O fim da Segunda Guerra Mundial e as medidas implementadas pelos aliados trouxeram um dos mais longos períodos de paz no continente europeu. Oitenta anos depois, a Ucrânia precisa - à sua escala - do mesmo. Que, à sua escala, significa mais do dobro do Plano Marshall. E significaria também o julgamento à Nuremberga dos políticos e generais russos - "impossível"
Berlim era um campo de ruínas em maio de 1945. Mais de 70% dos seus edifícios estavam destruídos e o silêncio das ruas, outrora vibrantes, era quebrado apenas pelo rumor dos escombros. Nos arredores da cidade, em Karlshorst, um marechal alemão, Wilhelm Keitel, entrou numa sala sob o peso da derrota. Com seu bastão e monóculo, assinou a rendição incondicional da Alemanha diante dos olhares firmes dos oficiais soviéticos e aliados. Às 23:01 de 8 de maio, as armas começaram a calar-se e a Europa vislumbrava a paz pela primeira vez em muitos anos.
De Londres a Nova Iorque, milhares foram para as ruas celebrar o Dia da Vitória, embora a guerra só terminasse meses depois, com a rendição do Japão em setembro. A devastação deu lugar à reconstrução. Naquela altura, ninguém o conseguia prever, mas estavam prestes a ser implementadas medidas que lançariam a Europa no período mais pacífico da sua história. Oitenta anos depois, a Ucrânia precisa de medidas semelhantes.
Mas regressemos a 1945.
O silêncio das armas foi só um primeiro passo. Milhões de refugiados viviam em campos temporários e as instalações industriais de vários países estavam dizimadas. A Europa precisava de mais do que a paz, precisava de um futuro. Em 1948, os Estados Unidos da América lançam o Plano Marshall, um programa ambicioso que injetou cerca de 13 mil milhões de dólares (o equivalente a 135 mil milhões em 2024) em ajuda económica e assistência técnica para recuperar os países mais afetados. Esta ajuda foi enviada ao longo de quatro anos.
O plano americano foi um sucesso. As fábricas alemãs foram recuperadas, os portos italianos voltaram a funcionar e as infraestruturas europeias foram reerguidas, criando empregos e estabilizando os países que estavam à beira do colapso. Na Alemanha, o efeito ficou conhecido como "Wirtschaftswunder", o milagre económico. O apoio americano foi mais do que um impulso e acabou por ser crucial para promover a cooperação e integração entre antigos inimigos, como a Alemanha e a França, que mais tarde viriam a criar a Comunidade Económica Europeia.
"O plano Marshall foi bastante importante para a Europa continental, que se encontrava num cenário de profunda devastação depois das invasões nazis. O plano não só reergueu a Europa como também assegurou a posição americana como a principal potência ocidental e acabou por criar as bases para a paz entre dois inimigos históricos", afirma Carlos Martins, investigador da história do fascismo e da extrema-direita.
Em 2025, a Ucrânia enfrenta muitos dos desafios com que a Europa se defrontou no pós-guerra. Cidades que ficam perto da frente, como Kharkiv ou Kherson, são frequentemente bombardeadas e têm vários bairros, fábricas e infraestruturas críticas destruídas. Só que a intensidade do conflito e os ataques de longo alcance russos repetem-se um pouco por todo o país e chegam até às cidades mais seguras da retaguarda. A dimensão dos danos é elevada e o Banco Mundial estima que o custo total da reconstrução da Ucrânia seja de 506 mil milhões de euros, mais do dobro do Plano Marshall.
A principal área afetada é mesmo a habitação. Segundo a Kyiv School of Economics, este setor sofreu danos estimados em 60 mil milhões de euros, com mais de 236 mil casas a serem destruídas ou danificadas pelos ataques russos. Para o governo ucraniano, este problema pode tornar-se ainda maior no pós-guerra, caso um acordo de paz resulte no regresso de milhões de refugiados ucranianos que saíram do país no início da guerra. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados estima que são mais de 6,9 milhões de pessoas.
Apesar de a guerra ainda não estar concluída, já existem algumas iniciativas com o objetivo de financiar o esforço de reconstrução ucraniano. A União Europeia, com o programa Ukraine Facility, mobiliza 50 mil milhões de euros até 2027 para apoiar o esforço para a recuperação das infraestruturas ucranianas. No final de abril, os EUA assinaram um acordo para a exploração de minerais na Ucrânia e criaram o United States-Ukraine Reconstruction Investment Fund, que vai canalizar receitas de recursos para a recuperação económica ucraniana. Mas, ao contrário do Plano Marshall, o dinheiro da reconstrução não vem dos recursos ucranianos.
No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a União Soviética surgiam como as duas grandes potências, criando um mundo bipolar. Para José Filipe Pinto, professor catedrático especialista em Relações Internacionais, essa dinâmica criou os elementos necessários para que Washington olhasse para o investimento na prosperidade dos países da Europa ocidental como um fator fundamental para conter o comunismo. Só que o mundo hoje é diferente. E esse papel pode não estar destinado aos americanos.
"A Europa recuperou no pós-guerra por se ter aliado a um dos centros de poder da altura, os EUA. O que vai acontecer é algo muito semelhante, com a reconstrução ucraniana a ser conseguida através do esforço europeu. A UE vai estar para a Ucrânia assim como os EUA estiveram para a Europa no final da Segunda Guerra Mundial."
O fim da guerra na Europa trouxe também à luz muitos dos crimes que foram cometidos pela liderança alemã ao longo de seis anos de guerra. A opinião pública estava chocada não apenas com a dimensão das mortes causadas pelo conflito - estima-se que morreram entre 70 milhões a 85 milhões de pessoas, cerca de 3% da população mundial em 1940 - mas também pela forma como muitas destas aconteceram. Ao público ocidental chegavam as imagens dos campos de extermínio nazis e o mundo ficava a conhecer o Holocausto, que tirou a vida a seis milhões de judeus perseguidos em toda a Europa pelo regime de Adolf Hitler.
Era necessário fazer justiça e responsabilizar os responsáveis por estes crimes. Um ano após o fim da guerra, os países aliados criaram o Tribunal Militar Internacional de Nuremberga para julgar os líderes nazis de crimes contra a Humanidade. Durante este processo, que durou um ano, 22 homens próximos de Hitler foram a julgamento, com 19 a serem considerados culpados e condenados pelas atrocidades cometidas. O veredicto do tribunal declarou que o crime de planear e travar uma guerra de agressão era o "crime internacional supremo", pois continha "em si o mal acumulado de todos os outros" crimes.
"Os Julgamentos de Nuremberga foram fundamentais. Foram nestes julgamentos que se cimentou a ideia de que os crimes cometidos pelos nazis eram absolutamente indefensáveis. Foi importante para que o público percebesse a gravidade dos crimes para que estes não fossem repetidos e evitou que a Alemanha se tivesse sentido vítima, como na Primeira Guerra Mundial, o que acabou por ser explorado por atores políticos de extrema-direita para subir ao poder", explica Carlos Martins.
A Ucrânia enfrenta um desafio semelhante em 2025. Volodymyr Zelensky garante que Kiev documentou mais de 183 mil crimes de guerra russos desde que a Rússia iniciou a invasão de grande escala, em fevereiro de 2022. O Tribunal Penal Internacional (TPI) investiga a Rússia por vários crimes de guerra, incluindo os massacres em Bucha, onde centenas de civis foram encontrados mortos em 2022, muitos deles com mãos atadas e com sinais de tortura. O relatório da ONU encontrou "fortes indícios" de execuções sumárias de 441 civis nessa localidade. A Rússia nega as acusações ucranianas de que os seus soldados possam ter cometido atrocidades.
Esta sexta-feira, ao mesmo tempo que Vladimir Putin assistia ao desfile do Dia da Vitória ao lado de alguns dos seus principais aliados, representantes de cerca de 40 países encontravam-se em Lviv, na Ucrânia, para anunciar o apoio à criação de um tribunal especial construído de raiz para poder processar o crime de agressão contra a Ucrânia, tal como o Tribunal de Nuremberga fez com os líderes nazis. Este acordo acontece depois de dois anos de trabalho de bastidores entre assessores jurídicos de vários países. Inicialmente os EUA estiveram envolvidos neste processo, mas a nova administração americana decidiu afastar-se do processo.
Ainda assim, a condenação dos responsáveis por crimes de guerra na Ucrânia promete ser um processo complexo. Principalmente porque nem os Estados Unidos nem a Rússia reconhecem a jurisdição do TPI. Não só os EUA não são signatários como atualmente a administração de Donald Trump autorizou a aplicação de sanções económicas e restrições de viagem contra o tribunal e os seus membros, devido às suas investigações do TPI contra cidadãos americanos e aliados como o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu.
"Muito dificilmente, com o mundo dividido, o Tribunal Penal Internacional vai ter força para julgar os crimes que caem na sua alçada. As grandes potências não reconhecem o seu estatuto e não há ninguém capaz de fazer a Rússia cumprir essas regras. Vai haver muitas condenações públicas, mas este novo mundo vai tornar impossível um julgamento como o de Nuremberga", defende José Filipe Pinto.
Mas a paz é impossível sem justiça, defende Volodymyr Zelensky. As lições do passado, desde o Plano Marshall à busca por justiça em Nuremberga, oferecem um rumo de esperança para a Ucrânia. Só que o caminho para a reconstrução e para a paz é complexo e incerto, com feridas difíceis de sarar após mais de três anos de uma guerra que fez centenas de milhares de vítimas. A capacidade de encontrar uma solução que permita à Ucrânia reerguer-se e construir um futuro sem guerra vai necessitar de alguma criatividade.
"A História não se repete, revisita-se. E o que acontece é que estamos numa situação em que não temos precedente. Existem alguns elementos em comum, mas esta é uma realidade nova. Vai ser preciso ter criatividade, não podemos aplicar receitas antigas para problemas novos", conclui José Filipe Pinto.