Após investigações internas da ONU a este caso, a maioria dos países retomou as suas transferências, e, no caso da Unicef, “uma boa parte do dinheiro foi reposta”, embora a resposta global “continue a ser subfinanciada” num território que a organização aponta como o lugar mais perigoso do mundo para se ser criança
A Unicef considera que os resultados da vacinação contra a poliomielite na Faixa de Gaza, obtidos com pausas humanitárias nos combates, mostram que é possível ajudar o território quando existe vontade, ainda que seja preciso bastante mais.
Em entrevista à agência Lusa a partir de Nova Iorque, Tess Ingram, porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para o Médio Oriente e Norte de África, alerta que os resultados já alcançados na atual campanha de vacinação destacam a importância de um cessar-fogo definitivo entre Israel e o grupo islamita palestiniano Hamas, para socorrer a população do enclave sitiado desde outubro pelas forças israelitas.
O programa de vacinação de mais de 640 mil crianças abaixo dos 10 anos foi desencadeado pelo ressurgimento da poliomielite ao fim de 25 anos sem um único caso no território, estando previstas três rondas em cada uma de duas fases entre setembro e outubro.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, quase 355 mil crianças tinham sido vacinadas até sexta-feira, graças às pausas humanitárias acordadas com Israel e o Hamas, e que vigoram entre as 06:00 e as 15:00 locais em zonas específicas.
A primeira ronda foi considerada “um sucesso” e acima das previsões, em primeiro lugar, explica a porta-voz, porque as equipas estavam organizadas e foi possível colocar no terreno as vacinas e as cadeias de frio a tempo, mas também graças ao respeito observado pelos beligerantes das pausas humanitárias.
“Isso permitiu que os profissionais fizessem o seu trabalho”, refere a porta-voz, e contribuiu ainda para “as famílias terem confiança para levar os seus filhos aos centros de saúde” e a elevadas afluências, com relatos de longas filas, “o que é muito encorajador”, somando-se a equipas de vacinação nos centros de deslocados para abranger o máximo de crianças.
A campanha contra a poliomielite corresponde às primeiras boas notícias em 11 meses de conflito, segundo Tess Ingram, a quem “faltam adjetivos” para descrever a situação na Faixa de Gaza e que tem vindo a deteriorar-se dia após dia, na proporção das intensidade dos bombardeamentos e combates, aumento de mortos, feridos e deslocados, devastação de infraestruturas, colapso do sistema de saúde e propagação de doenças: “É bom encontrar, finalmente, algo de bom para se dizer”.
A campanha de vacinação demonstra igualmente que “este tipo de resposta é possível se houver vontade de o fazer”, o que sugere a necessidade de ser alargada a proteção de civis e o aumento da ajuda e a urgência de um cessar-fogo definitivo.
Tess Ingram chama a atenção para o caráter temporário destas pausas humanitárias e seu alcance limitado a zonas específicas, o que significa que, fora daquelas horas e fora daquelas áreas, os combates continuam e não é disso que a população de Gaza precisa”.
Para acudir aos habitantes, prossegue, “é preciso que o fim dos combates se faça sentir em toda a Faixa de Gaza durante 24 horas” e não apenas pausas, que, “sendo melhor do que nada, não são o suficiente”, pelo que apela para a continuação das negociações entre Israel e Hamas, até agora inconclusivas.
Ao mesmo tempo, à semelhança de outras agências da ONU e organizações de auxílio na Faixa de Gaza, a porta-voz lamenta a falta de resposta de Israel aos pedidos que lhe são dirigidos desde início do conflito, em 07 de outubro passado.
“Há muitas coisas que as Nações Unidas, incluindo a Unicef como agência humanitária, pediram ao longo dos últimos 11 meses, e continuamos a pedir as mesmas coisas”, observa, referindo-se a “apelos não concretizados em muitas frentes”, o que inclui o aumento da quantidade de ajuda, a melhoria da coordenação das missões humanitárias para aceder a todo o território em segurança, a proteção das infraestruturas civis. E “a lista continua...”, sublinha.
Pelo contrário, outro desafio que parece ter finalmente eco está relacionado com a necessidade de unir a comunidade internacional para um cessar-fogo, o que “parece ser agora uma posição bastante partilhada”, no sentido de “não se permitir que a situação atual se torne na norma” ao fim de quase um ano de conflito.
“Enquanto comunidade internacional, temos de continuar a dar o alarme sobre o que está a acontecer em Gaza e continuar a considerar que um cessar-fogo é a melhor forma de proteger as crianças e as suas famílias”, insiste a porta-voz.
Isto implica também que as atividades humanitárias no enclave continuem a ser financiadas, após “uma grave diminuição no início do ano”, em resultado da suspensão dos pagamentos de países doadores, ao ser revelada uma suposta ligação de colaboradores da agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos (UNRWA) aos ataques do Hamas em outubro, que levaram à ofensiva de Israel na Faixa de Gaza.
Após investigações internas da ONU a este caso, a maioria dos países retomou as suas transferências, e, no caso da Unicef, “uma boa parte do dinheiro foi reposta”, embora a resposta global “continue a ser subfinanciada” num território que a organização aponta como o lugar mais perigoso do mundo para se ser criança.
Tess Ingram indica o caso da educação, que está “seriamente subfinanciada”, com o regresso às aulas previsto para este fim de semana e os encargos da Unicef na Palestina neste domínio apenas cobertos em 12% das necessidades, mas também a área da nutrição exibe números críticos.
Dada a situação “para lá do imaginável” na Faixa de Gaza, onde segundo as autoridades locais controladas pelo Hamas, a atual guerra já matou mais de 40 mil pessoas, na maioria mulheres e crianças, e provocou um desastre humanitário sem precedentes no território, pouco se fala das ondas de choque do conflito para os menores noutras regiões.
É o caso da Cisjordânia ocupada, onde as forças israelitas lançaram nos últimos dias uma grande intervenção militar, mas também do Líbano e até de Israel, que ainda lida com as consequências do ataque letal do Hamas em outubro, que deixou cerca de 1.200 mortos, na maioria civis, e mais de 250 pessoas na condição de reféns.
A porta-voz da Unicef para o Médio Oriente comenta que “as crianças da região não são alheias aos conflitos”, sendo vítimas da tensão que lhes cria medo e afeta o seu bem-estar e a sua saúde mental, quando as perturbações atingem as suas comunidades e famílias, a economia, a escola e o acesso a cuidados de saúde.
“Já vimos isso no Líbano, já vimos isso em Israel e já vimos isso na Cisjordânia”, afirma, dando conta de preocupações adicionais no território palestiniano ocupado, onde, no seu balanço semanal divulgado na quarta-feira, as Nações Unidas registavam 30 mortos durante a recente ofensiva israelita, incluindo sete crianças.
Trata-se, de acordo com Tess Ingram, de “um nível de violência inédito e que tem vindo a intensificar-se desde outubro”, com a Unicef a reforçar os apelos “para a calma e à não escalada de partes ligadas a qualquer tipo de tensão na região neste momento”.