«O Shakhtar mudou-se para casa do rival para poder ter paz»

23 fev 2019, 17:25
Vítor Severino

Vítor Severino, campeão ucraniano em 2020, fala ao Maisfutebol sobre um clube desterrado desde que eclodiu o conflito na região de Donbass

Shakhtar já não é apenas o nome do clube mais bem-sucedido no futebol ucraniano nas últimas duas décadas. Desde 2014, tornou-se também num símbolo do conflito na região do Donbass.

Quando a guerra eclodiu no leste do país, o emblema revitalizado desde meados da década de 1990 pelo milionário Rinat Akhmetov teve de abandonar Donetsk.

Desde então, esteve sediado em Lviv, onde nunca se sentiu em casa, mudou-se para Kharkiv, até que na última época assentou em definitivo na capital, para jogar no Olímpico de Kiev.

A guerra levou o «clube dos mineiros» para «território inimigo». Um paradoxo isto de só em casa do histórico rival Dínamo ter encontrado paz, sublinha Vítor Severino.

O português de 38 anos, que se sagrou campeão da Ucrânia em 2020, na equipa técnica de Luís Castro, fala ao Maisfutebol, a partir do Qatar, sobre as tensões de um país que deixou há alguns meses e sobre a realidade de um clube desterrado, que deixou para trás um estádio-modelo do Euro 2012: «Há centenas de funcionários do Shakhtar deslocados, falam da Arena Donbass como se fosse o Coliseu de Roma.»

Arena Donbass, em Donetsk, antigo estádio do Shakhtar

MAISFUTEBOL: Desde 2014 que o Shakhtar teve de abandonar Donetsk, devido ao conflito na região do Donbass. Como foi a experiência de trabalhar num clube desterrado?

VÍTOR SEVERINO: Depois de Lviv e Kharkiv, o Shakhtar agora está em Kiev, tal Olimpski Donetsk, ou o Zorya Luhansk, que teve de se mudar para a cidade de Zaporizhzhia. Nas duas épocas em que estivemos na Ucrânia vivemos duas realidades diferentes. No primeiro ano [2019/2020], o clube já estava sedidado em Kiev, mas jogava em Kharkiv [a cerca de 450 quilómetros]. Tínhamos de viajar de avião para fazer os jogos em casa. Fizemos mais de cem voos. Era uma loucura em termos logísticos. No segundo ano, mudámo-nos em definitivo para a capital e passámos a dividir o Estádio Olímpico com o Dínamo de Kiev.

Como era essa loucura em termos logísticos?

O clube está deslocado, os funcionários estão deslocados... Estamos a falar de centenas de pessoas que vieram de Donetsk quando eclodiu o conflito. Entretanto, o clube passou a ter um novo centro de estágios nos arredores de Kiev, num antigo complexo desportivo soviético, que foi remodelado e era a nossa casa provisória.

Como é que essa mudança provocada pelo conflito afetou a relação com os adeptos?

Houve sobretudo gente mais nova que se deslocou daquela região mais próxima da Rússia para Kiev. A grande base de apoio do Shakhtar está no Donbass, mas nos últimos dez anos houve um fenómeno interessante: por ser um clube vencedor, muitas crianças e jovens foram surgindo no resto do país. Em Kiev já se vê isso, ainda que não exista comparação com o Dínamo, que é o clube nacional. Um jogo no Estádio Olímpico tem muito mais adeptos do Dínamo de Kiev do que do Shakhtar.

Não encontrou essa resistência no resto da Ucrânia pelo facto de o Shakhtar ser um clube conotado com uma região de grande influência russa?

Senti um impacto positivo no primeiro ‘dérbi’ que nós fizemos no Olímpico de Kiev. Em vez de sairmos de autocarro, disseram-nos para sair do estádio no nosso carro, ir de táxi ou até a pé para casa. Achei aquilo estranho. Mas saímos de um jogo que estava a ferver lá dentro e passámos tranquilamente pelo meio dos adeptos do rival: miúdos com cachecóis do Dínamo a pedirem para tirar fotos e para dar autógrafos. Por outro lado, também soube de casos de grande animosidade.

Em que situação em concreto?

O Dario Srna [antigo internacional croata, agora diretor desportivo do clube, que representou durante 15 épocas] contava-me que quando o Shakhtar se sediou em Lviv havia uma enorme resistência por parte dos locais. Estamos a falar do extremo oposto do país. Na zona de Donetsk e Luhansk toda a gente fala russo. Em Kiev fala-se mais russo, mas o atendimento em locais públicos é obrigatoriamente em ucraniano. Em Lviv, que é próximo da Polónia e é uma cidade mais europeia, já só se fala ucraniano. Levam a mal que se fale russo. As pessoas do Shakhtar recordam que nunca foram bem-vindas ali. O clube era muito criticado por ter saído de Donetsk para ir para Lviv. Foram tempos difíceis. Aliás, o clube teve de sair de lá.

A mudança para Kiev deve-se a essa falta de hospitalidade?

Não foi o único motivo, mas influenciou muito. O Dario, com quem conversava muito, dizia-me que a grande diferença era de que em Kiev o Shakhtar podia ter mais paz. Até é paradoxal, porque passou a estar em casa do grande rival.

O Shakhtar é visto como um emblema russófilo?

O clube procura ser neutro nesse aspeto. Quer sobretudo afirmar-se como um clube nacional e uma referência no futebol europeu em muitos departamentos. Porém, mesmo alguns amigos meus ucranianos tinham simpatia pela posição russa na questão de Donetsk e Luhansk. Agora, sinto claramente que as novas gerações são mais pró-União Europeia, em defesa dos valores nacionais, da língua ucraniana, enfim, da independência. Por vezes, o futebol servia para descarregar alguma animosidade. O que se sentia em Lviv, havia noutros estádios: associarem o Shakhtar ao conflito naquela região, que neste momento é uma autoproclamada república.

Rinat Akhmetov, o dono e presidente do Shakhtar, é além de uma das maiores fortunas da Ucrânia uma figura com um percurso controverso. Que ideia tem sobre ele?

Algumas pessoas consideram-no controverso, mas há também quem tenha alguma simpatia pela figura, sobretudo por estar ligado a causas sociais. Investiu milhões no combate à pandemia, tem uma fundação para promover o desporto em todo o país, além do Shakhtar, que é uma das suas bandeiras.

Além da falange de adeptos, para trás ficou também a Donbass Arena, um dos grandes palcos do Euro 2012.

99 por cento dos funcionários do Shakhtar são de Donetsk e todos eles falam da Donbass Arena como se fosse o Coliseu de Roma. Falam daquele estádio e da própria cidade com um carinho enorme.

Donbass Arena bombardeada em 2014 (Reuters)

Ao longo deste tempo essas pessoas puderam lá voltar?

Alguns, sim. Se comprovarem que têm lá família, com muitas medidas de segurança, podiam entrar em Donetsk e voltar.

Pelo que viu, há alguma esperança num regresso a Donetsk?

O próprio presidente Rinat Akhmetov nunca mais foi a um estádio. Diz que só volta quando o Shakhtar voltar a jogar na Donbass Arena. A maior parte das pessoas a quem perguntava dizia que gostava muito de voltar, mas não acredita que isso seja possível.

Acredita na resolução do conflito entre Ucrânia e Rússia?

Acredito que é muito difícil de se resolver. Segundo se dizia na Ucrânia, questão de Donbass é mais complexa até do que a da Crimeia [anexada pela Rússia em 2014]. As entradas estão vigiadas, há muitos pontos de controlo com militares. Não é possível um estrangeiro ou um ucraniano que não tenha lá família entrar. Não havendo resolução, clubes como o Shakhtar, o Olimpik ou o Zorya jamais voltarão a casa.

O mapa do conflito entre Ucrânia e Rússia

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