Em 2022 morreram 24 mulheres e quatro crianças em contexto de violência doméstica. Já houve uma evolução na luta contra este flagelo, mas ainda há muito por fazer. Falámos com o psicólogo António Castanho, considerado um dos maiores especialistas do tema em Portugal
No ano passado, quatro crianças perderam a vida em contextos de violência doméstica. Um número “fora do normal”. Portugal ainda sofre com a pós-pandemia e “as questões da saúde mental, podem desequilibrar ainda mais uma balança que já está desequilibrada”. A CNN Portugal entrevistou um dos nomes que mais de perto tem acompanhado este tema em Portugal, o psicólogo e psicoterapeuta António Castanho. Por exemplo, passou pelas suas mãos a criação da ficha de avaliação de risco, que é usada pelas forças de segurança. É considerado uma referência nesta área.
O ano de 2022 ficou marcado por 28 mortes: 24 mulheres e quatro crianças. Uma subida relativamente a 2021 no número de mortes. Mas a maior subida está nas queixas por violência doméstica, que registaram em 2022 o valor mais elevado dos últimos quatro anos. A PSP e a GNR contabilizarem mais de 30 mil ocorrências.
Mudar mentalidades, educar as gerações mais jovens. O 25 de abril trouxe a democracia, mas permanecem “mitos e estereótipos”. A violência doméstica não é só física e as marcas do “terrorismo na intimidade” não se veem. E, por isso mesmo, Portugal ainda não é “um país seguro entre quatro paredes”.
Depois de vários anos na Polícia de Segurança Pública, formou-se em psicologia, chegou a mestre e trabalhou numa Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Acabou por ingressar no Ministério de Administração Interna onde ficou responsável por esta área. Atualmente, tirou uma licença e está a dedicar-se a projetos pessoais. Apesar da sua larga experiência, esta é a primeira entrevista que dá sobre um tema que tanto lhe diz e ao qual esteve ligado muitos anos.
Encontra algum motivo para o aumento de mortes e queixas de 2021 para 2022?
Acredito que existe um problema acrescido em termos sociais de stress na comunidade em geral, ou seja, na sociedade em geral.
Pós-pandemia?
Sim, pós-pandemia. No nosso caso, em Portugal, houve um efeito retardador, enquanto no Reino Unido e outros países que estudaram o fenómeno, aparentemente, logo em 2020, no ano da pandemia, houve um aumento significativo do número de homicídios e casos. Em Portugal não aconteceu de uma forma tão evidente.
Existe aqui uma relação que não pode ser negligenciada entre as questões da saúde mental e as questões da violência doméstica. Ou seja, não é a saúde mental que explica o aumento da violência doméstica, mas em pessoas onde já existam condições dessa natureza, onde já existe história de violência doméstica, tudo o que é stress acrescido pode desequilibrar ainda mais uma balança que já está desequilibrada. Estamos a atravessar aqui momentos muito complicados ao nível das tensões familiares, que pode obviamente aumentar o atrito e a fricção.
Quando falamos de violência doméstica parece que estamos todos a pôr tudo no mesmo saco. Mas o terrorismo na intimidade é diferente. Quando falamos de terrorismo na intimidade estamos a falar daquele padrão de comportamento que já existe, que sempre existiu naquela relação, perpetrado pela pessoa agressora.
Qual é a grande diferença entre essas duas tipificações?
A violência doméstica também é terrorismo na intimidade. Mas não só, neste último tem muito a ver com o padrão de comportamento.
Há uma história prévia. Quando falamos de terrorismo na intimidade, de pessoas agressoras que exercem esse tipo de violência, existe um padrão. Naquela pessoa existe um padrão de comportamento que está assente na necessidade de controlar o outro.
Esse padrão é mais ou menos evidente, pode ser uma coisa que é expressa através de violência física, que é aquilo que a maior parte das pessoas está capacitada para identificar ou pode não ser. Podem ser estratégias que passam inicialmente pelo isolamento da vítima, para a afastar dos recursos, para a deixar mais dependente do agressor.
Muitas vezes quando as vítimas se apercebem de que estão numa relação dessa natureza, às vezes, é um bocadinho tarde demais para sair sem riscos. Ou seja, quando tentam sair estão a desafiar o controle que aquela pessoa agressora pretende manter.
E há momentos que normalmente coincidem com a tentativa de separação ou uma intenção, mesmo que a intenção não seja real e apenas seja percebida pelo agressor. Nesses momentos existem escaladas de violência.
Podemos dizer que 'terrorismo na intimidade' é uma forma de violência doméstica?
Sim, é violência doméstica, mas o que caracteriza relativamente à outra, é que este tipo de violência está assente no controle, portanto existe a necessidade de controlar o outro e normalmente controle coercivo. A vítima normalmente tem medo do agressor, portanto há aqui esta característica também de medo do opressor. E não tem de ser o medo de ser assassinada, mas sim medo da consequência.
Se eu não fizer aquilo que ele pretende, vou sofrer uma consequência. E pode ser, por exemplo, o tratamento de silêncio. Eu vou sair com umas amigas ou com uns amigos e quando chego a casa a pessoa está amuada. Faz isso uma, duas ou três vezes e à quarta vez já não sai porque não quer sofrer a consequência. Portanto, deixa de fazer as coisas que fazia normalmente.
Comparando com outros países, como é que está Portugal?
Há uns anos havia uma diferença significativa entre a taxa de homicídio, de femicídio em particular, comparativamente com Espanha. Tínhamos uma taxa duas vezes mais alta. Tem sido feito um esforço significativo e se olharmos para os períodos antecedentes a 2019, verificamos que existiram anos em que ocorreram 45, 40 femicídios. Acredito que existe uma ligeira tendência decrescente.
Por vezes, as respostas não identificam os casos mais graves. Portanto, tentarmos olhar para o homicídio ou para o número de participações de violência doméstica não é necessariamente a mesma coisa.
Olhando para os outros países, mesmo sem ter dados concretos, não estamos muito bem colocados no número de homicídios. Não somos de certeza um dos quatro ou cinco países mais seguros do mundo entre quatro paredes. Acredito que se fizermos essa comparação estamos francamente abaixo disso e não somos um país seguro entre quatro paredes. Em Portugal é de onde vem a ameaça, é dentro de casa. De onde surge a ameaça mais danosa é onde nos devíamos sentir mais seguros.
Há algum motivo para isso? Em Portugal sempre se ouviu o provérbio “entre marido e mulher não se mete a colher”...
Há um trabalho cultural a ser feito, acima de tudo ao nível da infância e da juventude para mudar crenças e mudar esses mitos e estereótipos. Porque de facto temos quase 50 anos de democracia, mas as coisas, a forma como as relações entre as pessoas se alteraram ou se têm vindo a alterar não foi tão rápida. Ou seja, não aconteceu no dia 25 de Abril.
Aquelas coisas que eram culturais, a aceitação do domínio do homem sobre a mulher. Isto é muito lento. E depois temos aqui um outro paradigma que está associado ainda à violência doméstica, que é a identificação da violência doméstica como sendo uma coisa física. Se perguntar, ou qualquer pessoa perguntar, a uma vítima de violência doméstica se ‘é vítima de violência doméstica?’… muitas vezes a resposta que obtenho é ‘não, ele nunca me bateu’.
As vítimas respondem isso?
Muitas vezes ainda respondem. Está muito assente nestas crenças. O próprio nome violência, quando pensamos em violência, a primeira coisa que vem à cabeça é uma agressão física. Este termo, muitas vezes, leva a que as pessoas identifiquem a violência como sendo uma coisa iminentemente física.
Felizmente o artigo 152, introduziu na lei, em 2021, um outro fator importante e prende-se necessariamente com as questões do controlo, que é o acesso ou fruição a recursos económicos. Existem muitas vítimas que apesar de se separarem do agressor, ele continuava a controlar o acesso às finanças, o acesso ao património e a dificultar a independência económica das vítimas mesmo após a separação. Só em 2021 é que há esta alteração.
Tal como, só em 2021 é que há a clarificação do artigo 152 em que estabelece que as crianças são vítimas de pleno direito. Até 2021, era o entendimento de muitos juristas... a criança era vista apenas como um fator agravante da violência. Tinham de estar expostas, tinham de assistir.
Isto é um trabalho difícil, transmitir a ideia à sociedade de que as crianças, independentemente de estarem presentes ou não, estarem na escola quando acontece a violência doméstica… quando chegam a casa têm uma estrutura familiar que está afetada pela violência e que isso vai necessariamente condicionar os cuidados emocionais. Há muitas pessoas que ainda não perceberam muito bem o impacto que isto tem.
Parece ser difícil de transmitir até na Justiça, onde ainda vemos sentenças difíceis de explicar em casos de violência doméstica a envolver crianças…
A dificuldade tem a ver precisamente com a compreensão do fenómeno enquanto caso único. Quando se olha para as decisões, provavelmente dessa natureza, o que estamos a assistir provavelmente é uma decisão tabelar, ou seja, aplica-se a todos os casos. Não olhamos para o caso em particular e não percebemos de que forma é que aquela criança pode sofrer e qual é o exercício, mais uma vez, de controle que está a ser feito, utilizando a criança para obter ou para continuar a afetar a pessoa vítima. E se as pessoas que decidem nos tribunais não estão bem assessoradas a esse nível, continuamos a cometer erros porque prevalece aquilo que é entendido como o superior interesse da criança, sem ter em conta sequer a criança.
Como é que alguém pode definir o superior interesse da criança ou estabelecer o superior interesse da criança, quando a criança claramente não está a ser atendida nos seus direitos e nas suas emoções e no seu desenvolvimento?
Os processos de violência doméstica são da área criminal e a regulação do poder parental é no Tribunal de Família. Não deve ser o mesmo juiz a tratar tudo?
Já temos as experiências da Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), que infelizmente ainda só estão em cinco territórios.
Deixa-me dizer a propósito disso, porque é um ponto muito pertinente, que esta questão da regulação das responsabilidades parentais, ou as questões que estão associadas essencialmente aos tribunais de família e menores, muitas destas pessoas - e volto a falar na questão do controlo - utilizam o sistema em seu favor, estamos a falar dos tais terroristas na intimidade.
A maior parte não mata, mas vai envenenando e vai danificando a vida da outra pessoa (vítima), quer crianças, quer parceira. Utilizam o próprio sistema para continuar a exercer esse controle e essa violência. Criando incidentes processuais que levam com que as crianças e as vítimas adultas não se consigam desenvencilhar e viver a vida. Eles continuam e percebem que o sistema não os identifica.
Nós temos mulheres e crianças que permanecem ou que estão permanentemente no tribunal ou nas CPCJ, com questões que são denunciadas ou identificadas pelos agressores.
Como é que se resolve isso?
Temos de identificar os padrões. Isso carece de trabalho e de olhar para o caso particular. Quando começamos a notar que aquela pessoa denuncia ou cria incidentes processuais sistematicamente, para acusar a outra parte disto ou daquilo. Se isto é permanente, há aqui algum objetivo.
Muitas vezes aquilo que olhamos é para os incidentes isolados. Ou uma bofetada, ou uma injúria e não olhamos para trás. Temos de perceber os padrões de comportamento e colocar questões muito óbvias. Por exemplo, porque é que aquela pessoa faz aquilo que faz? Qual é o objetivo? É de facto zelar pelo interesse da criança? Ou pretendem arrastar o outro pelo tribunal a vida toda?
Obviamente que é um papel difícil para os tribunais. Têm de averiguar quase todas as situações até chegarem a essa conclusão. Demora muito mais tempo do que um caso em que de violência doméstica típica, entre aspas, em que há uma chapada, uma coisa qualquer. Estes são mais difíceis.
Ainda existem magistrados que, de alguma forma minimizam este tema. Como é explicamos isto às pessoas e às vítimas?
Já estou nisto há alguns anos. E não sou, por natureza, um otimista no que diz respeito à evolução. Tem sido feito um trabalho imenso nesta capacitação dos vários atores, aliás, de todos os organismos do Estado que intervêm na área da violência doméstica. Têm sido nos últimos anos, alvo de formação intensa. Estamos a falar de profissionais da segurança social, polícias, professores, elementos da CPCJ.
É importante que isto chegue também à magistratura judicial. Mas ainda não chegou. Existe formação intensiva no Centro de Estudos Judiciais (CEJ). Não sei se chega a toda a gente. Mas também existem aqui os tais mitos e estereótipos que muitas vezes estão presentes na vida das pessoas antes de elas ingressarem numa carreira profissional. Acredito que a maior parte dos juízes e magistrados do Ministério Público são pessoas que estão, de facto, interessadas em resolver o problema.
Como é que é possível em 2023 ainda haver acórdãos ou decisões desta natureza? Claro que isto depois inquina toda a crença que a vítima possa depositar no sistema.
A propósito das decisões dos tribunais e da evolução que tem sido feita, se olharmos para as estatísticas, porque as estatísticas trazem-nos estes números e falando apenas relativamente às medidas de coerção com vigilância eletrónica: no 4º trimestre de 2018 existiam 309 pessoas com vigilância eletrónica e no 4º trimestre de 2021, existiam 898.
O que é que isto quer dizer? Quer dizer claramente que a justiça e a investigação estão a fazer um caminho. Existem muito mais pessoas com medidas de vigilância eletrónica do que existiam. Se olharmos para os reclusos, também vemos uma duplicação do número de reclusos entre o 4º trimestre de 2018 e o 4º trimestre de 2022.
Fizemos uma evolução bastante significativa, no entanto, há muito, muito a fazer. Não podemos continuar a olhar, por exemplo, para os relatórios sucessivos da Umar, sobre violência no namoro, e ficamos perplexos, obviamente, como é que ainda há, por exemplo, a aceitação do controle do telemóvel pelo outro, pelo namorado ou pela namorada. Portanto, a esse nível há muito trabalho a fazer.
Será suficiente o acompanhamento que se faz aos mais jovens?
Olhe, vamos atrás das crianças que ficaram órfãos. Vamos atrás dessas crianças que ficaram órfãos e que tipo de tratamento é que elas tiveram. Aquelas que perderam os pais há 10, 15, 5, 6 anos. O que é feito dessas crianças? Que tipo de apoio é que o Estado lhes deu? Que tipo de intervenção é que existiu? Se tiveram a sorte de ter uma família com capacidade financeira e que fosse securizando. As outras estão entregues a si próprias, provavelmente. E aos seus demónios e fantasmas.
Mas existem, ao nível da violência doméstica, existem as respostas de apoio psicológico criadas também em 2021, para crianças de jovens vítimas de violência doméstica, que estão presentes em quase todos os distritos de Portugal, exceto Lisboa e Algarve, neste momento.
Penso que, se não estou em erro, e não quero estar agora aqui a dar números que não são exatamente corretos, mas fizeram no espaço de um ano e pouco mais de mil e tal atendimentos, o que é bastante importante.
Muito importante?
Faço clínica privada e a maior parte das pessoas que me procuram não são vítimas de violência doméstica, nem agressores, nem vítimas atuais. São adultas. Mas as pessoas que me procuram adultas, com essas características que vêm com quadros mais comuns de depressão, ansiedade, questões de perturbações de humor, 45% dessas pessoas foram vítimas da violência doméstica enquanto eram crianças. Portanto, não olharmos para este fato, significa que se não apostarmos na saúde mental como prioridade nacional, estamos sempre a deixar isto escapar.
É necessário este tipo de intervenção, não apenas reativa, como foi durante muito tempo, tem de ser também ao nível da saúde mental das crianças.
E os adultos vítimas conseguem também ter esse apoio?
Tirando as Instituições Particulares de Segurança Social (IPSS) e as organizações de apoio à vítima não estou a ver, acho que não existe resposta nenhuma. Sinceramente, não existe resposta nenhuma e não existe resposta nenhuma também para os agressores, porque existem também pessoas agressoras que, de facto, se querem tratar.
Temos de olhar para os agressores que eles não são todos iguais. As 30 mil participações implicam no mínimo 30 mil agressores. Eles não são todos iguais. Não podemos pôr os agressores todos no mesmo saco. Existem de facto aqueles que não é possível tratar. Existem aqueles que não querem ser tratados e existem alguns, ou muitos, que querem ser tratados. E não tratando destas pessoas, o que significa é que elas vão continuar com os mesmos comportamentos. Se não fazem aquela vítima, fazem uma próxima.
A nível do perfil de agressor, há pontos comuns?
Não existe um perfil único de pessoa agressora. A partir desse princípio eles não são todos facilmente identificados. Uma parte deles estão bem integrados, fora das quatro paredes são pessoas divertidas, alguns bons amigos e outros têm comportamentos socialmente aceites. Portanto, não existe um perfil único.
O que é importante estabelecer e pensar sobre os agressores, é tentar perceber se de facto aquela pessoa tem um perfil de personalidade mais controladora. Ou seja, se é alguém que tem necessidade de manter controle sobre todas as questões da vida. E quando existe este tipo de personalidade, qualquer desafio por parte das pessoas vítimas pode ser um gatilho para a violência mais severa. Mas também existem muitas pessoas que são controladoras e não são agressoras.
Ou seja, esse será um daqueles traços que pode ser um alerta vermelho…
Claro que sim. Como é que se manifesta depois? A violência não começa de uma forma logo linear. Ninguém ficaria numa relação se ao seu primeiro encontro houvesse uma agressão física. Como é que começa?
Eu costumo dar este exemplo. A pessoa entra numa relação com a outra pessoa e passam a viver juntos. Na primeira semana a pessoa diz, ‘vou jantar com uma amiga, com um amigo, vou ao cinema’ e ele diz ‘se gostasses mesmo de mim não me deixavas aqui sozinho’. Começa desta forma. E a pessoa vai e quando regressa, aquela pessoa está amuada.
Na segunda vez, na semana seguinte, vai novamente fazer qualquer coisa. Ele diz ‘vais sair outra vez, vais me deixar aqui sozinho? Parece que não te preocupes comigo’. Quando volta, ele está uma ou duas horas sem falar com ela. Será que à terceira vez a pessoa já vai com disposição para se divertir ou prefere ficar em casa para não ter problemas? Isto começa desta forma, uma forma que parece às vezes muito pouco perigosa. E é desvalorizado pelas pessoas. Ele amuou, ele não falou comigo. Tem mau feitio.
E a maior parte destas pessoas não matam. Aqueles que matam são uma pequena fatia, mas são pessoas que arruínam completamente a saúde mental das outras pessoas. Quantas, e esta é uma pergunta que tenho vindo a fazer há muito tempo, quantas pessoas se suicidam com a história de violência doméstica?
Lembro-me de ler, mas não sei referir o estudo, que por cada duas mulheres que são assassinadas no Reino Unido, três se suicidam. Ou seja, temos aqui números muito significativos também nesta dimensão.
O que se conhece é a pontinha do iceberg?
Não se conhece. Alguém sabe quantas mulheres se suicidam em Portugal que estavam a viver relações de violência doméstica? Ninguém sabe. E estas pessoas procuram ajuda, muitas delas procuram ajuda. Procuram ajuda nos centros de saúde, com depressões, por exemplo.
E se você for estudar a população reclusa, vai perceber que a grande maioria das pessoas que estão presas são elas próprias, ou foram elas próprias, vítimas de abuso e de violência quando eram crianças.
Como é que conseguíssemos quebrar o círculo?
Para quebrar o círculo tem de se intervir. Na área da saúde mental, por exemplo. Existe muito trauma, muita dor naquelas pessoas que lá estão. Obviamente que não estou a falar isto para desculpar o comportamento, não é nada disso.
Temos é que perceber que se soubermos que isto acontece, temos a obrigação de intervir quando identificamos que existe dor e sofrimento nas crianças, para evitar que estas crianças façam percursos de dor e de sofrimento ao longo da vida. E não tem necessariamente a ver com o resultado, porque a grande maioria, felizmente, nunca será agressor, nem vítima, mas carregam dor pela vida fora.
Como é que nasceu o seu interesse nesta área?
Foi casual. Fui polícia durante muitos anos. Estive na Polícia de Segurança Pública durante muitos anos, essencialmente ligado às questões da investigação criminal. Depois estive um ano numa missão em Timor-Leste, em 2000, no âmbito das Nações Unidas, e aí decidi ligar-me, começar a fazer formação em Psicologia. Porque vi lá muitos quadros de stress pós-traumático, muitas pessoas com sofrimento, pessoas que passaram pelos massacres, por violações, por tudo aquilo.
E depois quando regressei, já com a formação feita, fiz cá, entrei para uma CPCJ, tive três anos numa CPCJ como técnico gestor e aí comecei a interessar-me por estas questões mais das crianças e jovens. Depois entrei para o Ministério da Administração Interna e aí fiquei ligado às questões da violência doméstica, em particular. E as crianças e jovens. Foi a partir daí.
E tem contribuído para alguns dos avanços que têm acontecido?
Quero acreditar que sim. Estive ligado à criação da ficha de avaliação de risco, que está em uso pelas forças de segurança, fiz parte da equipa que a desenvolveu.
Nessa altura, uma das partes que me coube no processo científico para a criação da ficha de avaliação de risco, foi a análise dos homicídios. Procurámos na literatura científica internacional para perceber se se aplicava à nossa realidade. E aplicava-se. Pensei, temos de aprender com o erro, fazer mais alguma coisa. Entrei em contato com equipas internacionais que já faziam esse trabalho de análise retrospetiva. Era o ano de 2015.
A revisão da lei nessa altura, permitiu integrar o artigo 4.º-A - Análise retrospetiva de situações de homicídio em violência doméstica e, em 2017, foi criada uma equipa da qual fui membro permanente, até pedir a licença em outubro.
Nesse trabalho de análise de homicídios percebi que era preciso fazer alguma coisa e de alguma forma suscitei a necessidade de trazer o modelo internacional para cá. Depois foi implementado e muito bem orientado e coordenado, pelo Dr. Rui do Carmo.
Em relação ao número de crianças que perderam a vida no ano de 2022, em contexto de violência doméstica, quatro no total, António Castanho admite que este é um número "fora do normal". Mesmo assim, considera que é "cedo" para se tirarem "conclusões" e que é preciso esperar pelos próximos anos para perceber se há "uma tendência" de subida. Leia a outra parte desta entrevista exclusiva aqui.