"Não sei que tipo de idiota tens de ser para carregar no botão e fazer cair mísseis em Odessa": a Paris do Mar Negro está pronta para se defender

10 mar 2022, 18:19
Habitantes de Odessa colocam cartazes e placas de trânsito com insultos às tropas russas (Nina Lyashonok/ Ukrinform/Future Publishing via Getty Images)

Poupada até agora por Vladimir Putin, Odessa entrincheirou-se e organizou a resistência. Culturalmente russófona, a cidade na costa do Mar Negro tem os olhos postos nos navios de guerra russos que podem disparar mísseis a qualquer momento

Em Odessa, os locais preparam-se para a guerra. A dúvida já não é se as tropas de Putin vão mesmo atacar a cidade: todos têm a certeza de que a invasão é inevitável, só não sabem quando. Todas as manhãs, aqueles que ficaram na cidade do Sul da Ucrânia - que tem cerca de um milhão de habitantes - conferem a posição dos navios de guerra russos no Mar Negro e recebem mensagens com conselhos sobre como agir em caso de ataque por terra, mar ou ar, contam os correspondentes de guerra que por ali vão passando.

O próprio presidente ucraniano já o disse e poucos acreditam que Moscovo vai poupar a cidade costeira que um dia foi uma montra da Rússia imperial, anexada quando os russos ocuparam territórios turcos e fundada oficialmente em 1794. Terá sido Catarina a Grande a dar-lhe o nome, alegadamente inspirada na Odisseia de Homero ou talvez porque se acreditava que ali tivesse ficado Odessos, cidade da Grécia Antiga.

"Os russos sempre vieram a Odessa. Só sentiram cordialidade em Odessa, só sinceridade. E agora? Bombas contra Odessa? Artilharia contra Odessa? Mísseis contra Odessa? Será um crime de guerra. Será um crime histórico", disse Volodymyr Zelensky, num vídeo divulgado no passado domingo.

As praias de Odessa estão cobertas de minas, a areia é metida em sacos que se usam para bloquear estradas e fortificar edifícios como o da célebre Ópera de Odessa, que só tinha estado entrincheirada na Segunda Guerra Mundial. "Quando a vi, chorei", contou um local à equipa de reportagem da CNN.

Bloqueada e entrincheirada está também a famosa escadaria de Odessa, onde foi filmada uma das mais célebres cenas da história do cinema, do clássico russo de Sergei Eisenstein "O Couraçado Potemkin".

 

Concebido como propaganda soviética, para comemorar o vigésimo aniversário da revolução de 1905, o filme centra-se no motim dos marinheiros do couraçado Potemkin, que estava ancorado em Odessa, e a sequência do massacre nos degraus tornou-se uma das mais estudadas do século XX, pela inovação na montagem e ritmo.

A herança pró-russa

Cultural e cosmopolita, não é por acaso que chamam a Odessa a "Paris do Mar Negro", além de a cidade ser um dos maiores entrepostos do Mar Negro. Porto estratégico e terceira maior cidade ucraniana, a ligação histórica de Odessa aos russos deixou dúvidas sobre a ação das tropas do Kremlin, que entretanto se dissiparam: com a cidade de Kherson sob controlo russo e Mariupol sob intensos bombardeamentos, resta Odessa na rota dos russos até Kiev. 

Mas Odessa é uma cidade diferente de Kiev: o The Guardian cita uma sondagem com data de setembro do ano passado´, segundo a qual 68% dos habitantes de Odessa concordavam com a afirmação de Putin sobre os russos e ucranianos serem "um povo só", enquanto que apenas 20% defendia que o futuro da Ucrânia deveria passar por uma maior integração Europeia. 

Em 2014, Odessa ficou marcada por um episódio que o próprio Putin usou no seu discurso para anunciar o conflito atual como um esforço de "desnazificação" da Ucrânia. Após vários ataques pró-russos na região, nacionalistas ucranianos atacaram os manifestantes que se uniram numa marcha pró-russa na cidade, o que resultou em 48 mortos - na maioria pró-russos - na sequência do incêndio de um edifício. O Kremlin apressou-se a descrever a situação como um massacre fascista premeditado, numa cidade onde morreram mais de 50 mil judeus na Segunda Guerra Mundial. 

Nas últimas semanas, os violentos ataques russos a civis parecem estar a fazer a comunidade russófona de Odessa reexaminar prioridades e convições, aponta o Guardian: o antropólogo Alexander Prigarin, que vive na cidade, admite que os acontecimentos de 2014 reforçaram a sua afeição pela Rússia, mas ver as forças do Kremlin atacar civis com mísseis obrigaram-no a olhar para a guerra com uma nova perspetiva.

Placas de trânsito para mandar russos embora

Na cidade, o recolher obrigatório às 19:00 é escrupulosamente cumprido e os habitantes afixaram nas ruas cartazes com a frase dos guardas da ilha de Zmiinyi para o navio de guerra russo que os ameaçava: "Vão-se f****".

A maior parte das lojas estão fechadas, a venda de álcool foi proibida e as explosões das batalhas na periferia da cidade ouvem-se à distância. Um recém-renovado centro de restauração tornou-se ponto de recolha para donativos ao exército, enquanto serve cerca de 8.000 refeições por dia, cozinhadas por voluntários, e que são distribuidas aos soldados e às unidades de defesa territorial do exército ucraniano. 

"Não sei que tipo de desgraçado, idiota ou escória tens de ser para carregar no botão para que os mísseis caiam em Odessa", disse ao Guardian o autarca de Odessa, Gennady Trukhanov. "Está para lá dos limites do meu entendimento". 

Naquela que foi considerada a "capital do humor" na era da União Soviética, os sinais de trânsito também foram alterados para "facilitar" as movimentações do exército russo, dizem os residentes: em vez de direções, leem-se nas placas palavrões - mais uma vez, os guardas fronteiriços de Zmiinyi a servir de exemplo. As mais simpáticas incentivam os soldados a voltarem para casa. 

As placas de trânsito que mandam os soldados russos para casa

Irineu Teixeira, jornalista português casado com uma cidadã ucraniana, e que regressou recentemente da Ucrânia, disse à CNN Portugal que "não se augura um futuro risonho para Odessa". Recordando o episódio de 2014, que culminou com as mortes de quase 50 pessoas, garante que "os pró-russos não se esquecem disso", mas também diz que a Ucrânia está hoje "mais unida do que antes" contra os invasores.

 

Sobre os contornos de um eventual ataque, Irineu admite que poderá ser com meios aéreos mas não descarta que os mísseis contra Odessa venham mesmo das fragatas do Mar Negro.

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