A missão de Rudi Gutendorf, o treinador que viajou sem fim

19 set 2019, 23:48
Rudi Gutendorf

Treinou 55 equipas em 32 países, em todos os continentes e ao longo de meio século. Morreu aos 93 um viajante incansável. A sua história e o recorde que escreveu no Guinness vivem muito para lá do seu tempo

«Quando morrer, quero que a minha vida tenha valido a pena. Foi por isso que assumi com gosto os maiores desafios.» Missão cumprida a de Rudi Gutendorf, o alemão que treinou 55 equipas em 32 países, em todos os continentes e ao longo de cinco décadas, uma carreira excêntrica e única. Chamaram-lhe missionário do futebol, embaixador de fato de treino. Faleceu a 13 de setembro de 2019, na sexta-feira passada, rodeado da família. A sua história e o recorde que escreveu no Guinness vivem muito para lá do seu tempo.

É uma vida que atravessa a história do século XX. Começa com o jovem Rudi, nascido a 30 de agosto de 1926, apanhado no fim da II Guerra Mundial a tentar escapar à incorporação para poder jogar futebol no TUS Neuendorf, o clube que representou durante uma década, até ser obrigado a terminar a carreira por causa de uma tuberculose.

Já tinha orientado alguns clubes regionais e o próprio Neuendorf antes de pendurar as botas e assumir a aventura como treinador. Num tempo em que treinador de futebol estava longe de ser a mais glamourosa das profissões. «Quando me tornei treinador, a minha mãe olhou para mim como se me tivesse tornado varredor de ruas», contou numa entrevista ao site da UEFA, a mesma onde disse a frase que deu início a este artigo.

Formou-se com Sepp Herberger, o treinador campeão do mundo em 1954, e aproveitou uma viagem à Suíça para tratamento da sua doença pulmonar para assumir o primeiro clube no estrangeiro, o FC Blue Stars Zurique. Estávamos em 1955 e até 2003, quando orientou a Samoa no último ponto de passagem da carreira, nunca mais parou. Um viajante compulsivo que não ganhava raízes, de experiência em experiência. Entre tantos destinos, seis clubes alemães, 18 seleções, recorde absoluto com paragens nos destinos mais improváveis.

 

A insólita tática na estreia da Bundesliga e Keegan num motim em Hamburgo  

O primeiro clube que treinou na Alemanha foi o MSV Duisburgo, que se chamava então Meidericher SV e que liderou na época de estreia da Bundesliga, 1963/64. Terminou no segundo lugar, atrás do campeão Colónia. Já com ideias excêntricas, como a tática inusitada que adotou nessa temporada e que definiu assim nessa entrevista à UEFA: «Mandava os meus jogadores todos para trás para defender e deixava um avançado sozinho na frente. Quando os adversários ficavam mais frustrados por não marcarem ou descuidados, eu saltava e agitava os braços. Era o sinal para toda a gente avançar para o ataque. Foi assim que terminámos em segundo lugar. Foi um milagre.»

A seguir passou pelo Estugarda, antes de emigrar para os Estados Unidos, onde treinou o St Louis Stars e depois a primeira seleção da carreira: Bermudas. Voltou à Alemanha para treinar o Schalke, com quem chegou à meia-final da Taça das Taças em 1969/70, recorrendo também a métodos pouco ortodoxos. Levava a equipa para treinar às 5 da manhã próximo de uma mina de carvão, conta esse artigo da UEFA, para que ficassem com uma ideia do que passavam os mineiros do vale do Ruhr, a região do clube de Gelsenkirchen.

Na Alemanha ainda treinou o TSV Munique e Hamburgo, de onde saiu ao fim de três meses. Por culpa dos jogadores, disse numa entrevista à BBC, assumindo que é uma das mágoas da sua carreira. E tudo, garante, por ter contratado Kevin Keegan para o clube que tinha acabado de vencer a Taça das Taças. «O capitão veio ter comigo e disse: ‘Não gostamos deste inglês. Ganhámos a Taça, não precisamos dele e não gostamos dele. Se o puser a jogar não vamos gostar de trabalhar consigo'», contou: «Tenho a certeza que os jogadores me sabotaram. Perdemos por 5-2 no primeiro jogo da época e vi que os jogadores não queriam ganhar.»

O Hertha Berlim, em 1986, foi o último clube que Rudi Gutendorf treinou na Alemanha. Por essa altura já tinha o passaporte coberto de carimbos. Já tinha treinado as seleções das Bermudas, Chile, Bolívia, Trindade e Tobago, Grenada, Antígua e Barbuda, Botswana, Austrália, Nepal, Tonga, Tanzânia, Gana. Ainda havia de passar pelas Fiji, pelas seleções olímpicas do Irão e da China, pelo Zimbabwe, Maurícias e Ruanda, até terminar à frente dos sub-23 da Samoa. Pelo meio treinou o Lucerna na Suíça, onde ficou ao longo de cinco anos na experiência mais estável da carreira, o Sporting Cristal no Peru, o Valladolid em Espanha, o Tokyo Verdy no Japão. A lista completa está aqui, no site oficial de Rudi Gutendorf.

Da fuga do Chile de Pinochet ao Ruanda depois da guerra

Tem histórias sem fim. No Chile, onde chegou em 1972, cruzou-se aliás com Portugal, na vitória da seleção nacional por contundentes 4-1, para a Minicopa que se jogou no Brasil. Ainda como selecionador do Chile viu-se no meio do golpe que instituiu a ditadura de Augusto Pinochet. Esses dias negros de repressão e tortura deixaram-lhe memórias duras. «No estádio de Santiago, instalei um muro que usávamos para ensaiar remates. Mataram 100 ou 200 pessoas contra esse muro», contou numa entrevista à BBC. «A certa altura o embaixador alemão veio ter comigo e disse: ‘Vê como esta gente de Pinochet é brutal? Ordeno-lhe que volte amanhã’. Pus algumas coisas num saco e fui-me embora.»

Também assistiu a tentativas de corrupção. No Nepal, contou à BBC, representantes de um «país do petróleo» contactaram-no a oferecer-lhe muito dinheiro para perder um jogo da Taça Asiática por 8-0.

Gutendorf fez grande parte da carreira em seleções de países com poucos recursos. Por vocação e também porque a partir de certa altura assumiu formalmente esse papel para o Governo e a Federação alemãs e avançou para alguns desses destinos ao abrigo de programas de cooperação.

Foi assim no Ruanda, onde chegou em 1999, a um país destruído pelo genocídio e pela guerra civil. Formou uma equipa que juntava jogadores das etnias Hutu e Tutsi. «O governo alemão disse-me que não interessava se ganhássemos por 1-0 ou 2-0, o mais importante era o aspeto social, tentar unir as duas tribos. Tanto ódio, era incrível. Mas consegui unir estas duas tribos para jogar futebol, e bom futebol», disse à BBC, recordando em especial um empate com a Costa do Marfim, em Kigali, na qualificação para o Mundial: «O público no estádio ainda começou a distinguir, aqui estão os Tutsi, aqui os Hutu. Mas quando jogámos bom futebol eles esqueceram-se disso, abraçaram-se e sentiram-se como uma nação unida. Tenho muito orgulho nisso.»

Gutendorf foi condecorado duas vezes com a Cruz de Mérito na Alemanha, que quer preservar a memória daquele a quem chamaram «Riegel-Rudi», algo como Incansável Rudi. «Foi um notável embaixador do futebol alemão. O que fez pela reputação dos treinadores alemães em mais de 30 países e cinco continentes é único», disse a propósito da sua morte Rainer Koch, vice-presidente da Federação alemã.

Gutendorf não tem uma carreira cheia de troféus, mas viveu como poucos. Um percurso único, que procurava explicar assim, na entrevista à UEFA: «Trabalhava sempre com os mais pobres dos pobres. Porquê? É uma boa questão. A minha mulher também me perguntava sempre isso. Acho que era uma espécie de missão para mim. Acima de tudo, provavelmente sentia que era o que estava certo.»

 

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