Já há um Livro Branco para ReArmar a Europa - e exclui negócios de armas com EUA, Reino Unido e Turquia

19 mar, 15:39
Chefe diplomacia UE Kaja Kallas e comissário europeu da Defesa Andrius Kubilius apresentam Livro Branco e programa ReArmar a Europa em Bruxelas (Olivier Hoslet/EPA)

É "um momento crucial para a segurança europeia"

Duas semanas depois da “cimeira mais importante das nossas vidas adultas” (nas palavras de Ursula von der Leyen), que marcou um “ponto de viragem” para a União Europeia (nas palavras de Donald Tusk), a Comissão Europeia apresentou esta quarta-feira o seu Livro Branco da Defesa, espécie de guião com propostas para implementar o ambicioso programa ReArmar a Europa.

Com a UE desesperada por se autonomizar dos Estados Unidos, cujo presidente continua a negociar diretamente com a Rússia o futuro da Ucrânia (e, por arrasto, do resto do continente europeu), o documento prevê até 800 mil milhões de euros em gastos em Defesa nos próximos quatro anos e sugere o “aprofundamento” do mercado único de produtos e serviços de Defesa na UE. “A era dos dividendos da paz acabou há muito”, declarou a presidente da Comissão, em Bruxelas. “A arquitetura de segurança que utilizámos já não pode ser considerada um dado adquirido. A Europa está pronta para assumir as suas responsabilidades.”

Invocando um dos capítulos do Livro Branco, “Prontidão 2030”, Ursula von der Leyen invocou “medidas decisivas” e uma “abordagem proativa em matéria de segurança”, que passa por aumentar a despesa com Defesa e apostar em “investimentos importantes nas capacidades industriais de defesa europeias”, antes de adiantar: “Temos de comprar mais na Europa porque isso significa reforçar a base tecnológica e industrial da Defesa europeia e significa estimular a inovação, criando um mercado à escala da UE para equipamentos de defesa”.

“A arquitetura de segurança que utilizámos já não pode ser considerada um dado adquirido", defende Ursula von der Leyen, agora que Trump está de volta ao poder nos EUA e a pôr cada vez mais em causa a tradicional aliança com os europeus Foto: DR

O contexto e as metas

Na semana passada, em declarações ao Parlamento Europeu, o comissário da Defesa, Andrius Kubilius, explicou que a UE tem atualmente um défice na Defesa de pelo menos 500 mil milhões de euros e carece de “milhares de tanques e veículos blindados”. Ao seu lado, von der Leyen adiantou aos eurodeputados que, em média, os Estados-membros só têm contribuído com menos de 2% do PIB para a Defesa comum.

Com Washington a exigir a cada aliado da NATO investimentos em Defesa na ordem dos 5% do PIB (que Trump desejava que fossem gastos em armas e equipamentos made in USA), fontes dentro da aliança dizem que a ideia a circular é definir como meta de gastos os 3,7% do PIB, um objetivo a ser debatido no final de junho, na próxima cimeira da NATO, em Haia.

Até lá, e já a partir desta quinta-feira, os líderes da UE vão começar a debater formalmente as propostas da Comissão Europeia para reforçar a segurança e defesa do bloco e garantir que os europeus conseguem colmatar a retirada de apoio norte-americano à Ucrânia num momento particularmente delicado para o país, agora que bateu em retirada da região russa de Kursk, perdendo uma das maiores moedas de troca que podia vir a usar em futuras negociações de paz com Moscovo.

No atual contexto de tensões geopolíticas, na mesma semana em que Trump e Vladimir Putin voltaram a falar ao telefone sobre como acabar com a guerra que a Rússia lançou contra a Ucrânia, calcula-se que a UE tenha de gastar 250 mil milhões de euros por ano – o equivalente a 3,5% do seu PIB – com a sua própria segurança. 

Na véspera de mais um importante Conselho Europeu, eis o que contém o Livro Branco da Defesa que o comissário Kubilius apresentou em Bruxelas ao lado da chefe da diplomacia da UE, Kaja Kallas, que invocou “um momento crucial para a segurança europeia” e “um momento crucial para agir”.

Putin e Trump falaram ao telefone esta semana e acordaram uma série de passos para um cessar-fogo na Ucrânia, sem consultar Kiev ou a UE Foto: AP

650 mil milhões + 150 mil milhões para "comprar europeu"

Como Von der Leyen já tinha adiantado aos líderes dos 27 há duas semanas, a proposta mais emblemática do pacote ReArmar a Europa passa por angariar os 800 mil milhões de euros necessários para o setor da Defesa, 650 mil milhões deles ao longo dos próximos anos através de um alívio das regulações aos gastos de cada Estado-membro no setor, ativando a cláusula de salvaguarda nacional das regras orçamentais.

Como definido no documento, os Estados-membros são “convidados” a pedir o alívio das regras do défice para investimentos em Defesa, prevendo-se que cada país possa alocar 1,5% do PIB adicional para gastos com equipamento militar. A margem fiscal extra está a ser bem recebida, mas muitos analistas questionam-se até que ponto a maioria dos países vai recorrer a ela.

Para angariar os restantes 150 mil milhões de euros, a Comissão propõe no seu Livro Branco a criação de um esquema de empréstimos, um novo instrumento europeu de crédito para circunstâncias extraordinárias, semelhante ao que foi criado durante a Covid-19 para evitar elevadas taxas de desemprego.

Um dos grandes pontos de especulação nas últimas semanas era em que países o dinheiro pode ser investido em negócios de armamento. Com a apresentação do Livro Branco, a Comissão confirma que fabricantes dos EUA, do Reino Unido e da Turquia vão ser excluídos e que o fundo só pode ser usado com empresas da UE ou de países terceiros com quem o bloco tem acordos de defesa.

A proposta também exclui quaisquer sistemas avançados de armamento sob os quais um país terceiro tenha “autoridade de design” – ou seja, restrições sob a sua construção ou uso de componentes específicos – ou controlo sobre o seu eventual uso. Isto exclui a plataforma de defesa aérea e de mísseis Patriot, fabricada pela empresa norte-americana RTX, e outros sistemas de armamento feitos nos EUA.

“Temos esta oportunidade de realmente construir a indústria de defesa europeia”, disse Kallas aos jornalistas, sublinhando que a Ucrânia demonstrou a importância de se ter armas sem restrições estrangeiras. “Em crise, os exércitos precisam mesmo de ter as mãos livres.”

As restrições marcam uma grande vitória para países como França, que têm imposto como exigência uma abordagem focada em compras europeias, face aos receios de uma dependência de longo prazo do armamento produzido pela América de Trump. Como definido no Livro Branco, pelo menos 65% do custo dos produtos tem de ser gasto na UE, na Noruega e na Ucrânia.

Se países como os EUA, a Turquia ou o Reino Unido, este último já integrado na indústria de defesa de países como Itália e Suécia, quiserem integrar a lista de parceiros comerciais do setor, têm de assinar uma parceria de defesa e segurança com a UE.

A Comissão deixa ainda a porta aberta a explorar novos acordos de segurança e defesa com outros países, como a Coreia do Sul e o Japão no Indopacífico, a par da Austrália, Nova Zelândia e Índia.

Sistemas Patriot e outros equipamentos made in USA estão fora do cardápio para as compras de armamento dos Estados-membros Foto: Getty Images

Fundos reafetados, áreas prioritárias

Os valores podem parecer estrondosos, mas de acordo com vários cálculos estima-se que só vão cobrir cerca de 10% das necessidades europeias, motivo pelo qual muitos olham para este pacote de propostas como um mero primeiro passo rumo à militarização de longo prazo do bloco europeu. Além disso, há quem questione o impacto que as medidas podem ter nas economias europeias e, também, na moeda única, dado que muitos dos Estados-membros já estão altamente endividados.

Há países do bloco, em particular do norte e centro, que questionam a lógica da proposta de empréstimos facilitados. Recentemente, o parlamento dos Países Baixos – onde a extrema-direita de Geert Wilders, que atualmente integra o governo de coligação, promete ser um dos mais contestatários das propostas – aprovou uma resolução não-vinculativa a rejeitar o programa ReArmar a Europa, sob o argumento de que afundar o bloco em endividamento crescente.

O argumento é o mesmo que Alice Weidel, líder da extrema-direita alemã, usou esta semana no rescaldo de uma votação histórica no Parlamento federal – quando foi aprovada uma alteração ao regime fiscal que, até agora, limitava o endividamento do Estado alemão a 0,35% do PIB.

O mesmo Livro Branco prevê ainda a reafetação de verbas de outros fundos europeus, como o Fundo de Coesão, para projetos de uso civil e militar – um esquema sob o qual 20 países do bloco (todos os que não têm classificação de crédito AAA das agências de rating internacionais) podem recorrer a esses fundos para financiar negócios com fabricantes europeus do setor da Defesa.

A proposta de redirecionamento de mais de 300 mil milhões de euros de fundos que, em circunstâncias normais, serviriam para financiar projetos e infraestruturas nas zonas mais pobres da UE levanta algumas questões. A medida pode vir a ser bloqueada por governos próximos da Rússia, como a Hungria de Orbán ou a Eslováquia de Fico, mas não requer unanimidade. Mas, tal como o alívio das regras fiscais, tem por base o voluntarismo dos Estados-membros, o que levanta a dúvida sobre que países vão realmente aderir a ela.

As restantes vertentes do Livro Branco incluem o recurso a verbas do Banco Europeu de Investimento – que deve anunciar entretanto novas regras mais flexíveis para facilitar estes negócios de armamento – e ainda capital privado.

Para “colmatar as principais lacunas das Europa em matéria de capacidades de defesa”, o documento indica a necessidade de o próximo orçamento comunitário plurianual “prever um quadro global e sólido de apoio à defesa da UE, a fim de garantir a previsibilidade e a estabilidade financeiras a longo prazo”. 

Também define as sete áreas que mais precisam de investimento: defesa aérea e antimísseis, sistemas de artilharia, munições e mísseis, drones e sistemas antidrones, mobilidade militar, inteligência artificial e tecnologias e proteção de infraestruturas críticas.

Munições e mísseis estão na lista de equipamento de que a UE mais necessita neste momento foto Matt Rourke/AP

Capítulo Ucrânia e a guerra comercial à espreita

Ao passo que todos os outros pontos do Livro Branco e do programa para ReArmar a Europa preveem medidas de médio e longo prazo, existem necessidades mais imediatas no atual contexto geopolítico - à cabeça há garantir que a Ucrânia se mantenha capaz de combater os russos no terreno.

Kiev já indicou que pode precisar de até 33 mil milhões de euros em ajuda militar adicional até ao final deste ano. E perante suspeitas de que os EUA podem contribuir pouco ou nada para isso, cabe à UE arranjar esses fundos rapidamente.

Numa secção dedicada especificamente à Ucrânia, o documento apresentado prevê um aumento significativo da ajuda europeia ao país, que passa por fornecer equipamento militar e pelo menos dois milhões de unidades de munições por ano.

“No Livro Branco tivemos em consideração as propostas contidas na iniciativa de apoio à Ucrânia, que inclui mais ajuda à Ucrânia, incluindo mais munições, pelo menos dois milhões de unidades por ano, bem como defesa aérea, drones, treino e equipamento para as brigadas ucranianas”, disse Kallas. “Isto também inclui apoio direto à indústria de Defesa da Ucrânia e acesso reforçado aos serviços espaciais” (leia-se, acesso à internet por satélite fornecida por empresas europeias, como definido no documento).

Na semana passada, Kaja Kallas tinha apresentado um plano que passa pelos Estados-membros se voluntariarem a participar na “entrega de ajuda militar à Ucrânia em 2025 com o valor provisório de pelo menos 20 mil milhões de euros e potencialmente alcançando os 40 mil milhões consoante as necessidades ucranianas”. Essa proposta define 30 de abril como o prazo para cada Estado-membro declarar como planeia contribuir para essa ajuda – sendo que os pagamentos devem ser feitos, no máximo, até 30 de junho, para garantir que chega a Kiev até ao final do ano. 

O dinheiro a ser angariado deve ser canalizado para munições de artilharia de grande calibre, sistemas de defesa aérea, mísseis, drones, caças e para treinar as tropas ucranianas – e servir também para o potencial envio de tropas de manutenção de paz para a Ucrânia, uma medida que países como França continuam a defender para garantir o respeito por um eventual cessar-fogo e que a Rússia rejeita liminarmente.

A este respeito, o Livro Branco da Defesa promove o chamado modelo dinamarquês de apoio à Ucrânia, que passa pelos Estados-membros da UE adquirirem diretamente equipamentos de defesa fabricados na Ucrânia ou estabelecerem parcerias com empresas de defesa do país – o qual, segundo muitos analistas, ao final de mais de três anos de invasão russa em larga escala, tem o setor de Defesa mais robusto da Europa.

Da série de propostas da Comissão consta ainda um plano de ação para reforçar e potenciar a indústria siderúrgica da UE, algo que, em circunstâncias normais, seria uma nota de rodapé mas que pode tornar-se uma dor de cabeça dado plano de Trump de aplicar tarifas de 25% sobre as importações de aço e alumínio da UE.

O bloco já prometeu responder com contramedidas em abril e, perante os receios de que esta guerra comercial transatlântica rebente, temem-se consequências graves para muitos setores da economia da UE, incluindo esse, que em última instância podem fazer descarrilar todos os esforços.

Livro Branco tem uma secção focada em exclusivo na Ucrânia e em como reforçar o apoio militar ao país perante retirada dos EUA Foto: AP

Títulos de Defesa (Eurobonds outra vez?)

No ar continua a questão da emissão de títulos conjuntos de dívida, os chamados eurobonds, entretanto rebatizados títulos de Defesa. Se, em tempos, este era um tabu para a parte mais rica do bloco, com a votação que teve lugar esta semana em Berlim o caso parece ter mudado de figura.

Há algumas semanas, o provável futuro chanceler alemão, Friedrich Merz, já tinha sinalizado abertura a esta opção. E com a aprovação pelo Parlamento alemão do que classificou como “bazuca de despesa”, que passa por isentar de restrições ao défice gastos com Defesa acima de 1% do PIB do país, prevê-se que a maior economia da UE desbloqueie milhares de milhões de euros para o setor.

Isto é muito bem visto em Bruxelas, mas não tanto em algumas capitais europeias, onde há receios de que a Alemanha venha a gastar grande parte ou a totalidade desses fundos nas suas próprias empresas, gerando uma espécie de concorrência desleal ou desvantagem injusta em relação a Estados-membros menos ricos. 

Por sua vez, isto poderá desencadear novos pedidos dos países do Sul, incluindo Portugal, para que Bruxelas emita novos títulos de dívida conjuntos para financiar os investimentos em Defesa – à semelhança do que foi feito há meia década para combater a recessão na UE face à pandemia de Covid. 

Os Países Baixos e outros continuam a rejeitar esta hipótese e a Comissão garante, para já, que "não emitirá títulos de Defesa", argumentando que o dinheiro virá de "emissões convencionais de títulos de dívida da UE conforme acordado pelos Estados-membros". Mas com a aparente abertura da Alemanha, é possível que, mais à frente, não só surja um pedido por títulos de Defesa como que venha a ser atendido.

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