Milhares de "voos fantasma" nos céus da Europa. Um "escândalo" com fatura pesada para o ambiente

29 abr 2022, 07:00
Avião

São "voos a fingir", com aviões vazios ou quase sem passageiros, para que as transportadoras garantam faixas horárias nos aeroportos mais congestionados. Mas o impacto ambiental em toda a linha faz destas viagens um fenómeno "completamente irracional"

Quando o CEO da Lufhtansa, Carsten Spohr, alertou que o grupo alemão de transporte aéreo poderia ter de realizar cerca de 18 mil voos desnecessários durante o último inverno as declarações não só geraram uma onda de indignação, como chamaram a atenção mundial para este fenómeno até então praticamente desconhecido: os “voos fantasma”. São milhares de voos que cruzam os céus sem passageiros (ou com muito poucos). Aviões praticamente vazios, que fazem viagens que poderiam ser canceladas, queimando milhares de quilos de combustível e emitindo toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera.

“É uma situação escandalosa. Não têm qualquer sentido estes ‘voos fantasma’ que já tiveram lugar e que calculamos que algumas companhias aéreas ainda estejam a fazer. É um falhanço político, com enormes consequências económicas e ambientais, que era perfeitamente escusado”, sublinha Francisco Ferreira da Zero à CNN Portugal.

Afinal, qual é a razão para haver voos sem passageiros?

Os “voos fantasma” são uma forma de as companhias aéreas garantirem “slots” nos aeroportos mais congestionados. Os "slots" são faixas horárias de aterragem e descolagem que são atribuídas às companhias aéreas, de acordo com a disponibilidade do aeroporto e a operação da companhia. São ativos fundamentais para as transportadoras porque sincronizar o tempo de descolagem num aeroporto e o tempo de aterragem noutro não é tarefa fácil, sobretudo nos 'hubs' mais movimentados do mundo. Em Portugal, são atribuídos pela NAV, a empresa que gere os serviços de navegação aérea.

“Os slots existem nos aeroportos que têm restrições de espaço”, explica Pedro Castro, consultor na área da aviação. “Aterrar em Beja às 10:00, às 12:00 ou às 21:00 não tem qualquer restrição e por isso o aeroporto de Beja nem sequer tem 'slots'. Mas Faro já tem 'slots sazonais', durante o verão. O aeroporto do Funchal tem 'slots' porque tem uma limitação de estacionamento”, acrescenta.

Para assegurarem estes ‘slots’, as transportadoras têm de cumprir a regra do “use it or lose it” (use-o ou perca-o), que determina que têm de ser realizados 80% dos voos alocados a esses horários. “Se durante o período de avaliação o 'slot' for usado 80% das vezes e, por alguma razão, 20% falhar, esse direito mantém-se”, sublinha o consultor. O mesmo não acontece se a companhia falhar mais de 20% dos voos: nesse cenário, podem perder slots para as concorrentes.

“A British Airways em Londres, a TAP em Lisboa, a Air France em Paris e a Iberia em Madrid sabem que se perderem “slots” estes vão calhar a alguém que lhes faz concorrência. A concorrência só está à espera de uma abertura para atacar e isso custa dinheiro”, destaca Pedro Castro.

Ora, por causa da covid-19, milhares de passageiros ficaram impossibilitados de viajar e a regra do “use it or lose it” tornou-se impraticável e, por isso, foi suspensa. No entanto, com a recuperação do setor, em outubro de 2021 acabou por ser reintroduzida pela Comissão Europeia, ainda que com uma taxa inferior, de 50% e não 80%. Uma taxa que, ainda assim, acabou por se revelar elevada num inverno afetado pela vaga de contágios causada pela variante ómicron e pelas consequentes restrições. E é aqui que entram os "voos fantasma". 

"São voos a fingir, não têm passageiros. É um desperdício de dinheiro, mas as companhias estão é a calcular o que deixavam de ganhar se aquele 'slot' fosse perdido para a concorrência e se tivessem de baixar tarifas. Não estão a ver a consequência imediata, mas mais a longo prazo", explica Pedro Castro.

Quantos voos fantasma já aconteceram?

A organização ambientalista Greenpeace estimou em mais de 100 mil os “voos fantasma” na Europa só neste último inverno. As contas foram feitas a partir da ameaça da Lufhtansa (o grupo divulgou que poderia ter de realizar cerca de 18 mil voos supérfluos) e tendo em conta que a empresa alemã representa cerca de 17% do mercado europeu.

No Reino Unido, porém, há dados concretos sobre este fenómeno: desde março de 2020 houve mais de 15 mil “voos fantasma” e entre outubro e dezembro do ano passado saíram de território britânico 500 “voos fantasma” por mês. Os dados foram apurados pelo jornal The Guardian junto da Autoridade Civil de Aviação britânica, mas só incluem voos de partida internacionais, excluindo chegadas e ligações domésticas. A investigação revelou ainda que foi dos aeroportos de Heathrow (Londres), Aberdeen (Escócia), Manchester, Stansted (Londres) e Norwich que saíram mais aviões sem passageiros. O número real de "voos fantasma" só as companhias aéreas sabem, mas esses são dados que recusam divulgar.

Há “voos fantasma” em Portugal?

Os dados da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) mostram que entre outubro e dezembro de 2021 houve 375 voos com uma taxa de ocupação igual ou inferior a 10%, entre descolagens e aterragens. Os dados mostram que este valor foi inferior ao que se verificou no mesmo período de 2019 (455 voos). "A proporção dos movimentos com taxas de ocupação iguais ou inferiores a 10% manteve o seu caráter residual e não difere significativamente dos valores de referência de 2019", sublinha a ANAC em resposta à CNN Portugal. Francisco Ferreira, da Zero, reconhece que o fenómeno não é muito relevante em Portugal.

Qual é a “fatura” destas viagens para o ambiente?

A Greenpeace calcula que, só neste inverno, os "voos fantasma" podem ter gerado 2,1 milhões de toneladas de dióxido de carbono para a atmosfera, o que é equivalente às emissões anuais de mais de 1,4 milhões de automóveis. Números que preocupam os ativistas e as associações ambientais.  

“É um prejuízo em todos os sentidos pelo impacto ambiental para o clima, para a poluição do ar, para o ruído. É completamente irracional”, vinca Francisco Ferreira.

Os "voos fantasma" vão continuar?

O que se sabe é que, a partir de abril e até outubro, as diretrizes da Comissão Europeia estabelecem que as companhias aéreas têm de cumprir não 50% mas 64% dos voos alocados aos "slots". Mas a dinâmica no setor das viagens também parece estar a mudar: com o alívio das restrições em muitos países, os passageiros e a circulação nos aeroportos está a aumentar e é expectável que o verão faça aumentar o número de turistas e intensificar o tráfego aéreo.

Ameaças e "lágrimas de crocodilo": qual a solução para o problema?

"Lágrimas de crocodilo" foi o que o presidente da companhia irlandesa de baixo custo Ryanair chamou à ameaça do grupo alemão. Michael O’Leary sugeriu, num misto de provocação e ironia, que a Lufhtansa vendesse os assentos dos "voos fantasma" a preços mais baixos. 

“Em vez de operar voos vazios apenas para bloquear 'slots', a Lufthansa deveria disponibilizar os assentos desses voos para venda a preços baixos, de modo a recompensar os contribuintes alemães e europeus que a subsidiaram com milhões de euros durante a crise da covid-19”, frisou a Ryanair em comunicado.

Para o consultor Pedro Castro, a solução pode também passar por uma legislação diferente: "Esta questão dos 'voos fantasma é resultado da própria legislação. As companhias aéreas defendem o seu direito histórico às 'slots'. Não tem lógica, mas no quadro jurídico atual, fazem as contas e concluem que têm de fazer isto a tudo custo. É também uma 'guerra comercial'".

 

Notícia atualizada a 2 de maio de 2022 com os dados disponibilizados pela ANAC

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