A Comissão Europeia está a trabalhar há um ano num plano para retaliar eventuais tarifas impostas pelos EUA, antecipando uma guerra comercial bem antes da tomada de posse de Donald Trump. Desta vez a resposta poderá ser "mais poderosa" do que em 2018, quando a União Europeia não foi além de impor tarifas sobre uísque bourbon ou motas Harley Davidson
A União Europeia poderá vir a retaliar contra as tarifas impostas por Donald Trump atingindo as gigantes tecnológicas de Silicon Valley, de acordo com um relatório da Goldman Sachs a que a CNN Portugal teve acesso. E pode “prejudicá-las sem sequer impor tarifas nenhumas”, diz à CNN Portugal Manuel Caldeira Cabral, antigo ministro da Economia.
Em causa está o novo Instrumento Anti-Coerção (ICA), um mecanismo delineado em 2024 precisamente para contrariar a pressão económica de países terceiros e que, segundo os economistas da Goldman Sachs, dá margem à União Europeia (UE) para “escalar a sua resposta retaliando com as exportações de serviços dos EUA”, que têm vindo a aumentar consideravelmente desde 2018, “para quase 150 mil milhões de euros por ano”.
A “maior parte” dos serviços importados pela UE aos EUA são precisamente os serviços de Tecnologia de Informação (TI), que incluem serviços digitais prestados por empresas como a Amazon, a Microsoft, a Netflix ou a Uber, entre outros. Quer isto dizer que a resposta da UE poderá atingir diretamente aqueles que assistiram à tomada de posse de Donald Trump na primeira fila: Mark Zuckerberg, fundador da Meta, empresa-mãe do Facebook e do WhatsApp, Jeff Bezos, fundador da Amazon, Sundar Pichai, CEO do Google, e Elon Musk, proprietário do X, entre outros.
(Chip Somodevilla/Pool Photo via AP)
"Os serviços importados pela UE dos EUA abrangem diferentes setores, incluindo o setor financeiro, mas a maior parte são serviços de TI que são depois faturados como royalties canalizados para os EUA a partir da Irlanda [onde muitas destas empresas estão estabelecidas]. Estas importações ascendem a quase 150 mil milhões de euros, o que implica que qualquer ação que os restrinja poderá afetar significativamente a balança comercial de serviços com o EUA", refere-se no documento.
Em 2023, a UE registou um défice de 104 mil milhões de euros no comércio de serviços, enquanto no comércio de bens registou um excedente de 156 mil milhões de euros, de acordo com dados do Eurostat.
Neste contexto, Filipe Santos Costa, anterior presidente da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) e atual investigador no IPRI-NOVA - Instituto Português de Relações Internacionais, entende que “fará mais sentido a UE visar as exportações de serviços dos EUA” em vez de retaliar com tarifas sobre os bens norte-americanos.
Esse foi, aliás, o caminho seguido em 2018 quando os europeus reagiram às tarifas sobre o aço e o alumínio anunciadas por Donald Trump. Na altura a UE impôs tarifas sobre produtos específicos, como o uísque bourbon, do Kentucky, ou nos motociclos Harley Davidson, de Milwaukee, recorda o antigo ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, prometeu esta terça-feira uma resposta “firme e proporcional” às “tarifas injustificadas” anunciadas por Trump de 25% sobre as importações de alumínio e aço de “todos os países”, incluindo os 27 Estados-membros da União Europeia (UE). O presidente dos EUA ameaçou impor ainda mais tarifas nas próximas semanas, apontando como exemplos os veículos, os semicondutores e os produtos farmacêuticos.
"Olho por olho, dente por dente"? Desta vez, não
Desta vez, porém, a ideia não é responder “olho por olho” às tarifas impostas por Donald Trump, de acordo com três diplomatas que falaram com o New York Times sob condição de anonimato, uma vez que os planos ainda estão a ser detalhados. Segundo o jornal norte-americano, os líderes europeus já andam a trabalhar neste plano desde o início do ano passado, antecipando já uma eventual guerra comercial com o regresso de Donald Trump à Casa Branca.
“A União Europeia pode prejudicar essas empresas de serviços sem sequer impor tarifas nenhumas”, diz à CNN Portugal Manuel Caldeira Cabral, dando como exemplo a “regulamentação” dessas mesmas empresas e que já gerou um braço de ferro entre a UE e os empresários norte-americanos, com o Regulamento dos Serviços Digitais, sobre a moderação de conteúdos, e o Regulamento dos Mercados Digitais, que estabelece um conjunto de regras para proteger os cidadãos e que prevê, em caso de incumprimento, o pagamento de uma coima que pode ir até 10% do seu volume de negócios total a nível mundial. Em caso de reincidência, poderá ser aplicada uma coima que pode ir até 20% do seu volume de negócios a nível mundial. Já aquelas que não cumpram as regras do Regulamento dos Serviços Digitais incorrem numa coima máxima de 6% do seu volume de negócios. Estas leis entraram em vigor desde 2022 e podem ser reforçadas.
Mas há outra forma de “atacar” as grandes tecnológicas, acrescenta Manuel Caldeira Cabral, referindo-se à “questão fiscal”. “Sabe-se que essas empresas pagam muito menos impostos do que deveriam pagar, em particular sobre os lucros, porque nos serviços - em particular nos serviços tecnológicos - é muito fácil transferir lucros de um país para outro”, diz o antigo ministro da Economia. Daí que muitas destas empresas procurem países com condições “mais favoráveis do ponto de vista fiscal, como a Irlanda e os Países Baixos”, complementa Filipe Santos Costa. Manuel Caldeira Cabral considera que a UE “poderá impor limites muito mais restritos” a esta “evasão fiscal” das grandes tecnológicas norte-americanas.
Além disso, acrescenta Filipe Costa, a UE pode “obrigar” estas empresas a “deslocalizarem as suas operações para a Europa, onde estarão sujeitas ao direito europeu e à taxação europeia”
Além destas medidas, há “várias formas” de atingir as grandes tecnológicas norte-americanas, diz o antigo ministro da Economia, apontando como exemplo a proibição da rede social TikTok nos EUA - ainda que tenha sido por poucas horas, já que Donald Trump decidiu reverter a decisão.
“Se a União Europeia fizesse algo semelhante às empresas norte-americanas que estão a atuar na Europa, (...) estaria a fazer o mesmo que os Estados Unidos estão a fazer às empresas chinesas, o que seria pesadíssimo para as empresas americanas”, diz Manuel Caldeira Cabral, ressalvando que não defende “de todo que se faça isso”, mas recordando que este é o problema destas guerras comerciais. “Sabe-se onde começam, não se sabe onde acabam. E são um jogo de soma nula. Todos perdem”, conclui o economista.
Os especialistas admitem que, qualquer que seja a decisão da UE, os efeitos serão sempre sentidos pelos consumidores. “Obviamente que isto vai gerar um aumento dos preços para os consumidores. O direito aduaneiro pode sempre ter esse impacto”, diz Filipe Santos Costa, acrescentando que, por outro lado, também “há a possibilidade de as empresas norte-americanas estabelecerem algumas operações na Europa e o ganho ser esse”.
“Nalguns casos poderemos vir a pagar mais, noutros casos poderemos ver essas empresas a ter de criar sedes e filiais europeias e a ter de restringir conteúdos, etc. Noutros casos ainda provavelmente essas empresas terão acesso menos facilitado a alguns dados dos consumidores”, enumera Manuel Caldeira Cabral.
Também esta semana, o chanceler alemão Olaf Scholz, garantiu que a União Europeia pode reagir “dentro de uma hora” a possíveis tarifas dos Estados Unidos contra a UE.
“Estamos prontos. Sim, é a resposta com a maior cautela diplomática e podemos atuar dentro de uma hora como União Europeia”, sublinhou no primeiro debate eleitoral frente a frente com o seu rival conservador, Friedrich Merz, para as eleições legislativas de 23 de fevereiro.
Importa referir que a maior parte das exportações alemãs em dezembro foram para os Estados Unidos, embora tenham caído 3,5% em relação a novembro, para 13,5 mil milhões de euros.
Mas, se a ideia for avançar com estas medidas contra as gigantes tecnológicas, poderá não ser bem assim. É que, para ser implementado, o IAC precisa de obter a aprovação de, pelo menos, 15 dos 27 Estados-membros. A avaliar pelas dificuldades de consenso entre os 27, este processo pode prolongar-se durante semanas. Em 2018, os Estados-membros demoraram três meses a adotar as medidas de retaliação às tarifas impostas na altura por Donald Trump.