Saíram de Belém, do mesmo ponto onde Vasco da Gama partiu há mais de 500 anos rumo à Índia. Mas em vez de caravelas, levaram mochilas. Em vez de mapas detalhados, contaram com boleias. E, tal como os navegadores, lançaram-se ao desconhecido sem certezas. Gonçalo e Lourenço cruzaram a Europa e a Ásia à boleia, sem dinheiro, tudo para provar que o espírito da aventura ainda vive
“Vamos de Lisboa até à Índia à boleia. Vamos cruzar dois continentes e atravessar mais de 15 países. Vamos atravessar fronteiras perigosas, conhecer países em guerra e suportar as temperaturas escaldantes do Médio Oriente. Tudo a começar sem dinheiro”. Foi assim que Gonçalo Runa deu a notícia aos quase 100 mil subscritores que o acompanham no canal de Youtube ‘De Mochila às Costas’. “A partir daqui a direção é só uma: Índia”.
Aos 24 anos, Gonçalo já perdeu a conta às boleias apanhadas pelo mundo. Mas desta vez, não foi sozinho. Levou Lourenço Ramos, um amigo, que não tinha qualquer experiência em viagens do tipo. No entanto, rapidamente revelou ser “a companhia certa”.
“Foi a primeira vez do Lourenço numa viagem deste género. Fiz o convite e ele não pensou muito. O Lourenço é muito determinado”, afirma Gonçalo.
“Pensei ‘bola para a frente, o que tiver de ser, será. Depois logo se vê’, lembra Lourenço.
“E se fosse… a Índia?”
A ideia da viagem nasceu em apenas dez minutos.
“A Índia é aquele país de que toda a gente fala, mas, na verdade, nunca se sabe muito bem o que há lá. Todos associam a Índia a uma grande confusão, mas ninguém sabe realmente. Queríamos desmistificar essa ideia e precisávamos de um pretexto forte”, explica Gonçalo à CNN Portugal.
Decidiram o destino, o trajeto, e a regra principal - nada de dinheiro. Viveriam da boleia, da hospitalidade de desconhecidos e da força de vontade. Um mapa traçado com fé, não com garantias. Iam à descoberta, tal como foi Vasco da Gama há mais de 500 anos.
"Escolhemos Calecute, a cidade onde Vasco da Gama atracou quando chegou à Índia de caravela. Queríamos mostrar que, como os nossos antepassados, somos exploradores de raiz e desenrascados de nascença e, ao mesmo tempo, procurámos honrar um dos maiores feitos portugueses", afirma o criador de conteúdos.
A aventura arrancou no primeiro dia de novembro em Belém, junto ao Padrão dos Descobrimentos, o mesmo local de onde o navegador saiu em 1497. Foram interpelando as pessoas que por ali passavam com um cartaz de cartão onde se lia “De Lisboa até à Índia sem dinheiro. Ajudem-nos a começar esta viagem” e rapidamente começaram a receber pequenas doações.
Poucas horas depois, tinham juntado 97 euros. Com este dinheiro, despediram-se de Lisboa para iniciar a aventura de pedir boleias em direção a Espanha. E com isso, começou o grande desafio: sobreviver e seguir viagem.
“Além das boleias, tínhamos de saber gerir o dinheiro que ganhávamos, porque tínhamos a noção que ia haver uma altura em que não íamos conseguir fazer dinheiro, nos ditos países mais pobres”, explica Gonçalo.
O primeiro investimento da viagem foi uma câmara fotográfica Instax para tirarem fotografias instantâneas dos turistas em Madrid em troca de dinheiro. Depois, puxaram pela criatividade. Venderam desenhos em Salamanca, pintaram quadros em Paris, trabalharam durante uma semana num restaurante português no Luxemburgo e limparam um estúdio na Polónia.
“Não somos artistas, ninguém queria os nossos desenhos e entendo, também não ia querer. Por isso, tínhamos de tocar no íntimo da pessoa. ‘Olhe, estamos a fazer isto, não tem nenhum preço, o que a senhora quiser dar é o que nos vai ajudar a seguir o nosso sonho’. Mais do que vender o objeto, era vender o ‘porquê’”, recorda Gonçalo.
Apesar de algumas portas fechadas, os dois amigos nunca sentiram que estavam a arriscar demasiado ao depender apenas daquilo que faziam e vendiam.
“A minha experiência dizia que nunca ia ficar entalado. Há sempre alguém que te vai dar a mão e ajudar. Se não, há tanto trabalho, tantas coisas para fazer espalhadas pela Europa", afirma Gonçalo.
Quando o frio da Turquia começou a congelar o sonho
Na Turquia, o frio "gelava os ossos": estavam 16 graus negativos na rua. E a conta bancária rondava os 300 euros. Gastar 30 num hotel para passar a noite não era opção. Durante a viagem, acabaram por se habituar a dormir onde fosse possível. Por vezes, passavam madrugadas acordados às voltas à procura de um sítio seguro onde pudessem descansar.
“Ficámos numa casa meio abandonada, meio em construção, não dava para perceber bem, mas a verdade é que não era suposto estarmos ali. Fomos para lá para nos protegermos do frio, mas foi a mesma coisa que nada. A casa não tinha janelas, era um buraco e vinha muita corrente de ar. Demos por nós a pensar: o que raio estamos a fazer aqui?”, recorda Gonçalo.
Não havia resposta clara - só a certeza de que não voltariam atrás. Desistir não era uma opção, nem no meio de tantas adversidades.
“Dúvidas e receios há sempre quando uma pessoa se mete numa aventura destas, mas é viver um dia de cada vez. À medida que os dias vão passando, os receios vão diminuindo e a confiança vai aumentando. E chegou ali a um ponto que a expectativa sobre nós já era tão alta - tínhamos milhares de pessoas a ver os vídeos - que pensávamos ‘agora não podemos mesmo falhar, não pode acontecer nada aqui que nos faça dar um passo atrás’", afirma Lourenço.
Uma francesinha na Bulgária a meio de dezembro
O Natal foi um dos momentos mais difíceis para Gonçalo e Lourenço. No meio da neve da Bulgária, tentaram ignorar o calendário e focar-se na viagem.
"Mentalizámo-nos que tínhamos de tratar o dia de Natal como se nada fosse, ignorá-lo e tentar pedir boleias. Mas estava a nevar imenso, ninguém parava e os nossos únicos planos eram ficar algures no meio do nada a comer McDonald's e a falar em videochamada com as nossas famílias cada um no seu canto", conta Gonçalo.
Mas o destino tinha outros planos. E nunca a expressão 'há um português em cada canto do mundo' teve tanto significado nas suas vidas. Numa "avenida quase deserta" a bandeira portuguesa na mochila de Gonçalo chamou a atenção de Rúben, um emigrante.
"Foi tudo muito natural. Ele disse que estava com uns amigos e convidou-nos para nos juntarmos com a maior das tranquilidades como se nos conhecêssemos há anos. Foi incrível", lembra Lourenço.
A ceia? Nada de bacalhau - "eles lá não têm isso", explica Gonçalo. Uma francesinha improvisada foi o suficiente para aquecer o coração.
Chegaram à Índia, o fim da linha. Mas também o início do maior desafio.
“O picante foi um tormento. Antes de comermos alguma coisa perguntávamos sempre se era picante. Diziam que não. 'Nem para europeus?'. Mentira. Até no McDonald’s era insuportável", afirma Gonçalo.
Mas não era só a comida. “Nunca tinha tido a experiência de andar dez metros e sentir quatro cheiros diferentes. Era nauseabundo. Ver pessoas a defecar na rua era normal. Também aconteceu irmos a lojas e atrás do balcão estarem pessoas a dormir”, explica o criador de conteúdos.
“A Índia consome uma energia que, quase quatro meses depois, já não tínhamos. É tudo muito intenso. Não é para qualquer um”, concorda Lourenço.
Já no Paquistão, foi o espaço pessoal que desapareceu. Para onde quer que fossem, eram perseguidos por grupos de crianças que os rodeavam. "Eles não têm turismo então é uma novidade estar ali um", explica Gonçalo.
No entanto, e no meio de tanta pobreza, foi nestes países que dizem ter descoberto o verdadeiro significado de hospitalidade. Um desconhecido ofereceu-lhes comida, um pagou-lhes um bilhete de autocarro, outro ofereceu abrigo, com um sorriso no rosto e sem querer nada em troca.
“Esta viagem fez-me pensar muito na importância de tratar o outro como gostávamos de ser tratados. A maneira como éramos recebidos nesses países é muito diferente de como os recebemos em Portugal. Lá dão-te comida, dão-te casa, ligam à família felizes por estares ali com eles. Em Portugal ninguém quer saber. Não querendo dizer que todas as pessoas são assim, mas a maioria. E lá a maioria é exatamente o oposto”, declara Lourenço.
Quando chegaram ao Irão, iam com receio - ouviram histórias, viram alertas, sentiram medo. Mas encontraram o contrário: portas abertas e mãos estendidas.
“O Irão ensinou-nos que as ideias feitas são o maior inimigo de uma viagem. Nunca fomos tão bem tratados. Foi a maior surpresa de toda a viagem”, afirma Lourenço.
A chegada a Calecute
Com um total de 50 kg às costas - 20 kg o Lourenço e 30 kg o Gonçalo - ,16 países e 120 dias depois, chegaram à praia de Kappad, o ponto onde Vasco da Gama desembarcou. Ali, tudo fez sentido.
"Foi como ter um filme de toda a viagem a passar pela cabeça. E foi pensar que ‘passou muito devagar, mas ao mesmo tempo passou muito rápido’. De repente estamos aqui e já está. E a sensação de perceber 'ok, estou mesmo aqui', nem sei explicar, parecia que estava a viver as fotos dos livros de história. Estava a tocar na areia e a pensar que há centenas de anos os navegadores e as caravelas estiveram mesmo ali. Foi incrível", lembra Gonçalo.
Porquê fazer isto? A resposta não está nos likes, nem nas visualizações. Está num impulso que, segundo os jovens, não se explica, só se vive.
“Queríamos provar que o mundo ainda é possível. Que o medo não pode decidir tudo. Mesmo as coisas más são história. Expões-te ao perigo e é aí que tu te conheces. Não há melhor forma para te conheceres do que ir para o desconhecido”, declara o criador de conteúdos.
Hoje, Gonçalo e Lourenço estão de volta a Portugal. Mas voltaram diferentes. “Não fomos só à Índia. A Índia veio connosco”, concluem.