O goleador que cresceu num castelo com 60 quartos e se tornou um aristocrata do futebol

7 jan 2023, 09:30
Gianluca Vialli (AP)

O pai era milionário, o jovem cresceu com todas as mordomias e foi um padre que lhe pegou a paixão pelo futebol. Brilhou ao lado de Roberto Mancini e juntos reescreveram a história. Sempre bem vestido, com sentido estético e postura cavalheiresca ficou conhecido pelo estilo dandy, pela inteligência e pelo bom humor. Um dia, por exemplo, disse que os italianos não sabiam o que era atacar desde o fim do Império Romano. Licenciou-se em Geometria, escreveu três livros e participou no argumento de um filme, mas foram os golos que o tornaram um génio.

Gianluca Vialli morreu esta sexta-feira e com ele levou uma memória feliz: a memória do futebol de sorriso no canto da boca. O futebol que se diverte. Que distrai e entretém.

Filho de um empresário que se tornou milionário no negócio das casas pré-fabricadas, o italiano nunca precisou do futebol para viver. Cresceu, aliás, num castelo com 60 quartos, um fantástico edifício do séx. XV a que chamava lar.

O castelo Villa Affaitati di Belgioioso, na pequena localidade de Grumello, a quinze quilómetros de Cremona, na Lombardia, era o refúgio para onde voltava sempre: foi lá que recuperou de uma grave lesão, que celebrou as maiores conquistas, que passou férias.

Dizia que também seria de lá, daquele enorme castelo, que iria sair com as filhas pelo braço para o dia mais importante da vida delas. Infelizmente, não vai acontecer.

A vida levou-o cedo de mais, aos 58 anos, mas deixou a memória de um goleador que gostava de divertir as pessoas. Até quando falava: por isso chegou a ser presença assídua nas galas da FIFA. Ele que, após abandonar a carreira de treinador, se tornou comentador da Sky.

Um dia, por exemplo, perguntaram-lhe qual o avançado de então mais parecido com ele.

«Estou capaz de responder o Wayne Rooney, mas tenho receio que ele fique ofendido», respondeu.

Vialli nasceu no seio de uma família milionária, era o quinto de cinco irmãos e teve uma infância privilegiada, mas distante dos rituais do jogo de rua.

Foi um sacerdote, o Pe. Angelo, que lhe incutiu a paixão pelo futebol, quando entrou na igreja de Cristo Rei para fazer a catequese. O padre era também ele um apaixonado pelo jogo e gostava de ver as crianças a jogar. Diz-se que, depois disso, Vialli dormia com uma bola de papel, a sonhar ser jogador, enquanto desafiava os irmãos para jogarem no pátio do castelo.

O miúdo foi desenvolvendo talento para jogar futebol e aos doze anos houve quem reparasse nele: na circunstância foi o professor de italiano da escola, Franco Cristiani de seu nome, que o levou para os infantis do Pizzighettone, um clube a seis quilómetros de casa.

Acabou por fazer apenas cinco jogos no pequeno clube, até se descobrir que não podia estar inscrito por causa da didade: um problema de nove dias. Foi jogar para o Cremonese, que pagou cerca de 250 euros por ele.

Começou, então, a fazer verdadeiramente história e acabou por se estrear na equipa principal com 16 anos, na Série C. Pelo meio foi convocado para fazer um teste em Milão, pegou na mala e caminhou sozinho para a estação, entrou no comboio e esperou, esperou, esperou. Até que um revisor lhe disse que devia estar enganado, aquele comboio não ia viajar.

Correu para casa a pedir à mãe que telefonasse a dizer que ele estava doente, mas a oportunidade perdeu-se. Mais tarde o Milan haveria de voltar a insistir com ele, quando já era figura de destaque na Sampdoria, mas desta feita foi Vialli a recusar a proposta.

«Em Génova acordo todos os dias a olhar para o mar, em Milão na melhor das hipóteses vejo um lago com dois cisnes», justificou.

Antes disso, ajudou a Cremonese a subir à Séria A e transferiu-se para a Sampdoria. Onde reencontrou Roberto Mancini, que já conhecia da seleção sub-21 e que haveria de se tornar um amigo para a vida: complementavam-se e reescrevaram a história do futebol italiano.

A história chama-lhes «os gémeos do golo».

Juntos fizeram história no clube de Génova, que levaram ao título e a uma final da Liga dos Campeões, perdida frente ao Barcelona com um golo de Ronald Koeman no prolongamento. Ainda ganharam três Taças de Itália e uma Taça das Taças.

Por essa altura Vialli afirmava-se mundialmente. Não era um portento de técnica, mas era um fantástico finalizador, exímio em frente à baliza, e era sobretudo um trabalhador incansável: um daqueles avançados que corre, e luta, e abre espaços, e desgasta adversários.

«Joguei com Mancini, Zola, Baggio, Del Piero... Eles deram-me muito e quis sempre correr por eles. Espero que o que recordam de mim seja isso», disse um dia.

A licenciatura aos 29 anos para fazer a vontade à mãe

Após oito anos em que transformou a Sampdoria num dos maiores clubes da Europa, Vialli mudou-se para a Juventus. Onde brilhava Roberto Baggio e despontava Del Piero.

Nessa altura conheceu o português Paulo Sousa, que numa entrevista ao El País há alguns anos confidenciou que foi dos jogadores que mais o marcou.

«Gianluca Vialli era o líder dessa Juventus, era um trascinatore [uma pessoa que arrasta as outras pela sua influência natural] dentro e fora do campo. Ele tinha uma garra e uma ambição tremendas, de marcar, de ganhar tudo», referiu o português.

«Ele pensava nisso o tempo todo e, além disso, sabia muito sobre futebol. Estudava os rivais e até os companheiros de equipa para tirar vantagem disso...»

Curiosamente Paulo Sousa conheceu Vialli na fase boa do italiano. Antes disso, nas duas primeiras épocas, as coisas não lhe correram bem. Quando o português chegou a Turim em 1994, chegou também Marcelo Lippi. Vialli foi falar com o treinador e disse-lhe que não se sentia bem no clube, que queria sair. Lippi respondeu-lhe que nem pensar.

Um ano depois, a Juventus estava a festejar a dobradinha e Vialli tinha somado golos fantásticos: até em pontapés de bicicleta que ficaram para a história.

O avançado era o líder da equipa, tornara-se capitão e foi ele que um ano depois levantou a taça da Liga dos Campeões, após uma vitória sobre o Ajax na final.

A Juventus vivia a melhor fase das últimas décadas, mas Vialli era um insatisfeito e queria mais. Conhecido pelo seu estilo dandy, apresentava-se sempre com muito bom gosto, grande sentido estético e uma postura de cavalheiro. Afinal de contas tinha sido criado num berço de ouro e até se licenciou em Geometria, em 1993, quando já era adulto. Para cumprir uma promessa feita à mãe quando decidiu seguir a carreira de futebolista.

As taças de champanhe no balneário... antes de começar o jogo

Estudioso e culto, viajou então para Londres e assinou pelo Chelsea. Nunca mais abandonou a capital inglesa: nem quando se afastou do futebol.

No Chelsea entrou jogador e tornou-se treinador-jogador após o despedimento de Ruud Gullit. Começou com uma prova de fogo, uma segunda mão com o Arsenal para a Taça da Liga em que a equipa tinha de virar uma derrota por 2-0.

Vialli disse aos jogadores que o importante era divertirem-se e ofereceu-lhes uma taça de champanhe no balneário, antes de entrarem em campo. O Chelsea virou a eliminatória, Vialli substituiu-se a ele próprio a dez minutos do fim e o estádio levantou-se para o aplaudir.

«Finalmente vou poder dormir um pouco. Tenho de me acalmar e habituar a isto, ou da próxima vez o meu coração não vai aguentar», confessou no final do jogo.

Em três anos conquistou cinco troféus no Chelsea, incluindo uma Taça das Taças e uma Supertaça Europeia ganha ao Real Madrid, mas acabou por ser despedido. Seguiu-se uma aventura no Watford, de Elton John, e acabou a carreira de treinador.

Para trás deixou anos de muito sucesso, com apenas um lamento: a seleção. Vialli era suposto ser o titular de Itália no Mundial 90, jogado em casa, mas acabou por ser ultrapassado por Toto Schilacci. Depois disso veio Arrigo Sachi e o avançado desisitu da seleção.

«Éramos dois galos para um poleiro. No início ele adorava-me. Depois percebeu que eu fazia perguntas, queria entender as coisas, tinha de ser convencido por mais do que uma ordem. E o Sacchi não gostava de perguntas.»

Curiosamente foi a seleção que o trouxe de volta ao futebol, quando o amigo Mancini o chamou por apoiar na seleção, como chefe da delegação.

Juntos voltartam a triunfar e levaram a seleção ao título europeu no Euro 2020. Com um futebol que rompia com a tradição. A verdade é que Vialli acreditava que o jogo só fazia sentido se os jogadores se divertissem e nisso era intransigente. Dizem que quando Mancini tremia, ele segurava as ideias da seleção com a força de uma rocha.

«Itália não ataca desde que acabou o Império Romano. Pior, vieram a nossa casa atacar-nos e tudo o que fizemos foi aprender a defender», criticou uma vez.

Em dezembro suspendeu as funções na seleção italiana para voltar a lutar contra o cancro que lhe foi diagnosticado em 2018. Uma luta que não conseguiu ganhar.

Morreu esta sexta-feira um homem de grande sentido estético e postura de cavalheiro. Um aristrocata do futebol criado num castelo com 60 quartos.

 

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