Ataque à central nuclear é crime de guerra? E justifica intervenção da NATO? O que mudou para a Rússia desde a última noite

4 mar 2022, 15:25

Um rebentamento de um reator nuclear podia chegar até Portugal, o que resultaria em consequências para vários países membros da NATO. Em causa está também a possibilidade de haver mais um alegado crime de guerra

O leste da Europa viveu uma madrugada de sobressalto, depois de tropas russas terem entrado na central nuclear de Zaporizhzhia, a maior do continente. Parte dos combates deu-se a apenas 150 metros do local, o que chegou a motivar o ministro ucraniano dos Negócios Estrangeiros a dizer que havia um risco de acontecer um desastre “10 vezes pior” que Chernobyl, caso um dos reatores explodisse.

Será que esta movimentação russa pode modificar a investigação do Tribunal Penal Internacional? E como fica a posição da NATO perante um ataque que ameaçou vários países, incluindo vários Estados-membros daquela organização?

O diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal lembra à CNN Portugal que qualquer acidente naquela zona pode ter “consequências muito graves” numa zona muito alargada, estendendo-se muito para lá do território ucraniano. Ainda assim, Pedro Neto não vê esta ação russa como um claro crime de guerra, sendo sujeito a interpretações, uma vez que a Convenção de Genebra não tem no seu espírito o ataque a infraestruturas nucleares, mas antes a proteção dos civis.

“Mas há aqui um enquadramento: com alguma flexibilidade, o TPI pode classificar este como um crime de guerra, se considerar que o ataque foi feito com o objetivo de causar uma maciça perda de vidas humanas, sobretudo civis”, nota.

Ainda que seja difícil chegar a essa conclusão, o responsável explica que, no caso de se determinar que foi um “ataque deliberado para destruir a central”, o mesmo pode ser comparado com a utilização de armas químicas, essas sim proibidas pelo Direito Internacional.

Caso houvesse um ataque com mísseis de longo alcance ,“aí sim, haveria um crime de guerra”, afirma Pedro Neto, que fala nessa como uma “hipótese tão absurda, que não está em cima da mesa”.

Já para Bruno Soares Gonçalves, presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear do Instituto Superior Técnico, "qualquer ataque a uma central nuclear civil pode ser considerado um crime de guerra".

O especialista lembra que existe uma resolução da assembleia da Agência Internacional de Energia Atómica desde 2009 que declara que qualquer ataque ou ameaça contra instalações nucleares devotadas a objetivos pacíficos constitui uma violação aos princípios da Carta das Nações Unidas, da lei internacional e dos estatutos daquela organização.

O embaixador António Martins da Cruz, que representou Portugal na NATO, é da mesma opinião, e diz que este é um crime de guerra, mesmo que não seja considerado um ataque nuclear: "Vai contra todas as leis, mesmo não utilizando uma arma nuclear".

Já Daniela Nascimento, doutorada em Política Internacional e Resolução de Conflitos, vê esta questão como subjetiva, mesmo do ponto de vista do Estatuto de Roma. Ainda assim, a professora de Relações Internacionais entende que, numa "interpretação mais ampla de crime de guerra", este ataque poderia ser incluído.

"Depende da iniciativa do TPI, que vai ter de enquadrar este ataque na investigação", explica.

Será este o motivo para a NATO intervir?

A NATO classificou de "imprudente" o ataque russo. No entanto, a organização já reiterou várias vezes que não vai intervir militarmente no conflito a menos que um dos seus Estados-membros seja alvo de um ataque. Mas a hipótese de um desastre nuclear levanta uma questão: é que a libertação de radioatividade àqueles níveis causaria, certamente, consequências para vários países, podendo mesmo chegar a Portugal.

O embaixador António Martins da Cruz diz que esta é uma questão subjetiva. “É um ato muito perigoso, de grande imprudência, que vai contra o direito internacional, mas não é equiparado a um ataque nuclear”, refere, dizendo, no entanto, que esta é uma situação que deve ser seguida com preocupação por parte da NATO.

De resto, como lembra o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, os vários tutelares das pastas de relações externas estão reunidos em Bruxelas, onde o nuclear vai ser um dos temas principais.

Assim, António Martins da Cruz não vê neste ato da Rússia uma razão suficiente para uma reação da NATO no terreno, até porque o rebentamento de um reator nuclear, “sendo um ato condenável, não seria uma agressão direta”.

Daniela Nascimento também não vê uma reação militar do Ocidente a surgir desta situação, até porque "há muita preocupação de evitar a escalada das hostilidades com a entrada do nuclear no debate".

A especialista vê neste ataque russo, além de um objetivo estratégico, uma possibilidade de tentar "introduzir mais receio" no Ocidente, acenando novamente com a bandeira nuclear.

"Não sendo este um ato direto de agressão, não é linear entendê-lo como hostil. A existir, uma reação seria sempre do ponto de vista de um reforço do posicionamento defensivo", acrescenta.

Também a investigadora Sónia Sénica vê esta intervenção como "estratégica e militar", mas alerta que os combates, mesmo que por negligência, podem resultar num acidente na central nuclear.

O que pensa a comunidade internacional?

Se os especialistas têm algumas dúvidas, os políticos parecem estar mais esclarecidos. A embaixada dos Estados Unidos em Kiev afirmou que "é um crime de guerra atacar uma central nuclear", falando em terror por parte de Vladimir Putin.

Antes disso, o primeiro-ministro do Reino Unido pediu que se terminasse de imediato o ataque, que classificou de "gravemente preocupante".

Também a Agência Internacional de Energia Atómica veio condenar o ataque, garantindo que não existe perigo para a população. Esta é, de acordo com os especialistas, a única fonte fiável de informação sobre a situação. Isso mesmo diz Luís Guimarãis, especialista em física nuclear. VÍDEO

Aquela entidade pediu que se terminassem de imediato os ataques ao local, reconhecendo mais tarde que o mesmo já estava sob domínio russo.

Já a Rússia defendeu-se, afirmando, através do porta-voz do Ministério da Defesa, que reagiu a uma "provocação" do lado ucraniano, que teria como objetivo alegar que a Rússia queria provocar um desastre nuclear.

A central nuclear de Zaporizhzhia produz cerca de 25% da energia consumida na Ucrânia, e é considerada pela Rússia como uma zona fulcral na estratégia militar, que tem passado muito pelo corte de comunicações e abastecimento às principais cidades do país. Atualmente, e de acordo com as mais variadas fontes, a central está já sob controlo das tropas russas.

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