Médicos e mulheres criticam a proposta da Administração Central do Sistema de Saúde. O que está em causa, dizem, é o acesso livre e informado à Intervenção Voluntária da Gravidez que poderá não estar garantido caso os médicos sejam penalizados por fazê-lo
A UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta considera "inaceitável o critério de avaliação dos/as médicos/as de família que os/as penaliza no caso de suas utentes terem feito uma Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) ou de terem doenças sexualmente transmissíveis (DST)". Ambos os critérios são "inadmissíveis e persecutórios dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres", afirma esta associação em comunicado.
A Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) propôs ao Ministério da Saúde novos critérios para avaliação das equipas nas Unidades de Saúde Familiar Modelo B (USF-B). Um destes critérios passa por uma avaliação em função das interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes, bem como pela existência de doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres (DST): se houver informação de IVG ou DST nas utentes nos 12 meses anteriores, médico e equipa não receberão um valor adicional ao ordenado base, porque não houve cumprimento de metas.
João Rodrigues, coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários, ao jornal Público que “o objetivo do planeamento familiar é evitar a gravidez indesejada e [os médicos] têm de ser avaliados por isso. A qualidade é evitar a gravidez indesejada. É preciso criar condições para que existam consultas de pré-conceção, consultas para quem quer iniciar a sua vida sexual. Se não tiver este indicador [de ausência de IVG] nunca vou criar estímulos para isso”, explicou
Os sindicatos criticam a eventualidade dos médicos de família serem penalizados no seu ordenado por estes indicadores. Mas a questão vai muito mais além: o que está em causa é também o acesso livre e informado à IVG que poderá não estar garantido caso os médicos sejam penalizados por fazê-lo.
É afirmado, no próprio documento produzido pela Administração Central de Saúde e validado pela DGS – Direção Geral de Saúde que o objetivo é “diminuir o número de gravidezes indesejadas”. Mas, sublinha a UMAR, "isto é algo de perverso, quando sabemos que o número de abortos tem vindo a diminuir, desde a aprovação da lei que em 2007 despenalizou o aborto até às 10 semanas".
A UMAR manifesta-se a favor do Planeamento Familiar e diz que "se existem falhas é porque faltam médicos/as nos Centros de Saúde". "Além do mais, mesmo que uma mulher faça contraceção acompanhada pelo/a médico/a, podem surgir situações de gravidezes indesejadas e as mulheres têm todo o direito a utilizar a lei da IVG. Não pode ser pressionada pelo/a seu/sua médico/a a não interromper a gravidez, só porque essa situação possa ser penalizadora na sua avaliação. Da mesma forma que não devem ficar excluídas da prevenção das DST/IST, quando esta tem de ser reforçada."
Médicos e mulheres criticam a proposta
"Há um juízo moral implícito em tudo isto que não pode ser menosprezado", escreveu a economista Maria João Marques nas redes sociais. "Há mulheres que ficarão mais uma vez nas mãos de médicos no momento de decidirem sobre os seus corpos e vidas. Há obstáculos que se levantam a um direito feminino consagrado pela lei, lei essa decidida em referendo popular. É, portanto, também uma afronta a todo o povo português. Num país onde os resultados das despenalização do aborto se traduzem em estatísticas que são verdadeiro case study de sucesso, isto é incompreensível."
A deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua comentou na sua conta de Twitter: "Há tantas coisas erradas nesta ideia que espero que nem chegue a ser seriamente discutida. Portugal é exemplar no acesso ao aborto legal e gratuito, não estraguem por favor".
Também Inês Sousa Real, deputada do PAN, se manifestou: "Quantas vezes terá de ser repetido que o aborto por decisão da mulher não empurra as mulheres para a IVG, apenas permite que o façam em condições de saúde e dignidade? A confirmar-se, é um potencial retrocesso dos direitos das mulheres e do papel das USF".
Diogo Urjais, presidente da Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, admite à CNN Portugal que, a longo prazo, esta pressão sobre os médicos pode levar a uma pressão sobre as utentes para que não realizem IVG. "Isso não está a acontecer agora e não é esse o objetivo desta proposta, mas acredito que isso possa vir a acontecer. É uma linha muito ténue que não podemos ultrapassar. Mas também por isso é que há monitorização."
Diogo Urjais sublinha que, neste momento, trata-se apenas de uma proposta que está em fase de monitorização. "A proposta ainda não foi validada. Tem levantado imenso debate e é importante que se faça essa discussão. Pode-se concluir que estes critérios não fazem sentido e dá-se um passo atrás", explica. "A verdade é que temos que rever a forma de avaliação das USF porque estamos a usar indicadores de 2007, que já não fazem sentido. Resta saber de que forma. É isso que se está a tentar perceber."
Uma vez que o número de IVG em Portugal é diminuto, este nem sequer é um problema grave de saúde pública, explica Diogo Urjais, para quem é claro que o objetivo desta proposta passa, antes, por uma tentativa de avaliar indiretamente o número de gravidezes indesejadas. No entanto, admite que talvez a forma encontrada "tenha sido infeliz".
"É importante que os médicos não sejam polícias dos utentes", diz. Até porque, lembra, "estamos a falar de um direito garantido. A IVG é legal e é um direito das mulheres".
Num olhar mais abrangente, em relação aos critérios de avaliação das USF-B, Diogo Urjais sublinha que o mais importante deve ser sempre "a qualidade da vigilância médica", o que é algo muito difícil de avaliar: "É impossível incluir todos os indicadores que seriam relevantes e, por outro lado, não podemos esquecer o chamado índice de perturbação, ou seja, os indicadores externos, como o contexto sócio-económico ou os contrangimentos das equipas." Há USF onde, por muito competente que seja o médico, será sempre mais difícil cumprir todos os indicadores.
"Os indicadores têm de ser revistos. Nisso estamos de acordo. Mas esta proposta precisa de afinações", escreveu o enfermeiro Mário Macedo, especialista em saúde pública, na sua conta de Twitter. "Penalizar USF por IVG cria o incentivo errado. Se a ideia é aumentar a produção de planeamento familiar e saúde sexual e reprodutiva, há outros indicadores que não criam o incentivo errado, nem barreiras artificiais no acesso à IVG. Priorizar as DST é correto. Estão de volta e algumas resistentes a antibióticos. Mas porquê só as mulheres? Esta proposta parece ter um julgamento moral sobre comportamento sexual. Se queremos (e bem) priorizar o combate às DST, devemos retirar julgamentos morais sobre o que as mulheres fazem. O indicador não deve especificar nenhum dos sexos."
A Federação Nacional dos Médicos (FNAM) enviou uma exposição à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), denunciando aquilo que considera "uma situação de discriminação de género no âmbito da prestação de Cuidados de Saúde Primários em Portugal".
"Para a FNAM, a monitorização das doenças sexualmente transmissíveis nas mulheres – monitorização que não tem paralelo nos homens – configura uma discriminação de género inaceitável." Além disso, lê-se na queixa, "a inclusão da interrupção voluntária da gravidez neste domínio é sinal de um retrocesso civilizacional e ideológico incompreensível, responsabilizando os profissionais de saúde familiar por uma decisão pessoal, que interessa apenas às pessoas com útero, e traz uma dimensão de penalização às equipas dos Cuidados de Saúde Primários".
"Esta alteração recente traduz uma visão patriarcal da sexualidade, que assenta na ideia de que as doenças venéreas são problema de mulheres, mantendo um ideário negativo em relação aos comportamentos sexuais femininos, distanciando-os dos masculinos", conclui a FNAM.
Jorge Roque da Cunha, presidente do SIM - Sindicato Independente dos Médicos, prefere deter a sua atenção na "crescente burocratização dos processos de avaliação" das USF, algo para o que já tinha alertado. "A questão da IVG é importante mas não é a única. Existe uma penalização dos médicos e está-se a criar cada vez mais dificuldades quando nos deveríamos centrar no doente e nas suas necessidades, isso é que é importante", diz à CNN Portugal.
A CNN Portugal tentou obter uma reação da CIG mas até agora esta comissão não enviou a sua resposta.