Culpa e vergonha: porque é que muitas vítimas de violação não apresentam queixa?

9 mai 2022, 10:00
Mulher

As vítimas são quase sempre mulheres que sabem que, em algum momento, alguém as vai culpar. Alguém vai dizer que ela "se pôs a jeito", que não devia ter usado uma roupa provocante ou que não deveria andar sozinha na rua à noite. E esta culpabilização pode acontecer por parte de uma amiga ou até por um elemento da autoridade

Culpa e vergonha. Estes são os dois sentimentos com que as vítimas de violação mais se debatem e é por isso que tantas vezes têm dificuldade em denunciar este crime às autoridades, explica à CNN Portugal o psicólogo Daniel Cotrim, assessor técnico da APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, onde é responsável pela área de violência de género. No momento em que se discute se a violação deverá ou não passar a ser um crime público, importa perceber porque é que as vítimas tantas vezes optam pelo silêncio.

Falar de vítimas de violação é falar quase sempre de mulheres. De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna, relativo a 2020, as vítimas de um crime de violação são maioritariamente do género feminino (92,3%), enquanto os arguidos são maioritariamente do género masculino (99,1%). E, por isso, falamos também sempre de desigualdade de género e da forma tão distinta como homens e mulheres são educados para o sexo.

"Somos um país que é profundamente e estruturalmente desigual", afirma Daniel Cotrim. "Vivemos numa sociedade patriarcal e misógina, onde os homens são elogiados pelas suas conquistas sexuais, são uns garanhões, mas, pelo contrário, as mulheres que tenham mais parceiros já são chamadas de galdérias ou pior."

"As mulheres são educadas para sentirem vergonha de tudo o que está associado ao sexo, com imensos tabus", explica o psicólogo.

Essas diferentes percepções que homens e mulheres têm da sexualidade são cruciais, em primeiro lugar, para entender a violência sexual dos homens em relação às mulheres - porque crescem a achar que "têm direito" ao corpo das mulheres. E, depois, são também fundamentais para perceber a reação, quase sempre de autoculpabilização, das vítimas deste tipo de abusos.

"A primeira pergunta que as vítimas fazem é: porquê eu?, o que é que eu fiz para proporcionar isto?", revela Daniel Cotrim. As mulheres culpam-se porque sabem que, em algum momento, alguém as vai culpar. Alguém vai dizer que ela "se pôs a jeito", que não devia ter usado uma roupa provocante ou que não deveria andar sozinha na rua à noite. E esta culpabilização pode acontecer por parte de uma amiga ou até por um elemento da autoridade.

"E o que é pior é que este tipo de narrativa é muitas vezes legitimado pelos tribunais, que desculpam o homem e alimentam a ideia de que é a mulher que se torna irresistível para o violador", critica Daniel Cotrim.

"Quando vão fazer uma queixa, as mulheres sabem de antemão que poderão não acreditar nelas, que muitas pessoas vão duvidar da sua palavra." Assim, percebe-se melhor que uma mulher tenha dificuldade não só em denunciar o crime à polícia, mas até em assumi-lo perante a própria família. 

"Isto sem falar que muitas das violações acontecem dentro das relações. As mulheres já começam a falar da violência da doméstica, mas têm ainda muita dificuldade em assumir que foram violadas pelo seu companheiro, porque existe esta ideia, que está enraizada em homens e mulheres, de que o corpo dela pertence ao marido, que ele pode fazer com ela o que quiser."

"Isto não pode continuar. A violação é um crime, o violador tem de ser responsabilizado e a vítima tem de ser apoiada", defende Daniel Cotrim. É importante que os violadores deixem de sentir que há uma impunidade em relação a este tipo de crimes. E é importante que as vítimas acreditem que o sistema funciona e que vale a pena fazer a denúncia porque, no final, será feita justiça.

Quer decidam apresentar ou não queixa, as vítimas - que também podem ser chamadas sobreviventes - precisam de todo o apoio emocional e social.

Como apoiar uma pessoa que foi vítima de violação?

A primeira coisa a fazer é ouvir a vítima e acreditar nela, sem fazer julgamentos. 

Neste momento, a violação não é um crime público, o que significa que apenas a vítima pode apresentar queixa. Assim, se alguém testemunhar ou tiver conhecimento de uma violação deverá "aconselhar a vítima a apresentar queixa na Polícia Judiciária o mais precocemente possível", diz Daniel Cotrim. Se não quiser dirigir-se à polícia, a vítima poderá sempre recorrer a alguma associação de apoio a vítimas de violência sexual.

No entanto, pelos motivos atrás indicados, sabemos que existe uma grande dificuldade em tomar esse passo: "Respeite a escolha da vítima. É ela quem deve tomar as decisões. Com a sua ajuda, ela saberá quem contactar quando estiver pronta", lê-se no Manual de Boas Práticas para os Profissionais no Atendimento a Vítimas de Violência Sexual, criado pela UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.

"Sabemos que é normal as vítimas de violação sentirem nojo, do que aconteceu e do seu próprio corpo. A primeira reação é lavarem-se, tomarem banho, retirarem de si todos os vestígios do que aconteceu." Infelizmente, isto é o que não se deve fazer. "A vítima deve dirigir-se a uma instituição hospitalar e explicar o que aconteceu para que possam ser recolhidas provas", explica o psicólogo.

"Sabemos que este é um processo doloroso. É por isso que existe um prazo de seis meses para apresentar queixa, que é o tempo da decisão. Se não se sentirem preparadas para dar este passo imediatamente, podem guardar a roupa, nomeadamente a roupa interior, ou outras provas que possam ser relevantes."

Mesmo que não seja tão afetada pelos sentimentos de culpa e vergonha, apresentar queixa pode ser uma enorme violência porque implica reviver uma experiência traumática. "É importante que as pessoas que as ouvem sejam, de facto, especialistas neste assunto. Para que façam as perguntas certas e saibam dirigir estes inquéritos", considera Daniel Cotrim.

"Na APAV, concordamos que a violação seja crime público, até para que se comece a falar deste assunto, tal como aconteceu com a violência doméstica. Mas consideramos essencial disponibilizar serviços com profissionais especializados que acompanhem de facto as vítimas. Não basta ter sensibilidade para estas situações, é preciso que sejam mesmo especializados, sejam psicólogos, médicos, agentes da autoridade ou magistrados."

Além disso, sublinha, é importante que, tal como acontece com o crime de violência doméstiva, seja criada "uma porta de saída do processo" para o caso de a vítima querer abandonar o processo se não se sentir bem. "Temos de perceber que estamos a falar da intimidade de uma pessoa e que um processo público deste tipo pode afetar a sua vida familiar, pessoal, social e até profissional. Estas pessoas precisam de ser muito apoiadas e a sua vontade respeitada."

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