Portugal está preparado para uma depressão DANA como a de Espanha? Na teoria sim, o problema é a prática

31 out, 14:36

 

 

 

Jorge Mendes e Duarte Caldeira alertam para as dificuldades de lidar com um fenómeno como o que aconteceu em Valência, mas defendem que a melhor forma de o fazer é estar informado e preparado previamente

A catástrofe que assolou Valência e outras zonas de Espanha nos últimos dias deixou os portugueses em alerta, até porque existe a possibilidade de a depressão DANA chegar cá em breve. E se fosse em Portugal, como funcionaria o sistema de alerta? Haveria tempo para preparar uma resposta e para a população saber o que fazer? 

Jorge Mendes, comandante dos Bombeiros Voluntários de Cabo Ruivo e comentador da CNN Portugal, explica, de forma simples, que na teoria, o plano funcionaria. O pior é a prática.

"Nós em Portugal, de há dois anos para cá, tanto a câmara como a autoridade, sempre que há uma precipitação considerada, previsível pelo IPMA, emitem um alerta por SMS. Qual é o problema? É que nem toda a gente tem telemóvel. Se olharmos para o país, como para Lisboa, Porto e Coimbra, ou para as grandes cidades, diria que a maior parte das pessoas têm telemóvel. Mas se olharmos para o interior, primeiro é preciso que haja rede, segundo é preciso que as pessoas com alguma idade tenham telemóvel e possam ser avisados", lembra.

Duarte Caldeira, investigador da Proteção Civil e antigo presidente da Liga Portuguesa dos Bombeiros diz, no entanto, que "hoje existe uma massificação da informação veiculada para a população em geral" que conta " com uma cada vez mais empenhada colaboração dos órgãos de comunicação social, que são talvez até mais importantes do que os próprios avisos via SMS, veiculados pelos smartphones e pelos telejornais".

"Hoje, a rotina normal da divulgação dos boletins meteorológicos constitui um importante meio de informação previsional para o conjunto da população. Existe, de facto, uma difusão de informação mais diversificada - e estou a focar os canais televisivos pela sua capacidade de chegar a um amplo conjunto de pessoas e a várias horas do dia. Esta informação é uma informação muito importante. Mas isto não exclui, como é óbvio, a responsabilidade que cada um de nós tem de procurar a informação em relação a matérias que são do nosso interesse", alerta.

Quanto a planos para intervir numa situação de DANA (acrónimo espanhol para depressão isolada em níveis altos, aquilo a que em Portugal chamamos de gota fria e que é um fenómeno de chuvas torrenciais), mais uma vez, a teoria está bem estudada, mas na prática a realidade é outra. Lembrando as cheias que assolaram Lisboa em janeiro de 2023, Jorge Mendes explica que "existem planos municipais de emergência que preveem estas questões, e existe um plano nacional que tem a ver com um nível de alerta que esteja previsível".

"Teoricamente, nós estamos preparados para aquela situação. Na prática, não estamos. [Em janeiro de 2023] tiveram de vir bombas de autodébito de Viseu para Lisboa. O que quer dizer que em Lisboa, que é uma cidade que periodicamente tem esses problemas, não tem esses mecanismos para serem acionados. Quando nós falamos na teoria, é verdade. Está escrito no plano para o fenómeno, para o tipo de alerta, para ver a movimentação. Quando olhamos para os meios, existem meios para pequenas ocorrências, mas não existem meios para a dimensão da ocorrência que nós verificamos em Valência. A capacidade de resposta humana poderá até ser considerada aceitável”, nota o especialista, indicando que o problema está quando se questiona “se essa resposta humana é acompanhada com o material necessário para se fazer este tipo de intervenção. E a minha resposta é: não é".

Por sua vez, Duarte Caldeira explica que, quanto à preparação para lidar com este tipo de desastres, Portugal enfrenta o desafio de educar a população sobre uma “cultura de risco”, considerando que há uma lacuna significativa na formação da população adulta e idosa.

"Todos nós sabemos que a sociedade portuguesa não tem uma cultura de risco. Essa ausência de cultura de risco está, por um lado, associada a um déficit de formação, não apenas ao nível das escolas, mas também do resto da população”, aponta, falando especificamente na população adulta. Daí que seja necessário o investimento dessa mesma formação nos diferentes níveis de ensino.

“Mas não podemos esquecer que, numa sociedade como a nossa, em que demograficamente estamos num processo acelerado de envelhecimento da população, não podemos descurar que é preciso também investir na formação das populações com o resto das idades, que não necessariamente as crianças e os jovens, de modo a reforçar e aumentar as suas condições de segurança e de lidar adequadamente com o risco", acrescenta.

No entanto, Duarte Caldeira considera que a questão tem de ser analisada em três domínios: problemas relacionados com o ordenamento do território ou falta dele, as cidades que não estão preparadas para a gestão dos caudais provenientes das chuvadas e as consequências nos perfis meteorológicos decorrentes das mudanças climáticas.

"De uma forma geral, estas situações de cheias e de inundações graves estão muito correlacionadas com problemas relacionados com o ordenamento do território ou a falta dele. Isto quer dizer que, em muitas circunstâncias, as zonas de leito são ocupadas por edificado, por construção. Há uma regra que diz que à água, tudo aquilo que lhe é roubado, ela vai um dia acabar por querer recuperar", explica, acrescentando que "estes três fatores associados provocam, naturalmente, situações de limite como aquelas que estão a ser vividas em Espanha".

O especialista alerta que Portugal necessita, por isso, de uma revisão séria no ordenamento urbano para minimizar a exposição a desastres naturais e diz ainda que "também é preciso ter em consideração que a costa mediterrânica, do leste de Espanha, sempre foi alvo de precipitações muito consideráveis".

"Não é a novidade a ocorrência de situações deste tipo, mas sim o grau de severidade com que as mesmas ocorrem e também, digamos que uma maior frequência de ocorrência das mesmas. O que é que quer isto dizer? Se nós analisarmos o histórico de muitas das ocorrências deste tipo, nomeadamente as inundações e as cheias, encontramos também em Espanha situações análogas às ocorridas neste momento”, nota Duarte Caldeira.

A diferença é a gravidade, agora mais severa, e que traz consequências mais gravosas para as populações e para o espaço urbano. “A pressão do edificado constitui uma perda de qualidade dos solos que impede uma adequada absorção da água e, portanto, constitui um fator adicional de agravamento e de vulnerabilidade para resultar nas circunstâncias que estamos a presenciar, nomeadamente em Valência", conclui Duarte Caldeira.

Planos de resposta a desastres incluem também medidas a nível municipal, como em Lisboa, onde a Câmara Municipal recentemente implementou pontos de encontro e refúgio em toda a cidade. Lisboa passou a ter 86 pontos oficiais de encontro para onde os cidadãos devem ir imediatamente em caso de catástrofes e uma plataforma online com os passos preventivos que devem seguir para se proteger.

Além dos pontos de encontro e da plataforma LXResist, os lisboetas podem receber SMS da proteção civil municipal, específicos para alertas na capital, um serviço no qual precisam de se inscrever através do envio do texto AVISOSLX para o número 927 944 000.

E como pode atuar a população?

Se os planos teóricos estão prontos, mas ainda precisam de prática, resta preparar a população para estas questões. O que é que as pessoas devem fazer? Que preparação é que devem ter? O que é que se faz antes não para evitar, mas para saber lidar com aquilo que vai acontecer?

Jorge Mendes explica que é preciso que as pessoas estejam cientes do que podem ou não fazer - como por exemplo evitar sair à rua, como pediram as autoridades valencianas - e ter um plano para imprevistos.

"Na zona mais urbana, as pessoas devem trancar tudo o que é possível trancar, para que a água - que vai subir por causa do alcatrão - não entre na sua casa, escolher um ponto mais alto. Quando é dado previamente o alerta, as pessoas devem criar outro tipo de mecanismos de prevenção, ou seja, não se devem deslocar de viatura, devendo ficar a fazer teletrabalho. As escolas devem ter mecanismos para encerrar ou deixar as crianças com alguém em segurança. Portanto, são coisas completamente diferentes. Uma coisa é aquilo que previamente se pode fazer, outra coisa é quando está a ocorrer", diz.

Para além disso, a população deve ter consigo "um meio de comunicação que não falhe" e saber "sinalizar muito bem a sua presença para que os meios de resgate possam efetivamente chegar a ele".

"Não vale a pena vir para o exterior, porque a precipitação é muito grande, ainda mais acompanhada, como foi visível, por pedras de granizo, que são também as bolas de golfe, que criam efetivamente danos físicos muito grandes. Devem-se proteger locais altos que sejam possíveis de chegar, se for necessário desligar o quadro elétrico e sinalizar a sua presença. A tentativa de vir para o exterior, salvar algum bem, ou tentar fazer fuga pode ser prejudicial para a pessoa", acrescenta Jorge Mendes.

Já Duarte Caldeira considera que para lidar com estas situações de forma proativa, a população deve ser incentivada a seguir práticas preventivas: preparar um kit de emergência, conhecer os pontos de encontro de evacuação e as vias de escoamento. Além disso, a sociedade civil deve ser instruída a acompanhar as previsões meteorológicas e agir de forma preventiva sempre que alertas são emitidos.

"É verdade que a informação nunca é demais, mas ela existe em quantidade suficiente para chegar a um conjunto bem alargado de pessoas, o que não exclui a necessidade de sensibilizar as pessoas, os cidadãos, para a necessidade também de fazerem a sua parte. E a sua parte é informarem-se”, termina o especialista.

Relacionados

Meteorologia

Mais Meteorologia

Patrocinados