Depois da guerra

29 mar 2022, 11:58

A Rússia acreditava que, nas regiões que tinha como geneticamente suas, ia ser recebida como libertadora, irmãos de sangue, história, cultura e língua que podiam abraçar-se e beijar-se de novo. Mas não foi recebida assim, e este desamor é outra das novidades desta guerra

Houve guerras imensas no tempo, na morte e na destruição. Houve guerras que se mediram em décadas (a Guerra dos Trinta Anos) ou até em mais (a Guerra dos Cem Anos). Mas nunca houve guerras eternas, a não ser para aqueles que, a certa altura, acreditaram que estávamos num estado de guerra perpétuo contra o terrorismo, a chamada teoria dos dois conflitos. Felizmente, essa construção dogmática foi varrida pela História.

Não havendo conflitos que sempre durem, a regra aplica-se à guerra na Ucrânia. Ora, se para o seu termo alguns apontam para o mês de maio ou em torno disso, é urgente que se pensem decisões importantes sobre como vai ser alcançado esse objetivo; e, muito mais difícil, como será, depois, construída uma paz duradoura.

O fim do conflito será sempre um bem, mesmo na sua versão mais limitada, quando as armas se calam e o silêncio é, qualitativamente, mais do que um cessar-fogo. Contudo, mesmo que cessem as hostilidades, não estará nesse momento feita a paz.

Verdadeiramente, até se chegar à paz, o caminho continua cheio de escolhos. Pressente-se, pela comunicação russa, e vê-se, no terreno, que há uma diferença entre o que a Rússia esperava e aquilo que tem alcançado. A Rússia anunciou ter realizado os seus primeiros objetivos, indo, agora, concentrar-se mais na “libertação” do Donbass. Só que esta declaração é pouco credível, uma vez que coincide com o revigorar das capacidades ucranianas, com contra-ataques militares (e não apenas situações de defesa estática) mais intensos. Ou, numa versão mais benigna para a Rússia, um recuar das suas forças para recuperar em força e intensidade.

Para a Rússia, acrescentaria outra surpresa, no plano afetivo. Seja por que razão for, acreditava que, nas regiões que tinha como geneticamente suas, ia ser recebida como libertadora, irmãos de sangue, história, cultura e língua que podiam abraçar-se e beijar-se de novo. Mas não foi recebida assim, e este desamor é outra das novidades desta guerra.

Se – e ainda bem – se nota uma relativa acalmia no terreno, no plano político a escalada verbal agravou-se, e teve razão o Presidente francês (com Boris Johnson a ir à dobra) quando aconselhou alguma contenção, para não se atrasar um cessar-fogo. Será um episódio do “polícia bom e do polícia mau” ou, mais preocupante, um dos primeiros sinais de cansaço e de não coincidência de posições?

A verve dos principais responsáveis políticos não é idêntica, cada um é como é. O Primeiro-Ministro britânico costuma ser muito diferente do Chanceler alemão, e o Presidente norte-americano diferente é do Presidente francês. Daí não vem especial mal ao Mundo, se cada um, no fim do dia, contribuir para o mesmo propósito: a defesa da Ucrânia e da sua população e o fim da agressão russa.

Por outro lado, consoante as circunstâncias do momento, é compreensível um acesso de entusiasmo, uma palavra ou expressão menos convencionais ou conforme aos usos da alta diplomacia. Dir-se-ia, no entanto, que, quanto ao Presidente norte-americano, já se trata de algo mais do que a palavra que escapa, pois que, nesta contabilidade que todos fazem, a palavra já fugiu da gaiola (do que estava escrito no discurso) nove vezes. Começam a ser muitas escapadelas.

Sobre Vladimir Putin, não vejo muito mais que possa dizer, depois de o tratar (já, pelo menos, duas vezes) como “criminoso de guerra”, “bandido” e “ditador assassino”. Escalou, entretanto, durante a visita à Polónia, afirmando que “este homem não pode continuar no poder” e é um “carniceiro”. A partir daqui, imagino, só de dicionário na mão – e permito-me sugerir, pela riqueza e variedade, o Dicionário de Calão do Porto, de João Carlos Brito.

É interessante como a Casa Branca, ou o Secretário de Estado Blinken, colocaram água na fervura de cada vez que se verificou uma das tais “escapadelas”. O Presidente falou com o coração, diz a Casa Branca, não foi em sentido técnico. Ou, não se trata, verdadeiramente, de promover o derrube de Putin, acrescenta o Secretário de Estado, não era esse o sentido mais profundo da declaração. O Presidente, por seu turno, já veio matizar aquilo que o Presidente disse, tem a vantagem de o conhecer bem.

É duvidoso que estes episódios “acelerem” o fim do conflito; até, de forma instintiva, é provável que o acicatem. Ora, por muito que seja difícil não verberar o adversário pelo seu comportamento inaceitável, são o silêncio ou o recato que melhor contribuem para que se chegue a algo na mesa das negociações.

O líder ucraniano tem também vindo a subir o tom das suas declarações. Falou ao Conselho Europeu, e depois dedicou-se a uma espécie de avaliação crítica de cada um dos Estados europeus, à luz do critério da ajuda à Ucrânia (“naming and shaming”).

Sobre Portugal, já todos sabem o que sentenciou. Foi injusto, mas está sujeito a uma pressão de tal ordem, que, não tendo sido um momento feliz, não há que dramatizar. Já o que disse sobre a NATO foi de uma veemência particular, tratando os seus dirigentes como cobardes – afirmando, mais coisa menos coisa, que era bom que tivessem 1% da coragem dos que combatem em Mariupol. Foi até mais longe: “Portanto, quem é que dirige a comunidade euro-atlântica? Ainda é Moscovo, graças às suas táticas de intimidação?” (note-se o “ainda”). E, a propósito do que considera ser a recusa dos Estados em causa em fornecerem blindados e aeronaves de combate à Ucrânia: “Isto devia ser conhecido tão depressa quanto possível por tantas pessoas quanto possível, para que todos compreendam quem, e quando, teve receio de evitar esta tragédia. Receio de, simplesmente, decidir”. Por último, Zelensky disparou com alguma violência em direção da Alemanha e da França.

Não seria de bom tom um comentário duro sobre estes propósitos, até porque é Zelensky que está no olho do furacão e é fácil a crítica a partir do sofá da sala. Siga-se, portanto, para a síntese. Está em causa a “discordância” do líder ucraniano relativamente à linha definida pela NATO que distingue entre apoio ao exercício da legítima defesa da Ucrânia e um envolvimento direto no conflito, através da aplicação do instituto da legítima defesa coletiva. Entre um e outro, diz a NATO, encontra-se a diferença entre o conflito como está e um conflito generalizado e até nuclear. Além disso, a isto junta-se a ideia que tem prevalecido de que não haverá mais sanções no chamado campo energético, porque, a partir de agora, o impacto seria maior relativamente a quem as decide e às suas populações do que em relação ao alvo.

Será que Volodymyr Zelensky, pela avaliação que faz da situação no terreno, é de opinião que a Ucrânia pode ganhar, no sentido mais literal e militar do termo, o conflito iniciado pela Rússia a 24 de fevereiro? Não se sabe, é difícil de estabelecer tal cenário, da mesma forma que continua a ser uma possibilidade ficarmos em mãos com uma Rússia acossada e a imputar a sua desgraça ao ocidente. Logo, uma Rússia volátil, muito perigosa e imprevisível.

Poderá sempre acusar-se, pela enésima vez, a posição da NATO e da UE, com referências pejorativas a Chamberlain e à política de apaziguamento, estigmatizada para todo o sempre. Mas esta foi a avaliação feita por um coletivo de Estados muito alargado, com um diagnóstico bastante sólido e de análise de risco competente e que, principalmente, já agiu muito mais do que seria expectável.

Com tudo isto, há que trabalhar para a paz. Mas, que paz, e o que há para negociar?

Há uma condição certa: as marcas e feridas de um conflito nunca podem ser inteiramente reparadas, como se ele não tivesse existido. Nunca. A função “rewind”, e ainda menos a do “reset”, não foram inventadas para estes casos. Por isso, quem acreditar que no termos das negociações voltamos a 23 de fevereiro estará enganado.

É como escreveu Agustina em a “Dominga”, falando de um portão ferrugento:

“Já nem range, de tanta ferrugem que tem. É irreparável e, ao mesmo tempo, é consolador. Há coisas que nos consolam porque são irreparáveis. Imagine que tudo se podia compor neste mundo. Que os dinossauros voltavam, que os judeus se levantavam das fossas onde foram empilhados como lixo. Será que tínhamos cara para os receber? O dó é necessário. A cólera é necessária.”

Além daquilo que mais tem vindo a lume, submetido por cada uma das partes consoante a respetiva estratégia, há outros problemas imateriais, em que por enquanto não se vê solução. Esses problemas, eventualmente “irreparáveis”, vão marcar as negociações, e são por ora o “não-dito” de um pós-conflito. A eles se voltará.

Desmilitarização, “desnazificação”, estatuto de neutralidade, não adesão à NATO, de um lado. Reparação, garantias de segurança, reconstituição da integridade territorial da Ucrânia, retirada integral das forças russas do território ucraniano, versão 2014 ou 2022, do outro.

Esta breve lista, de cujo conteúdo concreto se poderá dizer que não sabemos da missa a metade, já é parecida com os 12 trabalhos de Hércules, ou de Astérix, para quem for mais dado à BD.

A “desmilitarização” tem, por enquanto, duas leituras não compatíveis. A Rússia lê este requisito num tempo presente e num tempo futuro. No presente, afirma ter conseguido destruir muitos alvos militares, mas, além disso, “exige” que a Ucrânia não volte a reconstituir essas capacidades. A Ucrânia, por seu turno, recusa que, com a reposição plena da sua soberania, fique amputada ad perpetuum numa dimensão tão definidora da sua existência como Estado. Mas está disposta a negociar um estatuto de neutralidade, desde que com garantias prestadas por terceiros Estados.

Se assim for, outros Estados ficarão obrigados a proteger a Ucrânia se, porventura, algum ator (leia-se, a Rússia) abusar dessa “neutralidade” em seu benefício. Outra hipótese, também já testada no passado, é a de escolher Estados “opostos” para garantirem a neutralidade da Ucrânia (positivo com negativo dá negativo). De qualquer forma, se a solução avançar, os Estados-garante terão de ser escolhidos a dedo, com mais cuidado e delicadeza do que o das senhoras antigas que dominavam a arte da renda de bilros. Nos dias que correm, a Turquia é uma candidata óbvia, com o estatuto que conseguiu alcançar pelo facto de acolher no seu território as negociações entre as duas partes. É outro dos efeitos laterais do conflito: a Turquia alcandorou-se a uma relevância regional (pelo menos) que lhe permite olhar para norte mais do que até aqui fazia. Tornou-se necessária, a sua voz é ouvida.

Antes de se chegar ao mais difícil, há alguns becos que parecem ter poucas saídas. Com a destruição incalculável que já causou em território ucraniano, não é fácil acreditar que a Rússia aceite de bom grado reparar um cêntimo que seja pelos danos causados. É, com certeza, uma questão de rublos, dólares, euros ou grívnias (moeda da Ucrânia); é uma questão jurídica; mas, principalmente, é uma questão política.

A questão do “dinheiro”, dizendo da forma o mais chã possível, não é a mais importante, ao contrário do que a maioria pensará. De facto, se atendermos às somas colossais pertença do Estado russo ou de cidadãos russos que os países ocidentais colocaram entre parênteses (através do congelamento de bens e haveres), poderão elas, perante reticências russas, ser alocadas à reconstrução material da Ucrânia. Só que, acontecendo isso, a Rússia terá forma de alimentar o rancor relativamente a quem “confiscou” a riqueza do País (uma espécie de repetição do tratado de Versalhes, versão 2022, e, no menu, a “humilhação” da Rússia): “eles” roubaram-nos, “eles” são a causa da nossa desgraça. Não pode deixar-se de lado, por conforto, este problema; mas não se vê resposta que possa afastar-se de uma exigência básica de reparação.

Simplesmente, mais do que uma questão de financiamento da reconstrução ucraniana (o que já não seria pouco), esta é uma questão política e jurídica. Nunca este regime russo aceitará que violou o direito internacional e, ainda menos, que cometeu um ato de agressão armada. Nunca aceitará que violou o direito internacional humanitário ou que esteja a Rússia constituída em obrigações, não só perante a Ucrânia como perante a comunidade internacional. Logo, dirá a Rússia, se não violou o direito, antes exerceu um direito, não tem por que pagar o que quer que seja.

Não vamos, certamente, assistir a um desenlace parecido com o da guerra do Golfo, em 1991, quando o Iraque vergou e, para que as hostilidades cessassem, aceitou a imposição das condições de paz (no caso, através da resolução 887 do Conselho de Segurança, de abril de 1991). O Iraque aceitou, também, não só que tinha cometido um ato de agressão contra o Kuwait como, por esse facto, estava obrigado a reparação e a uma série de outras obrigações, desde o desarmamento à destruição dos seus stocks de armas químicas e bacteriológicas.

A Rússia não é o Iraque de 1991. E a Rússia não está em guerra “direta” a não ser com a Ucrânia. Portanto, é possível “garantir” que, se a exigência de reparação for condição para que haja um acordo formal, não haverá acordo e teremos de esperar para ver o que acontecerá.

A exigência (também ela básica) da retirada das forças russas do território ucraniano – a cessação do ilícito – vai confrontar-nos com outro problema, que só não surgirá se, entretanto, a Rússia colapsar (não parece provável).

Retirar as forças russas, naturalmente que sim. Mas, de onde?

A primeira hipótese é, de longe, a mais legalista. A Rússia deve cessar o seu ato de força contra a Ucrânia que teve início, e nunca foi interrompido…desde 2014. Se a Ucrânia, como qualquer país, tem direito àquele que é o seu território, definido por fronteiras internacionais, então esse é o alcance das obrigações da Federação Russa. Isto significaria que as forças e a jurisdição (mesmo que de facto) da Rússia deveriam recuar, não àquela que era a situação antes de começarem estas hostilidades, mas a uma outra, que implicaria a devolução da Crimeia e o fim da ocupação de parte do Donbass, por si ou por interpostos “independentistas”.

Não se deverá esperar este resultado. Nem o mais otimista defenderá a sua viabilidade negocial.

Pense-se, apenas, em duas coisas. Uma, que aconteceu há dias, a celebração festiva e pomposa, em Moscovo, do oitavo aniversário da “entrada” (anexação) da Crimeia na Rússia, símbolo o mais público possível do seu caráter “irreversível”. Outra, que um resultado destes seria muito pior que mau para Putin: seria, de certeza, o fim do regime, humilhado por David e sabendo que nem Golias tinha sido.

A segunda hipótese, o regresso a 23 de fevereiro de 2022, mantendo a Rússia a Crimeia e uma parte de Lugansk e Donetsk. Nem mais, nem menos. Não deve ser plausível que, na mesa das negociações, a Rússia ceda tanto (em relação ao que entende que conseguiu já no terreno, apesar de tudo). E não é plausível que a Ucrânia admita, sequer, dar como perdido tanto do seu território.

Mas, se este segundo cenário também não é factível, começam a partir daqui as dificuldades sérias e a construção de sub-cenários.

A Ucrânia já foi longe de mais, perdeu já em demasia e resistiu demasiado para poder admitir mais perdas territoriais, sobretudo se estas incluírem a faixa do Sul que liga a Crimeia ao Donbass (desde logo porque, objetivamente, perdia o acesso ao Mar de Azov). Seria um fim de história devastador, o crime a compensar e o anticlímax do fim do conflito a poder custar muito caro a quem dissesse sim a este “negócio” celebrado sob coação extrema. Por isso, e mesmo de uma forma mais geral, o Presidente ucraniano pré-anunciou um referendo, cujos termos é demasiado cedo para sequer vislumbrar. Mas que, em qualquer circunstância, dificilmente poderão resultar num mercadejar de território.

Se é assim, faça-se entrar em cena a força dos factos. As ilegalidades, mesmo as graves, no plano internacional como no plano interno, podem criar uma nova realidade com o decurso do tempo – podem, por isso, alterar o que era e “fazer” aquilo que agora é.

Putin, “o Conquistador”? Nem tanto.

Mas a força que separa comunidades, que insiste na diferença e em identidades que se inventam como opostas, pela religião, pela língua, pelo sentimento de perseguição, produz, goste-se ou não, efeitos a prazo. A separação “de facto” do Kosovo relativamente à Sérvia a partir de 1999, por exemplo, causou, como efeito “necessário”, a concretização da independência.

A Turquia invadiu o norte de Chipre em 1974, ali estabeleceu, até hoje, a não reconhecida República Turca de Chipre do Norte. Esse facto foi recusado pelo Conselho de Segurança, por ele tido como nulo e de nenhum efeito; foi verificado, várias vezes, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos; e por tantas outras instituições internacionais. Mesmo assim, e sem conceder qualquer reconhecimento daquela entidade, é muito difícil ignorar que, em virtude daquele ato de força, foram reconstituídas comunidades (de costas voltadas uma para a outra) e o voltar a 1974 é impossível. Nessa medida, esperando-se uma resolução deste processo (que já tarda demasiado), sempre se tratará de algo enformado pelo decurso do tempo.

Salvas as devidas proporções, acontece algo de relativamente próximo na Ucrânia desde a intervenção militar russa de 2014, mais a agressão generalizada de 2022.

Putin pode ter ocupado o mais que podia para, mais tarde, conceder que “só” ficará com Lugansk e Donetsk. Assim, parece que recua, quando afinal está a obter o que realmente queria. Não sei.

A Ucrânia, a ser assim, terá todo o interesse em que o atual estado de coisas bélico se prolongue, sabendo-se com cada vez mais meios para desgastar e corroer a teimosia do agressor. Assim, fecharia negócio em condições menos desvantajosas, por exemplo, criando no Leste um regime interessante e alargado de autonomia territorial, com reconhecimento de algo próximo do autogoverno, com direitos próprios em matéria linguística, educativa e religiosa. Mas, nunca a separação. Não sei.

Mas, não se duvide: cada dia que passe esta hipótese de recomposição minimamente harmoniosa será mais difícil. A história também está a fazer-se, de forma trágica, à frente dos nossos olhos. A memória da violência, aquilo que ucranianos étnicos ou ucranianos russófonos imputam uns aos outros, cria versões próprias de legitimação da violência. Cada vídeo dos bombardeamentos russos em Mariupol transfere para cima dos russófonos a raiva dos que os associam à Rússia e os responsabilizam. Do outro lado, o que lhes é inculcado, os ataques que sofrem, as histórias, sempre as histórias e as memórias de sofrimento, fazem-nos olhar para o vizinho e só ver um inimigo, aquele em que se cristaliza o sofrimento da guerra.

Não é preciso “escolher” campos, e quanto menos essa escolha se fizer neste caso mais objetividade se alcançará – trata-se, afinal, das populações e não de quem decidiu e praticou a agressão.

No fundo, vai tratar-se da opção em que se façam prevalecer os direitos sobre o território, caso em que a população russófona, ou parte dela, sabe que o seu tempo na Ucrânia pode ter terminado, e há que fazer as malas; ou fazem-se prevalecer as identidades em detrimento do território, e, cada qual com o seu território deixará de conviver com a diferença ou a ter de harmonizar a diferença. Cada um, afinal, viverá num território puro, rodeado de iguais ou parecidos, ficando a detestar profundamente aqueles que antes eram o vizinho. É a história de Caim e Abel, é o que se fez com a partição Índia-Paquistão. Apetece dizer, que venha o diabo e escolha.

Temos, por fim, aquela que será uma das hipóteses mais fortes. Cada parte mantém a sua, a Ucrânia tendo do seu lado o direito e uma noção elementar de justiça (mesmo que não realizada). Interrompem-se as hostilidades, finge-se que a paz está feita, e fica-se com uma espécie de status quo frágil, dure o que durar. Onde a minoria for localmente maioria, vai sofrer quem pertencer ao outro grupo. Onde a minoria for minoria, vai sofrer. Estas feridas não se curam, podem é ficar subjugadas sob a opressão de um ou de outro.

Esta matrioska que se vai descascando em maiorias, minorias e subminorias é, porventura, o pior pecado do agressor, a sua criação mais censurável. A aceitação da diferença ainda era possível, é-o hoje muito menos. E, sobretudo, muito mais encostada às armas e à violência, ao medo e à vingança.

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