"O diabo vive entre nós". No primeiro aniversário da guerra, Zelensky fala sobre a China, a vitória "inevitável" da Ucrânia e até as saudades da família

24 fev 2023, 21:25
Volodymyr Zelensky em conferência de imprensa em Kiev, um ano após a invasão russa. (Roman Pilipey/Getty Images)

Primeiro ano de guerra foi assinalado com uma conferência de imprensa em Kiev

Exatamente um ano após o início da invasão russa, Volodymyr Zelensky sobe ao palco em Kiev. A postura é diferente - mais cansado, de olhar pesado, mas com um feito que poucos esperavam em fevereiro de 2022: a Ucrânia que lidera continua de pé, resistente às investidas russas. 

A conferência de imprensa tem início com uma homenagem aos jornalistas que perderam a vida ao transmitir ao mundo as imagens da guerra. Zelensky e a plateia de jornalistas permanecem em silêncio durante um minuto, de pé e com os olhos fixos no chão. Quando o líder ucraniano recupera o microfone, começa uma troca de perguntas e respostas que, em duas horas, tenta sintetizar os pontos essenciais de uma guerra de um ano. 

Apesar do olhar cansado, as palavras de Zelensky são firmes: a vitória dos ucranianos é "inevitável". Dispõem de todos os recursos para derrotar o inimigo - "a motivação, a certeza, os amigos, a diplomacia" - mas o apoio dos países aliados é essencial neste esforço. Ao contrário da Rússia, cada vez mais isolada pelas sanções impostas pela NATO e países aliados, a Ucrânia não está sozinha nesta guerra: "temos amigos", sublinha Zelensky.

Volodymyr Zelensky em conferência de imprensa em Kiev, um ano após a invasão russa. (STR/NurPhoto/Getty Images)

Apesar do apoio da comunidade internacional, países como a China e a Índia continuam a adotar posições ambíguas no conflito - e, até, a sustentar a economia russa através da importação de petróleo e gás. Zelensky não esquece as regiões menos ativas no conflito e mostra-se disponível para dialogar com os países africanos e da América latina, embora reconheça que a distância geográfica possa dificultar a possibilidade de um encontro presencial.  

Para além destas duas regiões, Zelensky expressou também a intenção de incluir a China e a Índia numa "cimeira de paz" com vista à resolução do conflito. As referências à China não terminaram aqui: ao longo da conferência de imprensa, vários jornalistas recuperaram a questão e insistiram em explorá-la, desde o plano de paz anunciado esta sexta-feira por Pequim a um possível encontro com Xi Jinping. 

O plano do governo chinês para a paz, alcançada por uma via diplomática e não pela batalha no terreno, evita condenar qualquer uma das partes ou invocar algumas das preocupações mais prementes no conflito, como a perda de território ou o armamento da Ucrânia pelos países da NATO. O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo já se manifestou favoravelmente, afirmando concordar com as ideias vinculadas no plano, mas também Zelensky admite estar de acordo com "alguns pontos" - e discordar de outros. 

Depois de um longo período de neutralidade, Zelensky considera "não ser mau" que Pequim tenha finalmente falado sobre a Ucrânia, e elogia que o documento apresentado pelo governo de Xi Jinping respeite a "integridade territorial" do território. E, se a Ucrânia concorda com a China neste ponto, "porque não trabalhar em conjunto?"

Pequim insiste que o seu papel no conflito é "neutro" e "objetivo", perante algum ceticismo da NATO e, sobretudo, dos Estados Unidos. O líder ucraniano prefere manter uma perspetiva otimista e acreditar que a China, ao defender uma "paz justa", não irá fornecer armamento à Rússia. "É a minha prioridade número um, e estou a fazer o meu melhor por preveni-lo", assegura. Uma das medidas a tomar neste esforço de prevenção pode passar por um encontro com Xi Jinping, que Zelensky diz estar nos seus "planos": "Acredito que possa ser benéfico para os nossos países e para a segurança mundial." 

Depois do massacre em Bucha, não há dúvidas: "O diabo vive entre nós"

Poderá a Ucrânia vencer no terreno, com recurso à sua capacidade bélica, ou será necessário negociar com a Rússia? Será que, depois do exemplo da Ucrânia, veremos outros países a fortificar a sua própria defesa? 

Zelensky começou por responder à segunda questão - que, de tão "complicada", exigia uma resposta igualmente complicada. "A guerra na Ucrânia deu origem a uma reconfiguração da NATO", explica, e os países aliados compreendem agora que os sistemas de segurança são facilmente corrompíveis por forças russas e pró-russas. E não se refere apenas a um reforço no armamento, como se apressa a explicar: depois de vários ataques ao redor do mundo perpetrados por grupos favoráveis ao regime de Vladimir Putin, "há muito dinheiro a gastar em cibersegurança".

A primeira questão, relativa às negociações, pode ser mais direta e não tão "complicada" - mas a resposta exige igual seriedade. Zelensky é firme: "Com o início da invasão russa, "ninguém foi comprar flores - foram comprar armamento e tecnologia." Na fase atual da guerra, os russos "nem sequer tentam esconder os seus ataques" e a brutalidade cometida contra civis e crianças. Desta forma, só será possível chegar a um "acordo" quando a Rússia abandonar o território ucraniano e parar de vitimar civis e destruir infraestruturas. Mas, mais do que negociações e o fim dos bombardeamentos, o que o povo ucraniano exige agora é a total independência. Zelensky finaliza: quando a Rússia cessar os ataques, será a própria Ucrânia a decidir como a guerra terminará. 

O pano de fundo de sangue e violência prossegue há um ano, sem sinais de abrandar, mas é o massacre de Bucha que sobressai na memória de Zelensky quando questionado sobre o momento mais negro do conflito. Março de 2022: um rasto de centenas de corpos mutilados espalhados pela cidade, depois da retirada das forças russas. "O que vi foi horrível", assume o presidente ucraniano, de semblante carregado. "O diabo não está algures debaixo de nós. O diabo vive entre nós." 

Volodymyr Zelensky fala sobre Bucha, para depois recordar que o mal não conhece fronteiras. Confrontado por um jornalista da ABC News com um questionário conduzido nos Estados Unidos, que dá conta de que o número de norte-americanos que se opõe ao envio de apoio económico à Ucrânia está em tendência crescente, Zelensky alerta: se os Estados Unidos abandonarem a Ucrânia, vão perder o seu "papel de liderança global". Hoje é a Ucrânia o palco da guerra na Europa; amanhã, se a Rússia não for parada, serão os "filhos e filhas" dos aliados a combater pela sobrevivência.

Talvez não "herói", mas uma figura indelével na história da Ucrânia

A vitória da Ucrânia é "inevitável", garantia Zelensky no início da conferência de imprensa. Mas será possível que a vitória seja mais demorada do que o previsto? Se a Ucrânia não conseguir derrotar a Rússia no próximo ano, qual poderá ser o motivo?

A discussão é séria, mas a resposta ao jornalista britânico é lançada em tom de brincadeira e suscita um momento descontraído entre a audiência. "Onde é que estão os meus caças Typhoon? Por favor, pergunte ao meu amigo Rishi Sunak." 

O presidente ucraniano reafirma que o fornecimento de equipamento militar é essencial ao sucesso no campo de batalha: quer na defesa dos "bombardeamentos constantes" em cidades como Bakhmut e Kherson, quer na organização de contraofensivas que, garante, se limitarão aos territórios ucranianos ocupados pelos russos e não ultrapassarão as fronteiras entre os dois países. 

De figura incógnita para grande parte do mundo, Zelensky imortalizou-se no panorama político internacional em apenas um ano. Ainda assim, hesita em autointitular-se de "herói" e atribui a resistência inesperada da Ucrânia aos militares e civis. "E graças a mim, um pouco" - o seu nome inscrito em cada manchete desde o dia 24 de fevereiro de 2022 contribuiu "para alguma coisa", como acaba por reconhecer. "Recuperámos Kiev, temos armamento da NATO", contextualiza, celebrando as pequenas vitórias que se devem, parcialmente, aos seus esforços. "Estamos a lutar, ainda." 

O foco em Zelensky, na reta final da conferência de imprensa, permite que se desvende um pouco da pessoa que se esconde por detrás da faceta política: o homem, cidadão, marido. Proclama o amor pela mulher e pela família e lamenta não conseguir ver os pais tão frequentemente como desejaria. Ainda assim, conclui de olhos embargados: espera que estejam "orgulhosos" dele. 

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