«Aos 12 anos já imitava o Vítor Baptista, também jogava de brinco»

20 abr 2023, 08:11
António Melo, em "Rua das Flores"

«Um café com…» António Melo, ator e adepto que em miúdo jogou pelo Benfica

Bem antes de pisar os palcos de teatro ou de aparecer nas novelas, filmes e séries de televisão, António Melo já dava nas vistas com uma bola nos pés. O jeito terá herdado do pai, antigo jogador da Académica de Coimbra.

Porém, desde os tempos de «gaiato», quando vivia em Penamacor com os avós, o clube que o fez apaixonar pelo futebol foi o Benfica. Um sentimento mais vivido quando, já em Lisboa, acabou por se tornar vizinho quase de uma vida inteira do goleador Nené, que um dia o convidou para ir assistir ao vivo a uma noite europeia contra o Feyenoord.

António foi também avançado e vestiu a camisola do seu Benfica, num tempo em que imitava a rebeldia de Vítor Baptista. Deixou de jogar no clube aos 14 anos, mas o vínculo como adepto indefetível acabaria por aprofundar-se ao longo de seis décadas de vida.

Salta à vista, à conversa com o Maisfutebol, acaba por surgir o inevitável tema dos resultados negativos do momento.

«Confio no homem», diz sobre o treinador Roger Schmidt, explicando a propensão natural do seu clube para que num ápice a euforia se transforme em desespero: «Os portugueses são assim. E o Benfica é o clube mais português de Portugal.»

É do Benfica desde quando?

Desde que me lembro que existo. Quem tem paixão pelo Benfica tem paixão pelo futebol. O meu pai jogou na Académica de Coimbra e é academista, mas nunca me influenciou. Escolhi livremente ser do Benfica. Fiz a escola primária em Penamacor, na Beira Baixa. Vivia com os meus avós e eles nem sequer gostavam de futebol, mas havia lá um moço mais velho que me falava do Benfica quando eu era um gaiato, com quatro ou cinco anitos. Nem consigo racionalizar em que momento foi, porque não me lembro de não ser do Benfica.

O seu pai foi futebolista?

Jogou na Académica, nos anos 50, mas depois fraturou um menisco, dedicou-se ao bacharelato e mais tarde foi tirar a licenciatura em Farmácia no Porto. Fundou em 1959 a Real República dos Lysos [a única república estudantil que ainda existe no Porto], que recebia estudantes vindos de Coimbra. Com oito anos vou para Lisboa e começo a dar uns toques no Benfica. Diz quem viu que até tinha um bocado de jeito.

Jogou no Benfica até que altura?

Saí com 14 anos. Depois fui para o «Fofó» [Clube Futebol Benfica], passei pelo Pêro Pinheiro… Era ponta de lança ambidestro, mas do meio-campo para a frente joguei em todas as posições. Uma vez até joguei a defesa esquerdo.

Como o Bernardo Silva?

Foi por uma necessidade que o treinador teve e pediu-me para jogar ali.

Não era o Jorge Jesus?

[risos] Não, não. Foi-me explicado que a equipa precisava e eu lá fui. Mas foi uma experiência que tentei não repetir.

Tinha algum ídolo na juventude?

Eusébio era transversal, mas o jogador que eu gostava mesmo era o Vítor Baptista. Está a ver o tolo que eu era…

Gostava do Vítor Baptista pelo futebol ou pela rebeldia?

Também pelo lado rebelde. Já o imitava aos 12, 13 anos. Jogava também de brinco na orelha…

E também o perdeu?

Já não me lembro se perdi. Era daquelas coisas de miúdo.

Tinha qualidade para ter sido futebolista profissional?

Tinha habilidade, velocidade, essas coisas todas. Mas só gostava mesmo do jogo. O treino chateava-me um bocado. Gostava muito de tocar guitarra, de estar com as miúdas.

Pode dizer-se que o teatro levou a melhor.

Ainda joguei até aos 21. Há um ano em que já era ator e ainda jogava nos distritais, no União e Progresso da Venda Nova, que era ao pé da minha casa, mas era incompatível. Até ao Pêro Pinheiro, em que ouve uma época que andava entre os juniores e os seniores, ainda levei aquilo a sério.

Queria ser futebolista ou ator?

A minha ambição era ser futebolista, mas que não desse muito trabalho. Gostava do lado lúdico do jogo. Era intenso a jogar, muito competitivo e tal, mas havia uma série de regras que eu tinha dificuldade em cumprir. O teatro foi-me conquistando. Não dizia em pequenino: «Ai, quando for grande quero ser artista…» Nada disso. Apaixonei-me um dia pelo teatro. Hoje, não trocaria.

Encontra semelhanças entre a arte de representar e a de jogar futebol?

Tudo! É tudo igual do ponto de vista dos intervenientes. A ansiedade antes. Na véspera do espetáculo ou do jogo, a adrenalina está lá em cima. O ensaio é o treino. A exposição pública. Quem sobe ao relvado ou a um palco está a ser escalpelizado.

Recentemente contracenou um antigo futebolista, o Futre, na novela da TVI «A Rua das Flores».

O Futre estava a fazer de Futre. Nenhum ator consegue fazer tão bem de Futre como ele próprio. Nem o Marlon Brando. Gosto muito dele. Para mim, está no top-5 dos melhores jogadores portugueses de sempre.

E o melhor, quem é?

O melhor é o Eusébio. Porque jogou um jogo coletivo. Além dos mais de 700 golos, o Eusébio tem mais de 500 assistências.

António Melo a contracenar com Paulo Futre na novela «Rua das Flores»

Qual é a primeira memória que tem de um jogo de futebol?

O primeiro jogo internacional que vi, pouco tempo depois de vir de Penamacor para Lisboa. Morava, e moro, perto do Nené, grande ídolo do Benfica, e ele um dia convidou-me a mim e a outros miúdos para ir ao futebol. Fui ver o Benfica-Feyenoord, à noite. O Benfica estava eliminado a 15 minutos do fim. Nesse período fez três golos e ganhou 5-1 [Nené fez um hat-trick no jogo]. Depois, nas meias-finais, fomos eliminados pelo Ajax do Cruyff.

Para um miúdo do Benfica ser vizinho do Nené era uma coisa extraordinária, não?

Claro! Embora o Nené fosse uma pessoa reservada. Lembro-me que um dos comentários que fazíamos era sobre o carro dele. O Nené teve o mesmo Datsun 1200 para aí alguns 15 anos. Era regrado, pouco exuberante, mas empático. Além de um jogador excecional era também uma personalidade excecional.

Não era propriamente uma vedeta do futebol.

Hoje eles próprios já se fazem de vedetas. Antigamente, era o público que decidia isso. A culpa não é só dos jogadores. Vivemos num tempo de mediatismo em que importa mais parecer do que ser. Outra diferença é que havia mais cultura desportiva do que clubística. Eu admirava o Vítor Damas ou o Fernando Gomes, que eram ídolos de outros clubes. Criou-se uma cultura de ódio e de intolerância que faz do nosso futebol algo paroquial. Almada Negreiros dizia: «Portugal é o país mais selvagem de todas as Áfricas.» Parafraseando o mestre eu diria: «O futebol português é o mais selvagem de todas as Áfricas.»

Surpreende-o a crise de resultados que o Benfica está a atravessar neste momento?

Não estava à espera. Mas tenho 60 anos e já vi muito futebol. Disse-o na televisão, e isso está gravado, que o Benfica não podia encomendar faixas nenhumas, embora acredite que vamos ser campeões. Não sou do 8 nem do 80. Nesta fase, o Benfica só foi inferior no jogo com o FC Porto, não o foi contra o Chaves nem contra o Inter, em que teve um jogo particularmente ingrato. Mas acredito na reviravolta, tanto é que vou a Milão [a entrevista realizou-se na véspera da segunda mão da meia final da Liga dos Campeões, com o Inter].

O que explica este aparente bloqueio do Benfica nos clássicos com o FC Porto?

Para o FC Porto jogar com o Benfica é quase um caso de vida ou morte. E o Benfica terá de saber adaptar-se a isso. Em Espanha, é diferente para as restantes equipas defrontarem o Real Madrid, ou no Brasil, e eu já vivi lá, defrontarem o Flamengo. Mas quero salientar aqui que respeito muito os meus adversários.  Se o Benfica ganhar ao FC Porto, não vou mandar uma mensagem a gozar com um amigo meu portista: «Toma!» Sou incapaz de fazer isso. Tenho de respeitar o amor que ele tem pelo clube dele. Agora, não me façam isso a mim.

Esta passagem de muitos adeptos de um estado de euforia ao quase desespero é uma característica que se nota em particular em clubes como o Benfica?

Sempre foi assim. Os portugueses são assim. E o Benfica é o clube mais português de Portugal.

Não teme que esse sentimento traia a equipa nesta fase decisiva da época?

Nisso já não acredito.

Quando viveu no Brasil tinha alguma preferência clubística?

Gostava do Flamengo. Fui muito marcado pela geração do Zico. Tinha algum carinho também pelo Santos, por causa do Pelé. Estar no meio do Estádio da Luz ou do Maracanã é a mesma coisa. O mesmo tipo de sentimento. É uma torcida monumental, mas também por ser tão grande é a mais irracional. Quando as coisas correm mal, a culpa é do roupeiro, do tratador da relva, do aguadeiro, de quem engraxa as botas… A culpa tem de ser de alguém. E está tudo mal! O futebol é encantador pelo sortilégio. Porque tudo pode acontecer. É o único desporto em que jogando mal se ganha e em que jogando bem se perde. Uma equipa de basquetebol que jogue bem, ganha. Esta coisa de jogar com os pés é diferente por isso.

Acredita, portanto, em Roger Schmidt?

As pessoas que dizem que foi extemporâneo renovar são as mesmas que em dezembro diziam que era preciso segurá-lo. O Roger Schmidt tem defeitos e toma más decisões, como qualquer treinador. Agora, confio no homem. Não posso dizer que não é um bom treinador depois do bom futebol que vi o Benfica jogar este ano. Principalmente, gosto do carácter dele. Ter fair-play quando se ganha, é facílimo. Difícil é ter quando se perde. Depois de levar seis anos com o Jorge Jesus… Um clube grande é grande a ganhar e a perder. Alguns clubes só são grandes quando ganham.

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«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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