Na fotografia de capa deste artigo vê-se um banho público ou piscina no sítio arqueológico de Mohenjo-daro, uma das principais cidades da civilização do Vale do Indo, localizada na atual província de Sindh, no Paquistão
Um peixe debaixo de um telhado. Uma figura sem cabeça. Um conjunto de linhas que parece um ancinho de jardim.
Estes símbolos fazem parte de uma escrita totalmente indecifrável, que pertencia a uma antiga e sofisticada civilização com milhares de anos. Continua a ser um longo mistério que já originou acesos debates, ameaças de morte a investigadores e prémios em dinheiro para quem encontrar a resposta.
O prémio mais recente foi oferecido em janeiro deste ano pelo líder do governo de um estado indiano: um milhão de dólares para quem conseguir decifrar o que está escrito neste registo vindo da civilização do Vale do Indo, que se estendia por um território que hoje corresponde ao Paquistão e ao norte da Índia.
“Poderá ser esclarecida uma questão realmente importante sobre a pré-história do sul da Ásia se conseguirmos decifrar completamente esta escrita”, afirma Rajesh P. N. Rao, professor de computação na Universidade de Washington, que trabalha neste mistério há mais de uma década.
Se for decifrado, a escrita poderá revelar aspetos de uma civilização da Idade do Bronze que, segundo se acredita, poderá ter rivalizado com o antigo Egito e com a Mesopotâmia. Há quem acredite que este território albergava milhões de pessoas, com cidades que apresentavam um planeamento urbano avançado, medidas e pesos padronizados, bem como extensas rotas comerciais.
Mais importante ainda será, talvez, o facto de que esta descoberta poderia ajudar a responder a perguntas fundamentais sobre quem foram os povos do Vale do Indo e os seus descendentes – algo que representa um debate político e delicado sobre as contestadas raízes da Índia moderna e dos seus habitantes autóctones.
“Seja qual for o grupo que venha a reivindicar essa civilização, pode alegar que foi dos primeiros a ter planeamento urbano, um comércio impressionante, que navegava pelos mares para levar a cabo um comércio global”, refere Rao.
“É muito prestigiante afirmar: ‘Foram os nossos antepassados que fizeram isto’”.
Porque é que esta escrita é tão difícil de decifrar?
Embora esta escrita permaneça por decifrar desde as primeiras amostras conhecidas, publicadas em 1875, há algumas coisas que já sabemos sobre a cultura do Vale do Indo. Isto graças às escavações arqueológicas de grandes cidades como Mohenjo-daro, que se situa na atual província de Sindh, no Paquistão, a cerca de 510 quilómetros a nordeste de Karachi.
Estas cidades foram construídas a partir de um sistema de grelha, como Nova Iorque ou Barcelona, e estavam equipadas com sistemas de drenagem e gestão da água. São características que, segundo um artigo, “não tinham precedentes” naquela época.
Durante os segundo e terceiro milénios antes de Cristo, os mercadores do Vale do Indo faziam comércio com povos do Golfo Pérsico e do Médio Oriente, transportando lingotes de cobre, pérolas, especiarias e marfim. Eram produtores de joias em ouro e prata e estabeleceram povoações e colónias em territórios distantes.
Por volta do ano 1.800 antes de Cristo – mais de mil anos antes do nascimento da Roma antiga –, esta civilização colapsou, levando as suas populações a migrarem para aldeias mais pequenas. Há quem acredite que as alterações climáticas foram a principal causa, com indícios de longas secas, variações de temperatura e chuvas imprevisíveis, que poderão ter prejudicado a agricultura nos últimos séculos desta civilização.
Contudo, o que sabemos sobre a civilização do Vale do Indo é muito pouco quando comparado com a abundância de informação disponível sobre as outras civilizações que foram suas contemporâneas, como o Egito Antigo, a Mesopotâmia ou os Maias. Tal deve-se, sobretudo, à escrita, encontrada em artefactos como cerâmicas e selos de pedra, que ainda não foi decifrada.
Há vários motivos para que o processo de decifração desta escrita seja tão difícil. Em primeiro lugar, não há assim tantos artefactos para analisar. Os arqueólogos descobriram apenas cerca de quatro mil inscrições - que se compara com os cerca de cinco milhões de palavras disponíveis no egípcio antigo -, o que inclui hieróglifos e outras variantes.
Muitas dessas relíquias do Vale do Indo são muito pequenas. Os selos de pedra tendem a ter 2,5 centímetros quadrados, o que significa que a escrita neles é muito reduzida. A maioria das sequências contém apenas quatro ou cinco símbolos.
O mais crítico ainda é que não existe nenhum artefacto bilingue, ou seja, com a escrita do Vale do Indo e a sua tradução para outra língua, como a Pedra de Roseta do egípcio antigo para o grego antigo. Também não existem pistas, por exemplo, sobre nomes de governantes reconhecidos, o que poderia ajudar a decifrar esta escrita – da mesma forma que os nomes de Cleópatra e de Ptolemeu ajudaram a decifrar o egípcio antigo.
Há vários aspetos em que os especialistas estão amplamente de acordo. A maioria acredita que a escrita era feita da direita para a esquerda. Muitos especulam que era usada tanto para fins religiosos como económicos, como a identificação de produtos para o comércio. Existem inclusive interpretações de certos símbolos que reúnem consenso – como uma figura sem cabeça a representar uma pessoa.
Contudo, até que se encontre um equivalente à Pedra de Roseta, estas continuam a ser teorias que carecem de comprovação. “Nem sequer há unanimidade nas questões mais básicas”, escrevem os especialistas Jagat Pati Joshi e Asko Parpola, especialistas nesta matéria, num livro de 1987 que catalogava centenas de selos e inscrições.
Mesmo depois de terem passado várias décadas, “ainda não foi decifrado um único símbolo”, refere Nisha Yadav, investigadora do Tata Institute of Fundamental Research em Mumbai, que trabalhou com Rao no projeto e estuda esta escrita há quase 20 anos.
Teorias controversas
Para algumas pessoas, decifrar esta escrita não é apenas uma questão de curiosidade intelectual ou de estudo académico. É uma questão existencial de grande importância.
Isto porque acreditam que a decifração poderia resolver a controvérsia sobre quem eram exatamente os povos do Vale do Indo e qual foi o sentido das suas migrações – se para dentro ou para fora da Índia.
Existem dois grupos em destaque a disputar a herança da civilização do Vale do Indo. Um desses grupos defende que a escrita está ligada a línguas indo-europeias, como o sânscrito antigo, que deu origem a muitas línguas faladas atualmente no norte da Índia.
A maioria dos académicos acredita que migrantes arianos da Ásia Central trouxeram as línguas indo-europeias para a Índia. Contudo, este grupo argumenta precisamente o contrário: que o sânscrito e as línguas relacionadas tiveram origem na civilização do Vale do Indo e se espalharam para a Europa, explica Rao.
O especialista descreve a posição desse grupo da seguinte maneira: “Tudo começou dentro da Índia, nada veio de fora”.
Há depois um segundo grupo que escrita que esta escrita está ligada à família de línguas dravídicas, atualmente falada sobretudo no sul da Índia, sugerindo que estas línguas estavam primeiramente presentes na região e que eram amplamente faladas, antes de serem marginalizadas com a chegada dos arianos ao norte.
M. K. Stalin, líder do estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, que ofereceu o prémio de um milhão de dólares, é um dos que acreditam que a língua do Vale do Indo foi antecessora das línguas dravídicas – uma teoria que Rao descreve como a mais “tradicional”, embora existam estudiosos respeitados nos dois lados desta matéria.
Há depois especialistas, como Iravatham Mahadevan, que consideram que este debate pouco adianta, uma vez que a distinção entre arianos do norte e dravídicos do sul não é clara, de qualquer forma.
“Não existem pessoas dravídicas ou pessoas arianas – tal como paquistaneses e indianos são racialmente muito semelhantes”, afirmou numa entrevista em 1998.
“Somos ambos produto de um longo período de miscigenação, houve migrações… Hoje não se pode segregar racialmente nenhum elemento da população indiana”.
Ainda assim, a questão continua a ser delicada. Numa palestra da TED Talk em 2011, Rao afirmou ter recebido mensagens de ódio depois de publicar algumas das suas conclusões. Outros investigadores fizeram partilhas no mesmo sentido, afirmando terem recebido ameaças de morte – incluindo Steve Farmer que, juntamente com os colegas, surpreendeu o mundo académico em 2004 ao argumentar que a escrita do Vale do Indo não representa uma linguagem, apenas um conjunto de símbolos, como aqueles que vêm nos sinais de trânsito modernos.
Como estão a tentar decifrar esta escrita
Apesar destas tensões, há muito que esta escrita fascina investigadores e entusiastas amadores, com alguns a dedicarem as suas carreiras a este enigma.
Alguns, como Parpola – um dos grandes especialistas na área – tentaram descobrir o significado por detrás de certos símbolos. Sugere, por exemplo, que em muitas línguas dravídicas as palavras para “peixe” e “estrela” soam da mesma forma. As estrelas eram frequentemente usadas para simbolizar divindades noutras escritas antigas. Por isso, os símbolos do Vale do Indo que parecem peixes podem representar deuses.
Outros académicos, como Rao e Yadav, estão mais focados em encontrar padrões dentro da escrita. Para tal, treinam modelos computacionais para analisar sequências de símbolos – depois retiram alguns até o computador conseguir adivinhar com previsão quais são os símbolos que estão em falta.
Isto é útil por vários motivos: permite compreender melhor os padrões da escrita - por exemplo, a forma como a letra Q é quase sempre seguida por um U em inglês (mas também no português) –, o que pode ajudar os investigadores a preencher lacunas em artefactos com símbolos danificados ou em falta.
Além disso, conhecer estes padrões pode ajudar a identificar sequências que não seguem as regras. Yadav aponta para os selos encontrados na Ásia Ocidental, longe do Vale do Indo: embora usassem os mesmos símbolos, seguiam padrões completamente diferentes, o que sugere que a escrita pode ter evoluído para ser usada em línguas distintas, tal como o alfabeto latino.
Há ainda os curiosos comuns, fãs deste enigma, que tentam resolvê-lo. Com o anúncio de um prémio de um milhão de dólares – apesar de faltarem informações claras sobre como candidatar-se ao mesmo -, muitos amadores recorreram a especialistas para participar, com entusiasmo, as suas teorias.
“Costumava receber um ou dois emails por semana. Agora, depois de ter sido anunciado o prémio, recebo emails praticamente todos os dias”, conta Rao. Vêm de todo o lado do mundo, escritos em várias línguas. E até há famílias inteiras a trabalhar neste enigma.
Depois de tantos anos de pesquisa, Rao oscila entre o otimismo e a resignação. Um avanço significativo implicaria o trabalho de uma equipa internacional e multidisciplinar, um grande financiamento e inclusive negociações políticas para permitir escavações em zonas fronteiriças disputadas pela Índia e pelo Paquistão, afirma.
Ainda assim, nos dias bons, ainda tem esperança. O mesmo acontece com Yadav, que se sente fascinada pela civilização do Vale do Indo desde que a estudou no quarto ano da escola. Mesmo sem a garantia de uma solução, a beleza da tarefa atrai-a ano após ano.
“Tenho vontade de trabalhar neste enigma todos os dias”, diz. “Se decifrarmos a escrita, vai abrir uma janela para a vida e para as ideias do povo do Vale do Indo. Vamos descobrir muitas coisas sobre os nossos antepassados. Por exemplo, aquilo que eles pensavam, as coisas em que se focavam”.
São detalhes que, junta, “hoje estão apenas escondidos de nós”. “É o que me mantém agarrada a este enigma, mais do que qualquer outra coisa”.
Aishwarya S Iyer, da CNN, contribuiu para este artigo.