Um cacho de uvas pode ser um produto de luxo. Há quem cruze o mundo para conhecer estes diamantes portugueses em bruto

1 set, 20:00
Reportagem Vindimas e Castas (DR)

Portugal é o terceiro país do mundo mais rico em tipos de uvas. A curiosidade crescente pelas castas portuguesas está a levar muitos produtores a virarem-se para a produção de vinhos monocasta, ou seja, feitos apenas com uma variedade. Por cá, começa agora a ganhar força uma tradição consolidada no estrangeiro: a de pedir o vinho pela casta de que é feito. A Touriga Nacional e o Arinto estão entre os preferidos. E, pela sua resistência, estas castas são encaradas pelos produtores como uma boa resposta ao impacto das alterações climáticas nas vindimas

Este dia de agosto começa cedo em Vila Chã de Ourique, no Cartaxo, Santarém. Os chapéus de palha protegem do sol cada vez mais forte, permitem encontrar os trabalhadores entre as vinhas quando vistos do céu. As mãos apalpam os cachos de Touriga Nacional, uma das castas de maior sucesso em Portugal.

Fala-se em Touriga Nacional para realçar um fenómeno a ganhar força no setor do vinho em Portugal: o maior interesse dos consumidores em entender as características de cada uma das castas. E há quem venha do outro lado do mundo, de propósito, para conhecer as uvas com ADN nacional.

Vinhas de ODE Winery em Vila Chã de Ourique, Cartaxo (DR)

Até porque Portugal é o terceiro país do mundo mais rico em variedade de uvas. À nossa frente, no número de castas, ficam apenas Geórgia e Itália. “Temos a benção de ser o berço de mais de 300 castas. Isso, naturalmente, suscita muita curiosidade nos consumidores e nos apaixonados pelos vinhos”, explica Maria Vicente, enóloga na ODE Winery, que produz cerca de 80 mil garrafas de vinho por ano. 

A riqueza de Portugal no que respeita às uvas, diz, é uma “herança” que vem dos tempos da ocupação romana. É caso para dizer que é no nosso passado que está o futuro do setor do vinho em Portugal.

E se precisar de ajuda para dar os primeiros passos neste mundo, aqui vão algumas das castas portuguesas mais conhecidas. Nas tintas temos a Touriga Nacional, a Baga, a Trincadeira ou o Aragonez. Nas brancas destacam-se o Alvarinho, o Arinto, o Encruzado, a Fernão Pires ou a Antão Vaz.

Touriga Nacional: há quem a chame de "a rainha" da vinha portuguesa (DR)

Tradição lá fora, tendência cá dentro

Em Portugal, há muitas formas de se pedir um vinho. Primeiro, escolhemos se queremos branco, tinto ou rosé. Depois, aplicamos uma das 14 regiões vitivinícolas que constituem o país. Exemplos: quero um branco do Alentejo, quero um tinto do Dão. O tipo de uva que vai lá dentro, geralmente, não gera grande discussão.

Contudo, fora de portas, a tradição é outra. Há muito que os anglo-saxónicos, por exemplo, estão habituados a pedir um vinho pela casta. Chegam a um bar e pedem um Cabernet Sauvignon, um Sauvignon Blanc ou um Syrah. É pela casta que escolhem o vinho.

“Para o mercado anglo-saxónico, é muito mais fácil de entender os vinhos pela casta, porque sabem aquilo com que vão contar. Sabem que uma Touriga Nacional vai ser um vinho encorpado, com aroma floral e um tanino polido. Acaba por haver abertura, nesses mercados, para as monocastas”, confirma Alexandre Relvas, produtor de Casa Relvas, que produz mais de oito milhões de garrafas de vinho por ano a partir de São Miguel de Machede, em Évora. Destas, 75% vão para exportação.

Uma tendência que está a ganhar força entre os apreciadores de vinho também em Portugal. “O português começa agora a descobrir as especificidades das castas. Temos um restaurante onde muitos clientes vêm especificamente para provar arinto, Fernão-Pires, Touriga Nacional. Começa a acontecer com alguma frequência”, diz Maria Vicente.

Maria Vicente, enóloga da ODE Winery (DR)

Os produtores nacionais, atentos a esta realidade, estão também a adaptar a sua oferta, apostando nos chamados vinhos monocasta. Ou seja, com apenas um tipo de uva. São bebidas que ajudam o consumidor a perceber melhor aquilo de que gosta, por exemplo, no que respeita à acidez do vinho. “Se gostar de vinhos de elevada acidez, provavelmente vou gostar muito de um Arinto ou de um Alvarinho”, sugere Maria Vicente.

Apesar de admitir a curiosidade crescente pelos vinhos monocasta, Alexandre Relvas acredita que “a nossa tradição de blends [misturas de castas] se vai manter”. E justifica: “As equipas de enologia usam as várias castas para conseguir que a qualidade desta colheita seja parecida com a colheita do ano anterior. E isso é, sem dúvida, algo importantíssimo para as marcas.” Por outras palavras, permite ao consumidor saber com o que pode contar.

“Monocasta ou não, o vinho tem de ser bom, interessante. Tem de ter uma coisa que os ingleses chamam de drinkability [capacidade de ser bebido]. O vinho monocasta é algo que, tomado em comunidade, vai trazer alguma discussão à volta do sítio de onde vem essa casta. Permite, por exemplo, comparar uma Touriga Nacional do Dão com uma do Alentejo. Para ver como é que o homem, o clima e a terra fazem com que essa casta se comporta de um sítio para o outro. A proximidade ao mar, o tipo de solo, a condução da vinha ou a vinificação da adega são tudo elementos que vão mexer com o produto final”, descreve.

Trabalhadores usam chapéus de palha para se protegerem do sol durante as vindimas em agosto (DR)

Vindimas cada vez mais cedo: o impacto das alterações climáticas

Longe vão os tempos em que a vindima acontecia em meados de setembro, início de outubro. A tradição já não é o que era. E as alterações climáticas são uma das principais responsáveis por colheitas feitas cada vez mais cedo. O calor tem deixado muitas uvas prontas para serem colhidas logo no início de agosto.

“É um facto, as alterações climáticas são uma realidade. Temos vindo a sentir fenómenos cada vez mais extremos, como golpes de calor ou elevada precipitação em alturas em que não seria esperado. São novos desafios para a viticultura. Temos começado cada vez mais cedo a vindima”, confirma Maria Vicente.

Para lidar com um tempo extremo, há que procurar castas mais resistentes. E é aqui que as uvas com ADN português podem ser um forte aliado dos produtores. “Quanto mais as castas estiverem adaptadas ao clima, melhor se vão comportar. As castas autóctones terão uma resposta bastante mais positiva do que as castas importadas”, resume Maria Vicente.

Veja-se o exemplo da Touriga Nacional, “a rainha da vinha portuguesa”, que, devido ao seu bago pequeno e pele grossa, se mostra muito resistente e se adapta facilmente a vários tipos de climas.

Transporte da colheita de Arinto da Casa Relvas (DR)

O dedo da tecnologia

São Miguel de Machede, Évora. Na vinha, o silêncio é rasgado pelo motor da máquina que torna muito mais rápida a vindima. Fila a fila, os ramos são abanados, as uvas acabam por ceder. Ainda assim, poucos metros mais atrás, seguem alguns homens de tesouras nas mãos. Nem sempre a tecnologia é capaz de fazer tudo sozinha. Como há uvas num nível mais baixo, a máquina não consegue descer até elas.

A colheita desta manhã é de Arinto, uma das castas portuguesas mais apreciadas em todo o mundo. “Em branco, a minha casta preferida é o Arinto. É uma casta plantada de norte a sul de Portugal, faz grandes vinhos, desde os vinhos verdes até ao Algarve”, conta Alexandre Relvas.

Alexandre Relvas com um cacho de Arinto (DR)

Para que a uva se transforme em vinho, juntam-se os saberes ancestrais e verdadeiras lições de química. O tempo de fermentação ou o tipo de barricas onde este néctar dos deuses fica a estagiar - como a barrica de carvalho francês ou as talhas de barro - vão permitindo resultados muito diferentes para uvas vindas da mesma colheita.

E há quem venha, literalmente, do outro lado do mundo para perceber ao vivo como tudo isto se processa. Um programa diário de vindima pode custar mais de 100 euros. Um simples cacho de uvas é cada vez mais encarado como um produto de glamour. E muitos são os que querem sentir nas próprias mãos o vinho naquela que é a sua primeiríssima etapa.

Mesmo em colheitas industrializadas, há sempre intervenção humana nas vinhas (DR)

Manual vs. Industrial

Num modo de produção artesanal e biológico, como aquele que é seguido na ODE Winery, o processo de seleção começa ainda no terreno. Por aqui, as máquinas só entram em caso de emergência, se o tempo ameaçar as uvas e for preciso retirá-las com rapidez. Caso contrário, são as mãos e os olhos humanos aquilo que faz a diferença.

Um trabalhador tira com os próprios dedos os bagos que secaram com o sol, para não afetar a qualidade do vinho. É tudo selecionado, uma e outra vez, para garantir o melhor resultado final na garrafa (e no preço). Ao chegarem à adega, as uvas passam para um tapete de escolha, onde outros olhares especializados retiram aquelas que escaparam à primeira seleção.

Processo de seleção no tapete de escolha de ODE Winery (DR)

É um processo que fica mais próximo do nosso imaginário coletivo sobre as vindimas, que contrasta profundamente com um modo de produção mais industrializado. Neste último, quando o atrelado carregado de uvas chega à adega já vem cheio de sumo das uvas esmagadas durante a recolha. Há primeiro que coar esse líquido. Depois seguem as uvas. E a magia começa a preparar-se.

O resultado é apreciado sobretudo no Brasil, nos Estados Unidos da América e nos países nórdicos. Contudo, apesar de Portugal ter atingido uma produção recorde de 7,5 milhões de hectolitros na campanha de 2023/24, deixando-o no top 10 mundial, há vários motivos de preocupação para o setor do vinho português.

No ano passado, registou-se uma quebra ligeira nas exportações, ainda assim acima dos 900 milhões de euros, bem como uma descida mais acentuada (de quase 10%) no consumo interno. 

Pormenor do engarrafamento na Casa Relvas (DR)

Bons vinhos a caminho

O foco está em produzir vinhos com cada vez maior qualidade. Em vez do copo cheio, dizem os produtores ouvidos pela CNN Portugal, o consumidor quer brindar com o melhor vinho possível.

A colheita deste ano, pelo menos, parece promissora. “Podemos esperar vinhos elegantes, complexos e, ao mesmo tempo, bastante frutados e equilibrados”, antecipa Maria Vicente.

“Como foi um ano em que não houve temperaturas extremas, a pureza aromática das uvas está a ser incrível. Esperamos brancos com frescura e pureza aromática. Nos tintos ainda estamos a começar, mas se o tempo se mantiver vamos ter um grande ano no Alentejo”, completa Alexandre Relvas.

Portugal, nesta matéria, e apesar da quebra no consumo interno, tem um título de que se pode orgulhar: o de maior consumidor per capita de vinho, com 61,7 litros por ano por cada habitante com idade legal para consumir.

A riqueza de paisagens ajuda a vender o vinho, mas é o facto de o olharmos como cultura, dizem os especialistas, que acaba por fazer toda a diferença. “Os olhos bebem. E acontece-nos o vinho ter um gosto diferente consoante o momento. O nosso cérebro e a nossa predisposição vão interferir muito na perceção de qualidade de um vinho. Se estivermos em euforia, a celebrar o nascimento de um filho, porque estamos em êxtase, esse vinho vai-nos saber muito bem”, admite Alexandre Relvas.

Um dos grandes objetivos é subir a qualidade a cada ano (DR)

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