"Um ataque cardíaco não é suficiente para parar um workaholic": Malissa Clark era viciada em trabalho mas agora já não faz parte das "estatísticas assustadoras"

8 set, 08:05
Malissa Clark (D.R.)

ENTREVISTA || Ser workaholic (viciado em trabalho) é viver numa angústia constante, num modo “fight or flight”, que só ameniza quando se trabalha até ao limite. Às vezes, nem assim. No livro “Never Not Working: Why the Always-On Culture is Bad for Business - and How to Fix It”, Malissa Clark, professora do Departamento de Psicologia da Universidade da Geórgia, EUA, explica como o vício em trabalho é tão semelhante ao vício no jogo e ao alcoolismo, e como superar esta dependência

No seu livro, começa por se visualizar a si própria através de uma terceira pessoa, Marina, que sabia que estava a trabalhar horas em excesso, mas parecia não saber como parar de o fazer. Aliás, diz mesmo que não queria parar de o fazer, procurando uma adrenalina constante no trabalho. Os workaholics reconhecem que têm uma obsessão com o trabalho?

Creio que muitos workaholics sabem que provavelmente não têm uma relação saudável com o trabalho, mas estão em negação sobre a forma como isso os afeta a eles e àqueles que os rodeiam. É muito frequente os workaholics não perceberem os efeitos do excesso de trabalho até que algo aconteça, como um problema de saúde grave, ou até que alguém fale com eles sobre o quanto isso está a afetar aqueles que os rodeiam. Para escrever este livro, falei com pessoas nos workaholics anónimos que disseram que a razão pela qual começaram a ir às reuniões foi o facto de os seus companheiros lhes terem dito que ou era isso ou o divórcio.

Essa é a melhor estratégia para ajudar um workaholic a reconhecer que tem um problema?

Creio que as pessoas não vão mudar até que as circunstâncias forcem a mudança. Se alguém não acredita que tem um problema, pode ser muito difícil convencê-lo do contrário. Falar com alguém sobre a forma como os seus comportamentos e ações estão a prejudicar aqueles à sua volta pode ser um bom ponto de partida. Mas não será imediato. É provável que seja uma conversa que precisa de acontecer mais do que uma vez.

A Malissa faz uma distinção entre uma pessoa viciada em trabalho de uma pessoa que gosta de fazer o que faz e, por isso, trabalha muitas horas. Existe uma linha ténue entre um e outro?

Não há nada de errado em gostar do nosso trabalho. Eu adoro o meu trabalho! Mas penso que tudo aquilo que prejudica as nossas relações com a família, com amigos, com os nossos companheiros ou com os filhos, e até compromete a nossa saúde, é negativo. É nesse sentido que penso que é importante concentrarmo-nos na forma como o nosso trabalho nos afeta fora dele, em vez de descartarmos logo um potencial vício como não sendo um problema só porque gostamos do que fazemos.

Porque é que, mesmo sabendo que não se tem uma relação saudável com o trabalho, é tão difícil para um workaholic reconhecer o problema? É tal qual um outro vício, que se torna mesmo incontrolável?

Pode ser mesmo muito difícil deixar de trabalhar em excesso e, para muitos workaholics, o trabalho é provavelmente uma parte da sua personalidade e identidade. Ou seja, combater o vício significa, por vezes, combater uma parte importante da pessoa em si, o que, como se pode imaginar, é um grande desafio.

Além disso, os viciados em trabalho tendem a procurar carreiras e empregos que encorajam o vício no trabalho, ou seja, empresas que valorizam um trabalhador que esteja sempre disponível, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Por isso, acho que, de certa forma, o problema torna-se maior do que o próprio indivíduo, porque, de repente, está completamente embrenhado num ambiente que faz parecer que essa é a única forma de trabalhar.

Mas existem profissões que são mais propensas ao vício no trabalho?

Há certas áreas que recompensam e glorificam o vício no trabalho mais do que outras, como consultoria, advocacia, entre outras. No entanto, já entrevistei workaholics de todas as áreas e classes sociais. Qualquer pessoa pode ser viciada em trabalho.

Então o vício em trabalho vai além da profissão em si, pode estar mesmo relacionado com a personalidade, por exemplo, uma pessoa mais ambiciosa ou perfeccionista pode ser mais suscetível a esse vício?

Sim, existem alguns traços de personalidade associados a uma maior probabilidade de se ser viciado em trabalho, como as pessoas com personalidade tipo A, conhecida como a personalidade ‘faz tudo’, caracterizada pela competitividade, ambição e impaciência, mas também as pessoas perfeccionistas.

Existe a crença de que as pessoas viciadas em trabalho têm melhor desempenho do que as restantes. Como a Malissa descreve, há quem diga mesmo que são os “trabalhadores ideais”, mas as investigações mostram o contrário.

Os estudos sobre esse assunto são muito consistentes - o vício no trabalho não está relacionado com melhor desempenho profissional. Eu gosto de dizer que os workaholics trabalham mais, não de forma mais inteligente. Há uma série de razões que explicam isso. A principal é que os workaholics excedem os seus limites no trabalho e não dedicam tempo ao descanso. Basta pensar como somos produtivos quando conseguimos descansar ou depois de trabalhar 13 horas. 

Outra coisa que afeta negativamente o desempenho dos workaholics é que eles são, muitas vezes, colegas de trabalho e chefes difíceis de lidar, estabelecendo prazos irrealistas e causando stress desnecessário nas equipas. A acrescentar a isso, o vício no trabalho tem sido associado a uma diminuição do envolvimento do trabalho ao longo do tempo.

A Malissa explica que o termo workaholic evoca o alcoolismo porque partilha semelhanças com distúrbios comportamentais como aqueles verificados no alcoolismo e no vício no jogo, por exemplo. Que semelhanças são essas?

Os vícios partilham algumas características comuns, incluindo o facto de o alvo da dependência (por exemplo, o álcool) dominar o pensamento e o comportamento dos indivíduos. As pessoas acreditam que a substância viciante melhora o seu estado de espírito e, se pararem de consumir essa substância (ou comportamento, se estivermos a falar no vício no jogo), é frequente terem recaídas e causarem conflitos nas suas relações sociais. Muitas destas características são comuns aos workaholics. Basta substituir o alvo do vício (álcool ou vício no jogo) com o trabalho.

Malissa Clark dedica-se ao estudo do vício no trabalho há vários anos. "Never Not Working: Why the Always-On Culture Is Bad for Business — and How to Fix It" é o primeiro livro da investigadora, que reúne uma série de testemunhos de workaholics, mitos sobre o tema e estratégias para superar o vício

Há pouco mencionou problemas de saúde. Como é que ser viciado em trabalho pode resultar em problemas de saúde? 

As conclusões dos estudos são claras - o vício no trabalho não é saudável. Está associado a distúrbios do sono, esgotamentos, problemas de saúde mental e também físicos. Isto inclui o aumento do risco de problemas cardiovasculares, incluindo a tensão arterial elevada.

No seu livro, refere que falou com pessoas que sofreram mais do que um ataque cardíaco enquanto trabalhavam. Aliás, diz mesmo que, “geralmente, sofrer um ataque cardíaco não é suficiente” para parar um workaholic.

Sim, as estatísticas são assustadoras: as 3-4 horas que trabalhamos a mais por dia estão relacionadas com um aumento de 60% do risco de doença coronária e as pessoas que trabalham 75 horas por semana têm duas vezes mais probabilidades de sofrerem doenças cardiovasculares do que aquelas que trabalham 45 horas por semana.

O vício no trabalho também está associado ao mau funcionamento do sistema imunitário e à inflamação crónica. A inflamação crónica reflete a desregulação crónica dos nossos sistemas imunitários, o que contribui para um sem-número de doenças inflamatórias e autoimunes, como a artrite reumatoide, psoríase, asma e até o desenvolvimento e progressão de tumores cancerígenos.

Eu entrevistei dezenas de pessoas para o meu livro que se identificavam como workaholics ou workaholics em reabilitação. Sabe o que cada uma delas tinha em comum? Todos tinham problemas de saúde associados ao excesso de trabalho.

Porque é que isso acontece?

Uma das razões pelas quais isso acontece é o facto de os workaholics viverem num constante modo “fight-or-flight” (lutar ou fugir, na tradução). Geralmente, entramos nesse modo quando somos confrontados com uma ameaça. Temos uma reação fisiológica em que o nosso ritmo cardíaco aumenta, a respiração torna-se mais pesada, sentimos a adrenalina a aumentar. O nosso corpo libera a hormona do stress, o cortisol, para se preparar para combater a ameaça. A libertação do cortisol estimula o fígado para libertar glicose diretamente nos nossos músculos, para nos dar força, e desvia-a de outros sistemas que não são tão importantes na altura, como o sistema digestivo e o sistema imunitário.

Quais são as consequências de viver constantemente nesse modo de ‘fight or flight’?

É certo que esta resposta fisiológica é útil numa emergência, mas a ativação constante do modo ‘fight or flight’ tem sido associada a muitos problemas. A Dr.ª Darria Long, que entrevistei para o meu livro, descobriu que aqueles que não conseguem distinguir uma ameaça de uma não ameaça - ou seja, para quem tudo é urgente - têm o dobro do nível de hormonas de stress do que aquelas que conseguem fazer essa distinção. Ora, o excesso de cortisol está associado à hipertensão e à pressão arterial baixa em repouso. 

Além disso, ao comprometerem o descanso, os workaholics não conseguem recuperar a energia que gastaram ao longo do dia de trabalho. Os períodos de descanso - não apenas uma noite de sono reparador, mas também conseguir estar acordado sem pensar no trabalho - são essenciais para recuperarmos essa energia. Vários estudos mostram que, quando fazemos períodos de descanso eficazes, somos capazes de responder melhor ao stress, dormimos melhor e estamos mais envolvidos no trabalho.

O seu livro é a prova de que é possível superar o vício no trabalho. Quais são as estratégias que podemos adotar para quebrar o ciclo?

Não há uma resposta universal, as estratégias devem ser personalizadas consoante os hábitos de cada pessoa. Acredito que é importante dedicar tempo para o descanso e recuperação da rotina diária. Para isso, é importante fazer aquilo a que chamo distanciamento psicológico, que é desligar mentalmente do trabalho. Isso pode ser um desafio para os workaholics, para quem é particularmente difícil deixar de pensar no trabalho, mas há estratégias que podem ajudar nisso mesmo, como praticar atividade física, nem que seja um passeio, que ajuda a desanuviar e a recarregar energias. Mas não misturem o exercício físico com o trabalho - por exemplo, ouvir podcasts sobre temas relacionados com o trabalho enquanto estão a fazer uma corrida.

Aconselho também a que façam pequenas pausas (por exemplo, de cinco minutos) várias vezes ao dia. Nesses momentos, fechem os olhos e concentrem-se na respiração.

Encontrar um novo hobbie também pode ser benéfico, sobretudo para aqueles que se esforçam por lutar contra o ócio. A atividade deve ser desafiante, exigindo atenção e energia, como aprender uma nova língua ou tocar um instrumento musical.

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