Proposta oficial da Comissão Europeia para uniformizar leis de deportação de migrantes prevê envio de requerentes de asilo para “centros de retorno” fora do bloco – uma medida já muito criticada por alguns grupos parlamentares, ONG, investigadores e especialistas em Direito comunitário, que falam na “resposta errada a uma boa questão”
Depois de meses a desmentir alegados planos para criar “centros de retorno” para migrantes fora da União Europeia (UE), a Comissão Europeia de Ursula Von der Leyen avançou na terça-feira com uma proposta oficial de deportação de requerentes de asilo que passa, precisamente, pela criação desses centros extracomunitários, ainda que não a cargo de Bruxelas.
Na apresentação da sua diretiva para um Sistema Europeu Comum de Regressos, o comissário para as Migrações fez questão de sublinhar que o objetivo é uniformizar as regras europeias para deportar imigrantes indocumentados e que ficará a cargo de cada Estado-membro negociar com países terceiros a criação desses “centros de regresso” – um eufemismo para centros de deportação – em troca de incentivos.
“O sistema europeu tem de deixar bem claro que, quando alguém recebe uma decisão de regresso, está a ser instruído a abandonar não só o país, mas toda a União Europeia”, afirmou Magnus Brunner, considerando “inaceitável” a atual taxa de 20% do total de requerentes com pedidos de asilo rejeitados que abandonam o bloco. "As migrações são frequentemente exploradas por populistas para obter ganhos políticos", acrescentou Henna Virkkunen, vice-presidente da Comissão, ao seu lado. "Os nossos cidadãos esperam que façamos uma gestão eficaz das migrações."
Depois da aprovação do controverso Pacto Europeu de Migrações e Asilo, arduamente negociado durante mais de quatro anos, o segundo executivo de Von der Leyen diz que as medidas agora propostas para o “regresso” dos migrantes aos seus países são necessárias para contrariar a crescente esfera de influência da extrema-direita entre os eleitores. Mas vários grupos parlamentares, bem como analistas e organizações não-governamentais (ONG), rejeitam o argumento.
“Ouvimos o mesmo em relação ao Pacto Europeu de Migrações e Asilo, a Comissão insistiu na sua adoção, apesar das muitas lacunas em matéria de direitos fundamentais e da precipitação das negociações, alegando que seria a única forma de contrariar a influência da extrema-direita antes das eleições europeias” de junho passado, refere à CNN Silvia Carta, responsável de advocacia na Plataforma para Migrantes Sem Documentos (PICUM).
“Agora, em vez de esforços efetivos para implementar esse pacto, estamos a assistir a uma dinâmica semelhante com esta nova lei de deportações”, adianta a especialista em migrações e asilo. “Esta é já uma proposta de extrema-direita, e é positivo que os grupos de centro-esquerda estejam a falar mais alto do que no passado. Votaram a favor do Pacto apesar das suas graves deficiências, pelo que esperamos que haja uma lição a retirar deste mandato.”
“Uma solução populista”
Não são apenas os partidos de centro-esquerda (e à sua esquerda) que estão contra a proposta apresentada. Reagindo ao anúncio de Brunner, após um primeiro debate do pacote legislativo em Estrasburgo, a líder dos liberais do Renew defendeu que “esta não é a forma certa de dar resposta à questão das deportações”.
Para Valérie Hayer, estamos diante de “uma solução populista que não respeita os nossos valores”, numa opinião partilhada pelos socialistas europeus (S&D), que em comunicado deixaram claro que nunca irão dar aval a um projeto-lei que inclua “centros de retorno” na sua redação final. O mesmo foi indicado pelo Grupo dos Verdes, que fala num esquema impraticável.
“Os centros de retorno fora da UE são completamente irrealistas e seriam extremamente dispendiosos, quer para os contribuintes, quer em termos de sofrimento humano”, referiu na terça-feira a eurodeputada sueca d’Os Verdes Alice Bah Kuhnke, aos jornalistas. “Os centros de retorno não são uma solução para os nossos problemas relacionados com migrações, mas sim um populismo para apaziguar a extrema-direita.”
Esse é, contudo, um dos pilares da proposta do Partido Popular Europeu (PPE), a que Von der Leyen pertence, atualmente o maior grupo do Parlamento Europeu, que poderá ter de contar com o apoio dos grupos de extrema-direita que diz querer combater para fazer aprovar o projeto-lei. Alegislação prevê ainda punições mais rigorosas para quem foge a deportação e que alarga de 18 para 24 meses o tempo de detenção de migrantes com pedidos de asilo rejeitados que representem "risco de fuga ou segurança".
“À semelhança do Pacote Omnibus, que veio desmantelar o Pacto Verde, o plano de migrações de Von der Leyen foi concebido para agradar à maioria parlamentar alternativa com que a nova Comissão Europeia conta”, refere à CNN Alberto Alemanno, professor Jean Monnet em Direito Europeu na HEC Paris.
“Esta nova proposta destina-se a tratar os sintomas e não as causas profundas do fenómeno migratório e terá consequências indesejadas importantes, com custos sem precedentes para os contribuintes”, adianta o especialista em Direito comunitário. “Os ditos centros de retorno dão uma resposta errada a uma boa questão: o que fazer com os imigrantes clandestinos na UE?”
“Uma crise inexistente”
Nas suas declarações ao Parlamento Europeu, Brunner garantiu, como já havia dito em fevereiro num encontro com os governos dos 27 em Varsóvia, que tudo será feito de forma a respeitar os padrões e leis da UE em matéria de direitos humanos. Mas como ressalta Alberto Alemanno, existe ainda assim um elevado risco de estes centros “serem contestados judicialmente e suspensos por razões humanitárias, apesar de custarem uma fortuna aos contribuintes”.
Com esta proposta, a Comissão aproxima-se ainda mais da externalização das migrações ao redefinir o que significa “país de regresso”. Mas como referiu, por exemplo, o Renew em comunicado, “as migrações não são um assunto que possa ser facilmente externalizado”. Sob as regras atualmente em vigor na UE, os Estados-membros podem enviar requerentes de asilo que vejam os seus pedidos rejeitados para o seu país de origem, para um país de trânsito que tenha um acordo de readmissão com a UE ou para qualquer outro país com que o migrante consinta “voluntariamente”.
Em 2018, numa avaliação à legalidade e exequibilidade de criar este tipo de centros fora da UE, a Comissão Europeia classificou-os como “ilegais” porque as leis do bloco impedem que os migrantes sejam enviados “contra a sua vontade” para um país de onde não provêm e pelo qual não passaram. Mas com esta nova proposta de lei, o consentimento obrigatório dos migrantes desaparece.
Para além disso, as modalidades de transferência destas pessoas são alargadas para que os países da UE possam, por vias legais, estabelecer acordos com países terceiros onde pretendam construir centros de deportação. Brunner garantiu que não será Bruxelas a liderar a construção ou a gestão destas instalações – cada um dos projetos, que se preveem dispendiosos, logisticamente difíceis e politicamente controversos, ficará ao critério de cada Estado-membro.
“Estamos a criar o quadro jurídico, não estamos a criar o conteúdo. Trata-se de uma solução inovadora para os Estados-membros, que são livres de a adotar”, disse o comissário europeu, sem fechar completamente a porta à possibilidade de centros destes virem a ser criados ao nível da UE.
“Estes centros são uma política de retalhos destinada a satisfazer a procura por uma resposta de curto prazo a uma crise migratório inexistente em toda a UE”, reforça Alberto Alemanno, que para além do peso no bolso dos contribuintes e dos riscos de violações de direitos humanos refere um outro risco associado à proposta. “Estes centros podem não conseguir dissuadir os imigrantes de entrar e, assim, agravar o problema ao ponto de tornar realidade as reivindicações da extrema-direita contra os migrantes.”
“Um exemplo a seguir”
Alemanno não é o único a referir a ideia de que medidas como esta são mais guiadas por perceções e retóricas populistas do que a realidade. No início de fevereiro, após o encontro informal de líderes na Polónia em que Brunner já sugeria a proposta de criar centros de detenção para migrantes expulsos da UE, um especialista português referia à CNN que “os dados mostram que houve menos pessoas a entrar irregularmente na UE no ano passado” e que a maioria dos que vêm têm visto e chegam de avião.
“Tenho pena que estejamos a ir por este caminho e não vejo como é que esta proposta possa resultar”, referiu então o sociólogo Pedro Góis, diretor científico do Observatório das Migrações. “Como tudo no tempo em que estamos a viver, percebo que isto tem um efeito mediático importante. [Mas] vejo isto a ter um efeito boomerang quando a Europa mais precisa de migrantes.”
Numa tendência oposta à das chegadas, tem havido um claro aumento do número de migrantes enviados por Estados-membros da UE para países terceiros – um total de 27.740 só no primeiro trimestre de 2024, de acordo com dados do Eurostat, mais 34,7% em comparação com o mesmo período de 2023.
Ao leme destes esforços têm estado países como Itália, cujo Governo assinou um acordo multimilionário com a Albânia para criar no país centros de retorno que acolham até 3 mil migrantes irregulares expulsos por Itália – uma medida que a presidente da Comissão Europeia chegou a classificar como “um exemplo a seguir”, mas que a justiça italiana declarou ilegal ainda antes de esbarrar nos tribunais europeus.
Von der Leyen e Brunner têm apoiado abertamente o plano de Giorgia Meloni com a Albânia, semelhante a um acordo defunto entre o Reino Unido e o Ruanda para transferência de requerentes com pedidos de asilo rejeitados para aquele país africano. Ainda assim, o comissário europeu das Migrações garantiu esta semana que as propostas do executivo não são iguais a essas.
“A Comissão não é totalmente honesta quando diz isto”, refere Silvia Carta, da PICUM. “Embora os detalhes possam mudar, o resultado é o mesmo: enviar pessoas para um país terceiro onde nunca estiveram e onde os seus direitos fundamentais estão em risco. A Comissão não foi capaz de explicar o valor acrescentado destes ‘modelos’ para além de manterem as pessoas longe do olhar do público e de todas as garantias de controlo democrático.”
“Um novo mínimo”
O argumento da Comissão é que, ao contrário do plano suspenso de Itália com a Albânia, que prevê a externalização do processamento dos próprios pedidos de asilo, a proposta de Bruxelas apenas se aplica a migrantes cujos pedidos tenham sido rejeitados, excluindo menores não-acompanhados. “É a única diferença real que vejo, a de que a Comissão não está aberta a deslocalizar os procedimentos de asilo”, refere Silvia Carta. “Mas o que fará é efetivamente fornecer uma base jurídica para que o protocolo Itália-Albânia seja implementado como um centro de deportação.”
Sob fortes críticas de especialistas e organizações da sociedade civil – a Amnistia Internacional fala num “novo mínimo” atingido pela UE – a proposta de um Sistema Europeu Comum de Regressos seguirá agora para os Estados-membros e para o Parlamento Europeu, onde será avaliado por uma comissão parlamentar e um relator, para posterior discussão e votação em plenário, ainda sem data. Fonte em Bruxelas adiantou à CNN que o dossier deverá ser atribuído à Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos (LIBE) do PE.
Para além de Itália, antevê-se a adesão a esta ideia de países como a Dinamarca e os Países Baixos, que têm estado ao leme de discussões neste sentido, contra países como Espanha e Portugal, que têm questionado a legalidade e os riscos que os centros de retorno acarretam.
Para grupos e organizações como a PICUM, esta é só mais uma prova de como “a UE e os Estados-membros continuam a adotar políticas e legislação que empurram as pessoas para a irregularidade, criando obstáculos ao acesso a autorizações de trabalho, de educação e por razões familiares, endurecendo as regras de deportação”, aponta Silvia Carta.
Num documento publicado há um mês, a Agência da UE para os Direitos Fundamentais (FRA) já alertava que “os centros de retorno planeados não podem tornar-se zonas livres de direitos” e que só terão garantias de respeito pelo direito comunitário e internacional se incluírem “salvaguardas sólidas e eficazes” dos direitos de cada pessoa que seja enviada para lá.
“Com a UE e os Estados-membros a tentar encontrar soluções para gerir as migrações, não devem esquecer-se das suas obrigações de proteger as vidas das pessoas e os seus direitos”, ressaltou então Sirpa Rautio, diretor da FRA, em comunicado.
“A UE e os Estados-membros continuam a adotar políticas e legislação que empurram as pessoas para a irregularidade, criando obstáculos ao acesso a autorizações de trabalho, de educação ou por razões familiares e, em consequência, endurecem as regras de deportação”, reforça Silvia Carta, antes de contrapor: “Investimentos reais em vias de migração regular, bem como o acesso a autorizações decentes e à regularização, reconheceriam efetivamente que os migrantes irregulares fazem parte da sociedade e evitariam os danos que sofrem quando estão indocumentados.”