"O marido não foi preso". O retrato de um caso de violência doméstica em Lisboa que questiona a atuação das autoridades

4 ago 2022, 19:00
Mulher

Caso foi denunciado nas redes sociais por vizinha que ajudou a parar as agressões e que acusa PSP e INEM de demorarem uma hora a chegar e de deixarem o agressor abandonar o local livremente. PSP garante que foram "adotados todos os procedimentos previstos para estas situações"

A denúncia surgiu nas redes sociais. Segundo uma vizinha, uma mulher de 60 anos tinha sido "espancada pelo marido com uma cadeira" na noite de 31 de julho, em Lisboa. A violência alertou os vizinhos que, forçando uma janela, acudiram a vítima e travaram o agressor.

"Ouvimos os gritos, saímos, chamámos a polícia. Um vizinho entrou pela janela, por ter forçado a nesga da persiana que estava aberta. As sete pessoas que se juntaram a essa janela impediram que este horror continuasse, várias de nós chamámos a polícia e o INEM", escreve Teresa Coutinho, atriz e dramaturga, nas redes sociais, na noite de domingo.

Segundo a mesma publicação, a ajuda terá tardado em chegar, enquanto dentro da casa, os vizinhos impediam que a violência continuasse: "Uma hora. Ambos demoraram uma hora a chegar". 

No entanto, a versão apresentada pelas autoridades é diferente. Contactada pela CNN Portugal, a Polícia de Segurança Pública assegura que chegou ao local 20 minutos depois de ter recebido o alerta (às 22:33) para a "ocorrência de agressões entre coabitantes, possível violência doméstica". Também o INEM nega a demora e garante que a ambulância chegou ao local em 17 minutos depois de ter recebido o pedido de socorro e que a situação foi acompanhada pela polícia.

"O Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM recebeu um pedido de socorro para a situação em causa às 22:41. Após a triagem da situação, foi acionada uma Ambulância de Emergência do INEM, que chegou ao local às 22:58. Assim, não se confirma a alegada demora na chegada da equipa do INEM. A situação foi acompanhada pela Autoridade Policial, que esteve presente no local", assegura o INEM.

"O marido não foi preso"

Na publicação nas redes sociais, a vizinha acusa ainda as autoridades de serem "coniventes" com o agressor que "não foi preso" na noite de domingo, e garante que as testemunhas não foram ouvidas pelos agentes que se deslocaram ao local. 

"Quem impediu que a violência continuasse não foi ouvido, nenhum agente procurou averiguar junto dos vizinhos o que se passou. À minha insistência responderam "deixe-nos fazer o nosso trabalho". O marido foi agora mesmo, pelo seu pé, de cigarro na mão, até ao café da esquina. Crime público, não era? Uma polícia conivente, que não leva o seu trabalho até ao fim: assim se percebe o número de feminicídios neste país", acrescenta na publicação que esclarece que os agentes que acorreram ao local eram da esquadra da Rua da Palma.

A publicação feita por Teresa Coutinho nas redes sociais

À CNN Portugal, a PSP esclarece que, no local, os agentes "contactaram com a vítima e duas testemunhas diretas, as quais prestaram as informações registadas no auto remetido à autoridade judiciária competente".

"A vítima encontrava-se desorientada, tendo apresentado três versões diferentes da situação. Ainda assim, tendo em conta os contornos de (possível) violência doméstica, os polícias adotaram todos os procedimentos previstos para estas situações, nomeadamente no que concerne à prestação de informação à vítima e preparação do plano de segurança. Contudo, a vítima manifestou firmemente vontade de não colaborar, recusando-se a partir de determinado momento a prestar mais informações, receber qualquer informação (verbal ou escrita), ser notificada para exame médico ou, sequer, receber tratamento médico no local", informa a Direção Nacional da PSP.

Sobre a detenção do suspeito, a autoridade avança que "não foi concretizada por não existir matéria que sustentasse esse procedimento", acrescentando que "naturalmente, toda a informação apurada foi formalmente registada pela PSP e transmitida às autoridades judiciárias para avaliação e eventual ponderação de medidas subsequentes".

Perante a situação, Teresa Coutinho, a vizinha que denunciou o caso nas redes sociais revela que ligou para "a linha de atendimento de vítimas de violência doméstica da Câmara de Lisboa" e que foi informada que a vão ajudar a "apresentar queixa de forma a isto não ficar em águas de bacalhau (sic)". 

A atriz lembra ainda que "uma situação destas é considerada flagrante delito" e, por isso, "não há justificação para este agressor não ter sido preso".

Contactada pela CNN Portugal, fonte da Feministas em Movimento, entidade responsável pelo Lisboa + Igualdade – Espaço de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica e de Género, confirma ter conhecimento do caso e revela estar a fazer diligências, tendo já entrado em contacto com algumas entidades para entender os contornos do caso.

"O caso foi-nos denunciado e a Feministas em Movimento já fez diligências e já falou com algumas entidades, da área da Saúde, da Segurança e da Justiça. Estamos a tentar perceber e a seguir os protocolos", assegurou Elisabete Brasil. 

Ministério Público

Perante a apresentação do caso à justiça, o processo segue agora para o Ministério Público (MP), a quem cabe a investigação do mesmo. À CNN Portugal, o advogado João Luz Soares explica os trâmites que o processo seguirá depois de, quer o auto de polícia, quer a alegada queixa feita por terceiros, ter seguido para o MP.

"O Ministério Público tendo conhecimento dos factos pode, de forma autónoma, dar início ao processo de investigação, abrir um inquérito, para fazer tudo aquilo que são as diligências de apuramento, investigação e descoberta da verdade que entenda por pertinentes. Nos crimes públicos [NR: a violência doméstica é crime público desde 2000], o MP tem uma espécie de autonomia de investigação no ímpeto e no início do inquérito", adianta o advogado.

João Luz Soares diz ainda que, apesar da autonomia do Ministério Público, "isso não significa que as pessoas que tenham assistido ou que as pessoas que tenham conhecimento desses factos não possam "participar" no processo como testemunhas".

"Essa colaboração acaba por ser fundamental, porque são essas pessoas que podem ter um "conhecimento privilegiado" dos factos. Esta simbiose entre o que é o papel do MP enquanto responsável nos crimes públicos completo pela investigação e aquilo que pode ser a participação e o testemunho nessa descoberta de eventuais testemunhas, é fundamental".

Quanto à não detenção do suspeito, o causídico explica que não tendo sido feita em flagrante delito, as provas recolhidas pelo órgão de polícia criminal no local serão comunicadas ao MP "para que depois faça o competente trabalho de investigação".

"Se a PSP estiver ou for a uma situação em que haja indícios fortes daquilo que é o cometimento de um crime, podemos estar a falar de violência doméstica, podemos estar a falar de qualquer outro de violência particular, se existem indícios que parecem indicar que se acabou de cometer um qualquer tipo de crime, obviamente que estão reunidos o que me parecem ser pressupostos de detenção, de flagrante delito, ou para o início daquilo que é uma comunicação da própria PSP ao Ministério Público para depois dar início ao processo de investigação criminal".

João Luz Soares explica ainda que o Ministério Público tem não só o direito como o "dever de investigar autonomamente e realizar tudo aquilo que são os procedimentos adequados para a descoberta da verdade material", exista ou não a colaboração da vítima.

O advogado lembra ainda que a violência doméstica passou a ser crime público em 2000 e que, por isso, "qualquer pessoa que tenha assistido a esses factos, a esses acontecimentos, pode dar conta dele às autoridades competentes" e, nestes casos, em que não há colaboração da vítima, mas existem testemunhas da agressão, pode existir "um aporte suficiente, denso e fundamentado de probatório de outras testemunhas que podem ajudar o processo de investigação do MP".

Em Portugal, a violência doméstica matou no primeiro semestre deste ano 16 mulheres e uma criança, mais de metade das vítimas de 2021, que registou 23 homicídios, cinco dos quais de homens e dois de menores. As estatísticas constam no portal da violência doméstica da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

Numa nota divulgada esta terça-feira, a PSP revela que no primeiro semestre do ano 2.880 vítimas de violência doméstica para o programa de teleassistência e mais de 5.800 crianças à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, e sublinha que continua empenhada na deteção, tão precoce quanto possível, de práticas de violência doméstica, no reporte às autoridades e na intervenção em defesa das vítimas. A polícia acrescenta que já está a utilizar a nova versão do auto de notícia/denúncia padrão de violência doméstica, que introduz um campo para registar declarações prestadas pela vítima/denunciante que, se forem confirmadas através de assinatura, servem de auto de inquirição em inquérito, o que permitirá evitar convocar novamente a vítima para confirmar as declarações em sede de inquérito.

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