas Medvedev é como [Mykhailo] Podolyak, é um assessor, não conta para grande coisa, não decide nada."
Quanto ao medo de Putin, Tiago André Lopes não tem dúvidas. "O medo de Putin é o famoso medo do cerco da Rússia, a ideia de que os EUA estão a instrumentalizar a NATO para criar uma espécie de ‘cordão sanitário’, como pretendia o famoso programa Star Wars (Iniciativa de Defesa Estratégica), à volta da Rússia. Esse é o grande medo, que é a tentativa de enclausuramento e de desmembramento do espaço eslavófilo e da influência da Rússia, quer no Cazaquistão, quer na Geórgia, quer na Ucrânia, na Bielorrússia, na Moldova, por aí em diante", afirma o comentador da CNN Portugal, que aponta como motivo deste medo o "trauma dos anos 90 e da liberalização da Rússia".
"[O medo] é muito forte nesta administração Putin e na sociedade russa. Ao fim de quase três anos de guerra, houve pouquíssimas manifestações antiguerra e contra o regime. Não podemos ser inocentes ao ponto de achar que é apenas porque há instrumentalização dos meios de comunicação, não. A população entende esta guerra. Pode não apoiar ativamente, mas compreende-a", afirma Tiago André Lopes. "Vucic diz isso num tom de alerta. Vucic tem medo de que, por causa de Putin ter medo, este possa usar o nuclear. Se houver um ataque nuclear, a Sérvia está ali ao pé. A ideia é dizer ‘não continuem a achar que tudo o que Putin diz é bluff, não continuem a achar que o regime está apenas a fazer ameaças vazias - porque não está. O regime está a avisar-vos de que está a chegar a um ponto em que pode achar, tal como a doutrina diz, que é legítimo para a sua sobrevivência usar o nuclear."