Peyroteo: o pai (e o ídolo) para lá dos recordes no Sporting

7 dez 2018, 10:10
Filho Fernando Peyroteo

O Maisfutebol embarcou numa viagem através de um olhar diferente sobre o melhor marcador da história do futebol português

Crispim é um miúdo como os outros. Tem os seus ídolos, segue-os para todo o lado e sabe tudo sobre eles. Para os mais especiais, claro que há lugar no quarto, conforme nos mostra com recurso ao seu smartphone.

Está lá uma moldura com equipa que sabe de trás para a frente, orgulhosamente colocada na mesinha de cabeceira.

Em formato gigante, um quadro que mandou fazer há uns tempos: a primeira página de um diário desportivo onde o maior ídolo ocupa todo o espaço; a foto que o próprio tirou quando foi ver outro dos ídolos atuar; a imagem autografada que lhe foi oferecida por um outro ídolo ainda.

Quase como uma fotografia impressa na memória, ainda bem fresca, está também a tarde daquele dia em que Crispim foi com um grupo de amigos ver o maior ídolo jogar pela primeira vez. Tinha 12 anos e foi desde S. Brás de Alportel, onde morava, até Olhão. Corria o ano de… 1942.

Sim, quase nos esquecíamos: Crispim Gabriel Viegas é um miúdo como os outros, diferente apenas por contar 88 anos no cartão de cidadão.

De resto, a equipa que está na moldura à cabeceira da sua cama é a do Sporting de 1944, o ídolo impresso no quadro gigante é Fernando Peyroteo, aquele que lhe deu uma imagem autografada é Carlos Lopes e o outro que ele próprio fotografou é Joaquim Agostinho.

De resto, a alegria que mostra no momento de falar a Fernando Peyroteo (o filho) é a de um menino - «nem imagina quão grande é o privilégio de o conhecer». Tal como o entusiasmo com que relata as incontáveis memórias que guarda de tudo o que está relacionado como «o Maior».

Crispim Gabriel Veigas (de chapéu na mão) escutou cada palavra de Fernando Peyroteo (ao centro)

«Vou falar do Peyroteo pai, o dos recordes todos conhecem»

O Maisfutebol conheceu Crispim Gabriel Viegas – daqui em diante, apenas Gabriel Viegas como a mãe sempre preferiu por não gostar do nome Crispim – numa «visita de autor» feita pelo filho de Fernando Peyroteo ao Museu do Sporting.

Como é óbvio, ao saber do evento, Gabriel Viegas não falhou. Aliás, foi o primeiro a chegar. Mais de meia-hora antes do início da visita já o víamos a caminhar pacientemente pelo hall vip do Estádio de Alvalade.

As apresentações são feitas instantes antes de Fernando Peyroteo dar início à visita que iria ter o seu pai como tema central. E o filho daquele que é uma das maiores glórias do Sporting retribui a satisfação por conhecer alguém que tanta estima guarda pelo maior goleador português de todos os tempos, autor de 540 golos em 332 jogos oficiais.

Mas aqui é preciso fazer um aviso. O mesmo que foi transmitido por Fernando Peyroteo às mais de duas dezenas de pessoas que participaram na visita:

 «Mais do que falar dos recordes, dos cinco golos em 22 minutos, dos nove golos num jogo ou da média de 1,6 golos por jogo, do que vos vou falar é do Fernando Peyroteo pai. Do Peyroteo cidadão. O dos recordes todos vocês conhecem e eu quase não tive oportunidade de ver. Acho que vão gostar de conhecer o Peyroteo de fora dos relvados».

Venha de lá, então, pela apresentação do homem nascido em Angola há cem anos, cumpridos no passado dia 10 de março.

Órfão aos dois anos e as dificuldades que moldaram o carácter

O Fernando Peyroteo criança. Fernando Baptista de Seixas de Vasconcelos Peyroteo nasceu em Humpata, Angola. Foi o 11.º de 12 filhos e ficou órfão de pai ainda muito novo.

«O meu pai viveu numa família com algumas dificuldades, fruto da morte do meu avô, quando ele tinha apenas dois anos. E foi talvez por isso que nunca se deslumbrou, mesmo estando num mundo como o futebol onde quando se atinge o topo é fácil o deslumbramento», explicou Fernando Peyroteo, lembrando as conversas que teve com o pai sobre a infância deste.

«Ele dizia-me: ‘eu não me lembro de ter tido uns sapatos novos, ou uma camisola nova. O que tinha era o que vinha dos meus irmãos’. Nunca se esqueceu dessas dificuldades».

E como foi ser criança sendo filho de Fernando Peyroteo? «Houve alturas que para mim não era fácil. Porque onde quer que fôssemos, o meu pai era o centro das atenções. As pessoas queriam todas vir cumprimentar o grande Peyroteo e, no fundo, acabavam por roubar a atenção que ele podia estar a dar ao filho», confessa a certa altura.

Mas também havia coisas positivas. Até porque poucas eram as pessoas que não gostavam de Peyroteo. «Lembro-me de irmos ao teatro e as sessões estarem esgotadas, mas para o Peyroteo e a família arranjava-se sempre lugar. Colocavam mais cadeiras e nós lá nos sentávamos a ver o que quer que fosse», revela, sorridente.

O Sporting como «religião» e… o chapéu de chuva de Szabo

«O meu pai ultrapassava a figura do futebolista. A postura como homem fazia com que fosse admirado por toda a gente, mesmo os adeptos do Benfica. Eu lembro-me que as pessoas vinham ter com ele e elogiavam não só o jogador, mas também a pessoa», orgulha-se Fernando Peyroteo filho.

Em ano de centenário do nascimento de Peyroteo, têm sido várias as iniciativas feitas pelo clube para recordar um dos nomes maiores da sua história. E isso deve-se não só a todos os registos históricos conseguidos pelo antigo jogador, mas também pela lealdade sempre demonstrada pelo antigo avançado.

«Ser do Sporting era quase uma religião. Para o meu pai, seria impensável trocar o Sporting pelo Benfica, o FC Porto ou qualquer outro clube», assegura o filho de um dos «Cinco Violinos».

E também há histórias para contar sobre o treinador que o recebeu, o trabalhou e que ajudou a criar a máquina de marcar golos que Peyroteo se viria a tornar, o húngaro Joseph Szabo, que deu o aval à contratação do miúdo de 19 anos chegado de Angola.

«Vocês vão perdoar-me a linguagem, mas história como o meu pai a contava era assim. Dizia ele que quando se queixava ao senhor Szabo que alguma coisa era impossível, ele lhe dizia sempre a mesma coisa: ‘Oh Peyroteo, impossível é meter um chapéu de chuva no rabo e abri-lo’.»

A faceta bem-humorada que Peyroteo também partilhava.

«Já não são só os mais velhos que sabem quem foi Peyroteo»

Fernando Peyroteo é um homem orgulhoso por todas as homenagens que têm sido feitas ao pai, «sobretudo neste último ano».

Quanto à visita, explica ao Maisfutebol que quis apresentar a faceta mais «privada» do antigo jogador porque «o Peyroteo jogador está representado no Museu do Sporting e na história do futebol português.»

Prova disso - se mais fossem necessárias - são os troféus que foram entregues a título póstumo a Fernando Peyroteo, que o filho levou para mostrar no final da visita, já depois de escutar novamente a voz do pai, numa entrevista a Artur Agostinho. 

Ali, para todos poderem pegar, estavam os dois troféus entregues pela Federação Portuguesa de Futebol, o prémio «Prestígio/Carreira» que foi atribuído ao «Avançado temível» na gala Quinas de Ouro deste ano, e um outro semelhante, relativo à eleição para o melhor onze histórico da seleção portuguesa.

«Já não são só os mais velhos que sabem quem foi Peyroteo», garante o filho. «Ainda hoje, quando digo o meu nome perguntam-me logo ‘o senhor é…?’ ‘sim, sim. Sou filho do Fernando Peyroteo’. E se antes isso só acontecia com pessoas de uma camada mais velha, hoje já acontece com miúdos mais novos que me dizem: ‘eu sou do Sporting e sei que o seu pai marcou muitos golos», atesta.

Quem também sabe bem quem foi Peyroteo é Gabriel Viegas. O miúdo de 88 anos que tem «o Sporting dentro desde os 8», e que se confessava «muito feliz» pelo momento que acabara de viver e que lhe permitiu regressar atrás no tempo para os anos em que ia ver o ídolo de sempre jogar.

«A gente chegava a ir à bola só para ver a forma como o Peyroteo andava no campo. Aquela elegância. Claro que metia golos como ninguém, mas era mais do que isso. Quase não dá para explicar», sublinha.

A visita já chegara ao fim quando uma responsável do Museu do Sporting se aproxima do senhor Gabriel para o convidar para «um dia vir contar algumas das suas histórias ao Museu» e oferecer-lhe o livro «Memórias de Peyroteo», autobiografia que o antigo avançado escreveu e que tem agora uma nova edição.

Só aí tomamos verdadeira consciência da idade daquele «miúdo» que parece gaguejar enquanto bate repetidamente no coração até soltar num sorriso genuíno: «olhe que é preciso cuidado com isto, muito obrigado.»

E é tão fácil fazer um miúdo feliz.

 

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