Excessos urbanísticos explicam a mortandade. As alterações climáticas não, mas são uma boa desculpa para os políticos fugirem às suas responsabilidades
A cidade de Valência é palco de fenómenos de chuva extrema e de inundações trágicas desde a sua fundação, em 138 a.c., no período de ocupação romana. Desde 1321, sofreu 36 episódios documentados, o que corresponde a uma recorrência média de 20 em 20 anos. Os “Llibres de Consell”, atas do antigo organismo de governo local, relatam grandes inundações nos anos 1321, 1328, 1340, 1358, 1406, 1427, 1475, 1517, 1540, 1581, 1589, 1590, 1610, 1651, 1672, 1731, 1776, 1783, 1845, 1860, 1870, 1897, 1949 e 1957. Antes disso, os registos arderam num grande incêndio. Daí para cá, verificaram-se mais 12 episódios de pluviosidade severa, com danos provocados à superfície.
O maior, de acordo com a informação que chegou aos nossos dias, poderá ter sido o de 1517. No dia 27 de setembro, após 40 dias de chuvas intensas, uma avalanche destruiu 200 casas e todas as pontes da cidade. Em 1957, deu-se o episódio de “gota fria” mais grave do século passado, que inundou três quartos das zonas habitadas. A chuva chegou aos 630 litros de água por metro quadrado, ainda mais do que o volume atingido em 2024. “A catástrofe de Valência e arredores teve contornos apocalípticos, deixando milhares de famílias sem lar, sem pão, sem luz e sem trabalho”, descreve um documentário da época da TVE, assinado por Ricardo Blasco.
O general Franco visitou a cidade nos dias seguintes e reagiu à tragédia com uma obra faraónica, que representou um investimento público de 5.000 milhões de pesetas, valor descomunal para a época. Tratou-se, nada mais nada menos, do que o desvio do leito do Rio Túria, para um canal artificial, que contorna a cidade pelo lado sul, até desaguar no porto de mar. O percurso natural do rio, que divide a cidade ao meio, é agora predominantemente ocupado por jardins e parques.
Os fenómenos de gota fria na costa mediterrânica espanhola não são exclusivos de Valência. Em 1962, em Vallés, na Catalunha, um episódio desta natureza matou entre 600 e 1000 pessoas. A censura operada pelo regime ditatorial tornava sempre controverso o apuramento de vítimas e pouco credíveis os números oficiais. Já em Valência, cinco anos antes, terão morrido 300 pessoas. A diferença é que a cidade tinha meio milhão de habitantes, hoje está perto dos 800 mil.
"Explicar tudo com as alterações climáticas é perigoso e preguiçoso"
O “Proyeto Sur” de Franco, inaugurado em 1969, explica que o centro de Valência tenha sido poupado 55 anos depois, o que teria tornado a catástrofe dos últimos dias ainda mais dantesca. Em 2024, a maioria dos danos e das vítimas registou-se em localidades dos arredores e, sem surpresa para os especialistas, nas margens do rio canalizado. “O problema é que toda aquela área está hoje cheia de edifícios, autoestradas e outras infraestruturas, ou seja, completamente impermeabilizada”, lamenta Demétrio Alves, investigador da Universidade Nova de Lisboa (UNL) nos domínios do Planeamento e Ordenamento do Território. “O crescimento da área urbana nos últimos cinquenta anos é assustador, em sítios onde nunca se deveria ter construído”, concorda José Luís Zêzere, professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa.
As alterações climáticas são uma realidade com as “costas largas”. Para Demétrio Alves, estão a ser abusivamente usadas como “alibi” para os políticos lavarem as mãos de responsabilidades próprias no planeamento urbano e na defesa das populações contra fenómenos climáticos que sempre existiram. “É urgente pararmos com a conversa preguiçosa de atribuir tudo às alterações climáticas”, considera o investigador da UNL. “Isso é muito perigoso, porque permite aos decisores políticos esquecerem-se de fazer o que tem de ser feito no planeamento do território, com consciência e responsabilidade”, conclui este especialista, que foi presidente da Câmara Municipal de Loures durante dez anos.
“As alterações climáticas e a chuva não justificam nem têm de se traduzir necessariamente em desastres. Posso ter mais chuva, mas isso não tem de provocar mais mortos devido a cheias”, declara José Luís Zêzere. “Estes fenómenos já ocorriam antes. O que a alteração climática faz é aumentar a frequência e pode aumentar a magnitude destes fenómenos, por isso temos de ser ainda mais exigentes com as políticas de ordenamento do território”, defende o geógrafo físico do IGOT. “A chuva é natural, os desastres nunca são naturais”, conclui, como se fosse um mantra que tem de ser interiorizado por todos.