A contestação cresce dentro de portas, também à custa das sanções encontradas pela comunidade internacional. Vladimir Putin parece estar sozinho na ideia de invadir a Ucrânia. Mas é preciso esperar que o tempo e os interesses de quem o apoia confirmem as suspeitas
Com os receios da pandemia, Vladimir Putin instala-se na sua residência nos arredores de Moscovo. O presidente russo impõe duras regras às visitas. É nesta solidão desejada, que começa a trabalhar naquela que é vista como a base para a decisão de invadir a Ucrânia.
Um dos frutos desse isolamento é um longo ensaio, publicado no verão de 2021, onde confirma as pretensões imperialistas. “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, assim se chama. Putin escreve que os dois lados são “um povo”, argumenta que a Ucrânia é um território criado artificialmente. E conclui: “Estou confiante de que a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”.
O ensaio é encarado como fundamental para o Kremlin, ao ponto do ministro da Defesa o adicionar à lista de leitura dos funcionários que servem o estado russo, incluindo os militares que agora combatem na Ucrânia.
Mas, perante o conflito, a contestação aumenta. Nas ruas de diferentes cidades russas, há cidadãos que contestam as políticas do próprio presidente, arriscando a prisão ao pedirem o fim da guerra – Putin chama-lhe uma “operação militar especial”. E a comunidade internacional responde a cada dia com novas sanções e com o envio de material de guerra para a Ucrânia.
Putin parece isolado, mas não com o mesmo grau de desejo com que se resguardou da covid-19. A visão do ocidente tem-no transformado num pária que, perante uma investida que não está a ser tão efetiva como planeado, acena com novas ameaças. As armas nucleares, a postos, é a mais recente. Fraqueza ou raiva? As opiniões dividem-se.
“Ele tornou-se num homem isolado. Mais isolado que Estaline”, diz ao The New York Times Gleb O. Pavlovsky, antigo conselheiro de Putin.
Um regime que treme, mas não cede
Putin instala no Kremlin um túnel desinfetante, para se proteger do coronavírus. Antes de visitar o homólogo russo, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro faz cinco testes. Em fevereiro, o francês Emmanuel Macron recusa esse passo e acaba do lado oposto de uma longa mesa de reuniões.
Distância semelhante verifica-se no momento em que Putin dá, neste domingo, ordem para ter as forças nucleares a postos. Na ponta oposta da mesa, sentam-se o seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e o seu chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, Valery Gerasimov.
Depois da ordem, Sergei Shoigu baixa a cabeça. O sinal é visto como um sinal de desconforto interno pela imprensa internacional. “Há um risco de continuarmos a analisar o que se passa na Rússia com o critério ocidental. Porque o sistema é de tal maneira centralizado, que esse desconforto não é barreira”, explica Lívia Franco, professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa.
Mas ele, o desconforto, começa a existir sobretudo porque nos alvos das sanções internacionais à Rússia estão oligarcas que são fortes apoiantes do presidente russo. “É óbvio que vai melindrar a estrutura de apoio interno”, reforça Sónia Sénica, do Instituto Português de Relações Internacionais.
Na Rússia, avisam as especialistas, as regras da democracia não funcionam do modo a que a maior parte do mundo está habituada. Apesar dos protestos nas ruas, com o risco de prisão sempre presente, “não podemos extrapolar que há um grande consenso interno contra a invasão da Ucrânia”, diz Lívia Franco.
A força das sanções
A cada dia, as sanções adensam-se. Da exclusão do sistema SWIFT ao bloqueio do espaço aéreo, passando pelos bens russos congelados no estrangeiro. E a lista, mesmo que simbólica, continua: a Rússia não vai acolher o Grande Prémio de Fórmula 1 e é excluída da Eurovisão. Com o isolamento de Putin sempre na mira – e a esperança de que isso possa significar um passo atrás.
“Há uma condenação forte, isso tende a isolar o regime. Mas se nos detivermos no aspeto do isolamento, com a esperança de que isso altere o regime [russo], não devemos esperar que isso vá acontecer”, avisa Lívia Franco.
A estratégia ocidental até tem deixado Putin mais tempestuoso, respondendo a cada sanção numa lógica de ‘olho por olho’. Ponderação é palavra de ordem, para não fazer escalar ainda mais o conflito. “É óbvio que isso vai melindrar interesses particulares. Mas neste momento, internamente, não me parece que a contestação internacional seja suficientemente forte para fazer deter estas iniciativas presidenciais”, insiste Sónia Sénica.
E, com as ações do Kremlin para bloquear fontes de informação consideradas fidedignas no ocidente, torna-se difícil medir o pulso sobre a vontade de forçar um novo presidente russo. Autoritário e centralizador, Putin prossegue.
Aliados: esticar ou tirar a mão
Num contexto de conflito, há que tomar posições. E espera-se que os parceiros de sempre deem apoio. Mas até nisso Vladimir Putin enfrenta consequências. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, com quem a relação era próxima, avisa o homólogo de que Ancara nunca reconhecerá a perda da soberania ucraniana. Até porque a Turquia é membro da NATO, a aliança que Putin mais desafia.
Já outros países vizinhos e amigos, como o Azerbaijão e o Cazaquistão, têm evitado alinhamentos. “Esta desestabilização regional faz recear que haja aqui um replicar e uma incursão territorial que ponha em causa as suas soberanias nacionais”, justifica Sónia Sénica. Mas o certo é que o Azerbaijão está a enviar ajuda humanitária para a Rússia.
Têm restado a Putin dois nomes: o sírio Bashar al-Assad e o bielorrusso Alexander Lukashenko. A história explica porquê. Em 2015, a Rússia ajudou a resolver, com recurso a bombardeamentos, a guerra civil em território sírio, a favor do regime de Bashar al-Assad. E, nos últimos anos, perante a crescente contestação ao presidente bielorrusso, o apoio de Putin ao homólogo não se fez tardar. “Estão a retribuir o apoio”, resume Sónia Sénica.
Mas há outra nação que pode desequilibrar a balança: a China. “Tem-se mantido numa posição de pseudo-abstenção”, diz Lívia Franco. Porque Pequim tem interesse nas matérias-primas russas, explica. E, se o conseguir comprá-las a melhor preço, tanto melhor.
À procura de explicações
Putin é visto como uma figura racional, um estratega em defesa dos próprios interesses. Mas as suas recentes aparições públicas, com discursos focados na importância histórica dos territórios ucranianos, têm colocado o ocidente a questionar outra questão: a saúde mental do presidente russo, com 69 anos.
A dúvida espalha-se pela imprensa internacional, associando-a aos seus hábitos durante o período de pandemia. E, nas últimas horas, alimentada por uma publicação do senador norte-americano Marco Rubio. “Seria um erro assumir que este Putin reagiria da mesma forma há cinco anos”, escreve no Twitter.
I wish I could share more,but for now I can say it’s pretty obvious to many that something is off with #Putin
— Marco Rubio (@marcorubio) February 26, 2022
He has always been a killer,but his problem now is different & significant
It would be a mistake to assume this Putin would react the same way he would have 5 years ago
Mas, das especialistas ouvidas pela CNN Portugal, surge o aviso: este argumento da saúde mental poderá ser uma tentativa de o ocidente explicar o que não tem explicação: a guerra.