Ponto essencial antes de começar a ler: não há razão para alarmismos
Os casos têm-se multiplicado e tanto hospitais como centros de saúde e clínicas privadas começam a sentir a chegada do já chamado ‘fenómeno sazonal’, que leva mais pessoas às urgências ou a marcar consultas de última hora. As viroses gastrointestinais e respiratórias estão aí, quase sempre começam nos mais novos e os especialistas entrevistados pela CNN Portugal pedem cuidados, frisando que a pandemia é demasiado recente - e presente - para serem descartadas medidas de prevenção que são também eficazes para estes casos.
“Temos tido bastantes casos em ambas as situações, mas nesta altura do ano não me parece nada de muito ‘anormal’”, diz Hugo Rodrigues, médico pediatra no hospital de Viana do Castelo e docente na Escola Superior de Tecnologias da Saúde do Porto e na Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho.
O aumento de casos relacionados com vírus respiratórios que não o SARS-CoV-2 começaram a notar-se ainda no verão, com destaque para o vírus sincicial respiratório, que passou agora a figurar no relatório semanal do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) - que apresenta também dados sobre a gripe, que passados dois anos a lutar contra a barreira da máscara de proteção tem agora palco para se fazer sentir e espalhar com mais facilidade. Nesta altura do ano, além do ainda resistente SARS-CoV-2, destacam-se o vírus influenza (da gripe), o rinovírus (da constipação comum) e o vírus sincicial respiratório (comum em crianças, mas que pode também afetar adultos) os que mais circulam.
Quanto aos vírus gastrointestinais, são os rotavírus e os enterovírus os mais recorrentes nesta altura do ano, ambos altamente contagiosos e que, por vezes, levam a que uma boa parte dos alunos da mesma turma adoeçam em simultâneo - passando o vírus, uma ou duas semanas depois, para os pais ou avós.
Vírus respiratórios tiram protagonismo à covid-19 (mas ainda vivem refém dela)
No caso dos vírus respiratórios, tanto Agostinho Marques, pneumologista e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, como Bernardo Gomes, médico de saúde pública e vice-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, destacam a importância de não se ignorar o SARS-CoV-2 e que o facto de já não haver “testagem sistemática” pode dificultar na procura de ajuda médica e na confusão de sintomas. Os dois médicos dizem ainda que a própria existência da covid-19 e todas as mudanças que implicou - e ainda implica - na saúde e no estilo de vida é um dos motivos pelos quais agora há mais vírus respiratórios - ou, pelo menos, uma maior perceção dos mesmos.
“Ainda são incertas as consequências das infeções de covid-19 na fragilização do sistema imunitário, apesar de haver evidência nesse sentido. Mas a nível de quantificação e na percepção do fenómeno em si, o cenário ainda está aberto”, começa por dizer Bernardo Gomes, destacando que “habitualmente, e mesmo em contexto tradicional e expectável não pandémico, temos sazonalidade de infeções, há microrganismos que têm alturas do ano em que têm maior facilidade de expressão, tem algumas condições associadas, como a questão da temperatura e do nosso ritmo de funcionamentos social, como as escolas”.
O médico de saúde pública reconhece que pode haver uma maior procura por cuidados médicos associada a este vírus mas que, para já, “não há um grande desvio” face ao que se verifica nos outros anos - isto, claro, deixando de fora o ano 2020, com pessoas confinadas e mais protegidas a este tipo de vírus. Mas os especialistas não descartam que, no caso da gripe, a situação não se venha a complicar, olhando para o que aconteceu este ano na Austrália.
“Nesta altura do ano é normal e expectável um aumento da afluência aos serviços de urgência”, reitera também Filipe Froes, pneumologista e especialista em medicina intensiva, que destaca igualmente “a diminuição das temperaturas e o alívio das medidas de intervenção não farmacológica implementadas nos últimos dois anos” como fatores para que agora se voltem a sentir mais outros vírus além do SARS-CoV-2.
“É o comportamento normal [dos vírus] para esta época do ano, não sabemos é para onde vai”, refere Agostinho Marques, que diz que este é o momento de se começar a apostar na prevenção, de modo a evitar picos mais agudos e insustentáveis no inverno, instando as autoridades a continuarem “a fazer a vigilância científica, pois pode chegar a proporções em que se pode precisar de atitudes diferentes”.
“A minha dúvida é se esta maior afluência se acompanha de maior gravidade, traduzida em internamentos em enfermaria, UCI [unidade de cuidados intensivos] e excesso de mortalidade. Habitualmente há um intervalo de duas a três semanas entre o aumento na comunidade e o impacto nos cuidados intensivos. A oportunidade é para reforçar a vacinação”, adianta Filipe Froes.
Também Agostinho Marques apela à vacinação dos vírus “que dão para vacinar”, referindo-se ao Influenza e ao SARS-CoV-2.
Agostinho Marques e Bernardo Gomes destacam também a importância de se manter o uso de máscara, sobretudo perante sintomas e em locais fechados, mal ventilados e com muitas pessoas. “Para minha deceção, pensei que o uso da máscara fosse para ficar”, diz o pneumologista.
O próprio presidente do INSA já veio apelar à continuidade do uso de máscara.
Gastroenterites nem sempre se conseguem prevenir, mas é possível atenuar as consequências
“É possível que tenhamos assistido à circulação de vírus comuns, como os enterovírus, associada à atividade escolar. É expectável e ocorre com frequência. São vírus que circulam com facilidade entre crianças e dão gastroenterite”, diz Bernardo Gomes.
Apesar de as gastroenterites não serem apenas de origem vírica, podem ser causadas por bactérias ou parasitas. São as que têm vírus na sua génese as que acabam por apresentar um efeito ‘bola de neve’ mais notório a nível de contágios.
Leopoldo Matos, gastroenterologista no Hospital Lusíadas Lisboa, explica que estamos na época de uma maior circulação e contágio do rotavírus (muito comum no inverno e na primavera e que, este ano, causou uma “epidemia intestinal aguda” na Coreia do Norte) e do enterovírus, “que são muito contagiosos e começam em idade pediátrica e passado uma semana ou duas passam aos pais e avós”. O norovírus é também um dos vírus comuns da gastroenterite.
Segundo o estudo ‘Carga e Tendências de Infecções Graves por Rotavírus e Episódios Hospitalares de Gastroenterite Aguda por Todas as Causas em Crianças Menores de Cinco Anos em Portugal Continental’, publicado na revista Acta Médica Portuguesa no ano passado, entre 2014 e 2017 ocorreram em média 1.985 episódios hospitalares anuais de gastroenterite por rotavírus entre crianças menores de cinco anos. A taxa anual foi de 48% por 10 mil crianças. “As taxas foram consistentemente maiores em crianças menores e 67,8% dos episódios ocorreram em menores de 24 meses”, sendo que foi detetado “um pico importante no início da primavera”.
Diarreia, náuseas, vómitos, febre e dores de barriga são os sintomas mais comuns e deve agir-se ao primeiro sinal de alerta, evitando o contacto com outras pessoas até mesmo cerca de dois dias depois do último episódio de vómitos e/ou diarreia. A correta higienização das mãos e das superfícies e a não partilha de panos e toalhas são também estratégias a ter em conta.
Na prevenção cabe ainda a vacinação contra gastroenterite por rotavírus de crianças pertencentes a grupos de risco, uma norma aprovada no final do ano passado.