As “populações” do Donbass, existem?

20 abr 2022, 07:50

Defendi que se deve ter algum cuidado (ia dizer, pudor) com a utilização da palavra genocídio para descrever a atual situação na Ucrânia. Defendi, portanto, que me parece pouco avisado o anúncio público do convite feito pelo Presidente da Ucrânia a Emmanuel Macron para que visite o seu País para confirmar (uma vez que tem dúvidas) que na Ucrânia “está” a acontecer um genocídio. Defendi que é importante que, o mais rapidamente possível, a Ucrânia ratifique, sem reservas, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, para dessa forma ganhar uma legitimidade intocável para exigir, até ao fim, a responsabilização de todos os que possam ter cometido crimes internacionais em território ucraniano. Defendi que é estranho e incoerente ver alguns Estados a invocarem alto e bom som a prática pela Rússia de crimes internacionais (coisa que, tudo indica, é verdade), e a sua responsabilização pelo TPI ou por um tribunal internacional ad hoc, constituído para o efeito, para julgar, além de Vladimir Putin, todos os que tiverem cometido crimes internacionais, sem, por outro lado, aceitarem a jurisdição do TPI ou, até, a combaterem ferozmente. Isto foi o suficiente para, de imediato, ser apodado de putinista.

Não há pachorra.

Introdução (e um elogio ao jornalismo em tempo de guerra)

O distanciamento larvar entre ucranianos “étnicos” e “russófonos”, construído no imaginário político como “hostilidade” explícita entre dois grupos (sobretudo, e por razões evidentes, a partir de 2014) é uma das maiores tragédias da Ucrânia. É algo que não desaparecerá (e tenho dúvidas que se atenue sequer) com um cessar-fogo ou tratado de paz e a retirada consequente das forças invasoras; ou, ainda pior, com um perpetuar do conflito naquele território. A questão vai afrontar-nos cada vez mais, uma vez que a agressão da Rússia está, no terreno, mais concentrada no Donbass. A tal batalha, a ofensiva russa contra o Donbass que vai ser determinante para as perceções sobre o resultado do conflito. Considero, porém, que a Rússia já perdeu, porque ficou muito aquém daquilo que tinha por adquirido, estou além disso convencido, pelos ritmos atuais, que nem o Donbass será (todo) seu.

Por outro lado, é de prever que sobre o Donbass tombe um manto de escuridão.

Esta é a batalha final, o termo fez escola. Vai ser feia, suja e cruenta, vão ser cometidas barbaridades indignas. Talvez me engane, mas não haverá muitos jornalistas a reportar de lá e muito menos a poderem circular livremente. Nessa altura, vamos perceber como, com todos os defeitos que possa ter, o jornalismo ainda é o que a verdadeira linha vermelha que nos separa da ignorância, da manipulação e da propaganda cada vez mais sofisticadas e prontas a embalar. Vê-se, fosse ainda necessária a demonstração, como o mito do jornalismo cidadão não resiste a este tipo de situações.

Se a verdade do conflito já não era fácil, passará a ser mais opaca nestas circunstâncias. São tempos, parece, em que é obrigatório dizer-se sim, em que o “mas” e o “porém” estão proibidos. Se for assim, se for para isso, comprem charters de papagaios. Bem treinados, dizem tal e qual o que quisermos que repitam (e nem comem muito).

Um Estado, dois grupos

É talvez tempo que se trate do Donbass um pouco mais do que só para referir um território que desencadeia os apetites da Federação Russa. É tempo que que se fale, não só daquela parcela do território ucraniano, mas, além disso, das pessoas que ali vivem. Realmente, na história mais recente da independência ucraniana, a “divisão” entre dois “grupos” principais dentro da população ucraniana acobertou-se, institucionalmente, nos resultados eleitorais sucessivos, ganhava um, ganhava o outro. Sempre foi bem nítida a divisão entre os mais “Ocidentais” e os mais do “Leste”, sem que houvesse uma vontade que se vislumbrasse de acomodar e pacificar aquelas “teimosias” identitárias. Este relativo equilíbrio quebrou-se em 2014, quando a Rússia promoveu a anexação da Crimeia. A consolidação da identidade nacional ucraniana fez-se, tanto por oposição à Rússia como, além disso, contra tudo aquilo que a recordasse. Sim, o Donbass estava ali, como uma ferida aberta que ninguém tentou fechar.

A Rússia cometeu, nessa altura, vários erros que estão a produzir os seus efeitos em 2022, com a segunda intervenção militar em menos de dez anos na e contra a Ucrânia. Só que, não viu a Rússia que os tinha cometido, mas também não os detetou quase ninguém. Desde logo, a maioria da sociedade ucraniana acreditou que, doravante, a Rússia e o que ela representava eram inimigos da Ucrânia, ameaças à sua próxima existência e ambições. Já não se tratava de opções entre maior proximidade com a Rússia ou com a União Europeia. O ocidente passou a ser a escolha. Ponto.

Depois, a maioria da população rompeu, de forma funda, com o outro grupo, agora ultraminoritário. Se a convivência não era fácil, ficou mais difícil e agreste, com a agravante da presença “russa”, nem carne nem peixe, nas parcelas mais a leste do Donbass.

Em terceiro lugar, pouco habituado a eleições, pelo menos daquelas que respeitam os padrões internacionais bem conhecidos, Vladimir Putin ficou com a Crimeia, onde os ucranianos russófonos (digamos assim) eram amplamente maioritários. Mas, com essa anexação, descapitalizou de vez o grupo dentro da Ucrânia, e, nomeadamente, em quaisquer processos eleitorais subsequentes. A partir da anexação da Crimeia, a vitória eleitoral, sem grandes dificuldades, passou a estar garantida em favor do grupo “ocidental” dos ucranianos “étnicos” (detesto a expressão, mas não há outra). Por isso, quando recomeçou a invasão da Crimeia, a “nova” identidade ucraniana, alicerçada em muito na oposição e na raiva contra a Rússia, estava tão radicalizada e surpreendeu tanto o invasor. Achou que ia ser como antes; foi, bem ao contrário, um choque de identidades fortíssimo e especialmente violento e determinado.

O papel da proteção da integridade territorial (mas só isso não chega)

Como regra de convivência mínima, os Estados e outros atores internacionais têm a obrigação de cumprir o básico.

O princípio da integridade territorial integra esse básico, assim como também básica é a obrigação de, dentro de qualquer Estado, se respeitar o direito de autodeterminação interna; e de exigir a Estados terceiros que, através de variadas formas de ingerência, acicatem e excitem essa oposição intergrupal.

A autodeterminação interna dos nossos dias vai desdobrar-se em dois aspetos, ambos condição de paz e de consolidação de uma comunidade política: o respeito por um direito à democracia; e o respeito, promoção e garantia dos direitos dos grupos distintos da maioria (esses direitos, tanto na sua expressão individual como grupal). Aqui, entram tanto os direitos das minorias étnicas, linguísticas, religiosas e culturais como, no que para o caso não tem muita relevância, os direitos dos povos indígenas.

Na Ucrânia, o caldo foi ficando mais denso (como se toda esta complicação inicial não bastasse), por pressões recíprocas de alguns países ocidentais (venham, estamos à vossa espera!) e de uma Rússia que fez as coisas mais à bruta (venham, vocês são nossos!). A Ucrânia não foi diligente o suficiente para promover essa integração em que todos participassem numa unidade nacional, mas há todo um historial constante de intervenção russa que, no essencial, se dedicou, aí com diligência máxima, a impedir ou torpedear aquela unidade.

Lapsos reveladores

Escrevi uma coisa há dias, que foi lapso inconsciente, mas revelador. Referi-me aos “ucranianos” e, logo a seguir, às “populações” do Donbass. Um erro, refém de conceitos que vamos replicando de forma cada vez mais mecânica e irrefletida. Mas assim se vai ajudando a construir uma mensagem que outros até já dão por adquirida. Não tenho por certo que esta construção seja minimamente razoável.

Há os ucranianos, mesmo ucranianos; e os outros, as “populações” a oriente, mais dadas a outros amores e influências, que é raro vermos nas televisões, que falam pouco, como se estivessem a meio de algo, entre dois mundos opostos. Com alguma atenção, vemos que a liderança ucraniana fala muito mais na defesa do Donbass, e bastante menos na defesa e proteção dos ucranianos do Donbass.

E, no entanto, até na prática, a resistência surpreendente (ou a não adesão afetiva) de pelo menos parte das tais “populações” contra as forças russas indicia que a construção do Estado ucraniano poderá ser mais forte do que alguns supõem. Mesmo no Donbass, antiga “Novorossiya” (Rússia Nova) da mitologia imperial russa, o seu “coração”

Se é assim, haverá uma explicação para o meu lapso e, já agora, para a circunstância de, nos discursos oficiais, ninguém falar com simpatia ou, pelo menos, com empatia, das tais “populações” do Donbass. Porque é que ninguém se refere aos ucranianos do Donbass, ou aos ucranianos da Crimeia?

É bastante fácil responder: porque quase todos fazem uma associação mais direta entre eles e Moscovo do que entre eles e Kiev, como se fossem culpados, por omissão, pelos factos de 2014.

Os que vivem na Crimeia, então, desapareceram. É como se só restasse um apêndice gorducho no mapa, como se, na Crimeia, tivessem deixado de viver ucranianos sem, por um passe de mágica, terem ali começado a viver russos. Ora, há relatórios indiscutíveis que, preto no branco, dão conta da continuação de violações de direitos humanos no território. E nós? E todos? Nada.

A responsabilidade por esta confusão ou miscigenação de identidades é muito maioritariamente da Federação Russa, mas não é só dela (isto não tem nada a ver com uma relativização da agressão russa). É também da relativa incapacidade em combater a ingerência cultural, política e económica da Rússia – destinada a manter uma relação de fidelidade linguística, religiosa, cultural e até de História – com aqueles e aquelas que passaram a elementos de uma minoria onde antes representavam a esmagadora maioria num todo mais alargado. De facto, os russos, russófonos ou russófilos do Donbass eram, antes da independência da Ucrânia, elementos da maioria (na União Soviética). Deixaram de o ser, e um número significativo de entre eles não ficou impermeável, nem isso era possível ou expectável (e muito menos censurável), ao canto da sereia do vizinho do lado, poderoso, magnânimo e dominante. Mas continuaram a ser ucranianos. Esse património invisível, mas tão poderoso, não pode perder-se.

Por isso, o Donbass é muito mais do que um território. É uma comunidade que tem direito a ser protegida, não é só “gente” que está a ocupar aquele espaço.

Um futuro muito “puro”, mas menos plural

Não sabemos o que tempo nos vai trazer, só o que gostaríamos que trouxesse. Uma Ucrânia em paz, a reconstrução de um País depois da tempestade da guerra, a sua integridade territorial restabelecida. Não parece é que possam as pessoas ficar como estavam. Todos, com a memória de um conflito a que nos estamos a habituar, mas que evidentemente não sofremos na pele. Muitos, por outro lado, no Sul e no Donbass, podem nem sequer poder ficar onde vivem. Conseguindo impor-se a retirada das forças russas da Ucrânia, a vida naquele território ficará difícil para aqueles que sejam tratados como os que colaboraram com o agressor. Conseguindo a Rússia impor, ainda que só no plano dos factos (nunca do direito) a sua presença em parcelas da Ucrânia, a vida ficará ainda mais difícil para aqueles que sejam tidos como ucranianos “étnicos”.

A invasão russa acentuou esta pressão para a “purificação”, e talvez a tenha tornado inevitável. Qualquer que seja a paz na Ucrânia, será (espera-se) o mesmo território, mas com uma identidade mais única, menos diversa, como aliás se foi vendo desde 2014. Olhando a Ucrânia a partir da Ucrânia e tendo como referência o que é russo, é provável que venhamos a ter os ucranianos, de um lado. E o inimigo, do outro. Este foi mais um terrível contributo de Vladimir Putin e do seu desvario ucraniano.

Fáceis são os conselhos num contexto de independências construídas a pulso e, muitas vezes, no sofrimento. É fácil dar lições de tolerância quando se ouve a Rússia a empurrar a porta (ou, como na Ucrânia, a arrombá-la), a entrar sem ser convidada e sem conseguir aceitar que deixou de ser senhora daqueles territórios. É fácil, sim. Mas a defesa do Estado e da sua integridade territorial será muito mais sólida se as várias componentes sentirem que são parte integrante do País, da grande comunidade a que se chama o “povo”. Ou, então, há milhões que deixarão de ser parte do “povo” e terão de pegar nas trouxas e apontar à estrada.

No caso da Ucrânia, mas não é caso único, a dificuldade é aumentada por um facto da História e um facto territorial. Realmente, os ucranianos do Donbass (viram como é fácil dizer assim?) e os ucranianos da Crimeia serão, talvez em maior número, falantes de russo e também, em número significativo, russófilos; além de estarem concentrados territorialmente. Mas, numa democracia, isso não impede que possam realizar as suas aspirações individuais e coletivas sem que isso redunde em conflito ou inimizade.

Com a intervenção militar da Rússia em 2014, e com a invasão de 2022, vários destes fios quebraram-se. De vez?

Como se não bastasse a violência na Ucrânia, ou por causa da violência na Ucrânia, li um livro. Carregado de guerra, não deixa de ser um manifesto sangrento contra ela. É a história de um atirador senegalês durante a Grande Guerra, a quem morre o “mais que um irmão”, o “irmão de alma”, a seu lado, agonizante durante horas e com as tripas de fora, a mão de um na mão do outro, pedindo-lhe uma, duas, três vezes, que o degole para assim adormecer em paz. A guerra pode enlouquecer de dor, pode enlouquecer, pode matar por dentro, ponto final.

Não digo mais, seria como contar o fim de um filme. Deixo só um excerto de uma obra de tal ordem que, quando terminei de ler, por um segundo pensei que era impossível que o autor fosse de agora. Era impossível, ele esteve lá, a assistir:

“Ah! Mademba Diop, meu mais do que irmão, levou demasiado tempo a morrer: foi muito, muito difícil, nunca mais acabava, de manhã pela madrugada até à noite, as tripas de fora, o lado de dentro do lado de fora, como um carneiro desmanchado pelo talhante ritual após o sacrifício. Ele, Mademba, não estava ainda morto e já tinha de fora o lado de dentro do corpo. Enquanto os outros se tinham refugiado nas feridas hiantes da terra ditas trincheiras, eu fiquei ao pé de Mademba, deitado contra ele, a minha mão direita na sua mão esquerda, a olhar o céu azul frio sulcado de metal. Pediu-me três vezes que acabasse com ele; recusei três vezes.”

David Diop, “De noite todo o sangue é negro”, Relógio d’Água, 2021, p. 12

O “combate final” do Donbass pode ser assim. Até pode ser pior, com imensos não combatentes, mulheres, crianças, de permeio, atacados, violados, usados como escudo. Julgávamos que tínhamos andado muito desde 1914-1918. Afinal, nunca saímos do sítio.

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