"Há uma guerra antes e depois" do massacre de Bucha. Mas o que significa o "depois"? Pode significar China

5 abr 2022, 09:00

Valas comuns. Cadáveres de civis abandonados - alguns deles com as mãos atadas. Civis baleados na autoestrada. A saída das tropas russas de Bucha deixou o horror da guerra à vista do mundo. O New York Times revelou entretanto que imagens de satélite mostram que alguns daqueles corpos estavam ali há vários dias, numa altura em que as tropas russas controlavam a zona - o que desmente a tese russa de que tudo o que se viu este fim de semana foi encenado

Para a investigadora Diana Soller "há uma guerra antes e depois deste massacre" em Bucha, onde foram enterrados corpos de 300 pessoas em valas comuns, além de dezenas de cadáveres de civis na estrada por onde passaram as tropas russas. "Este massacre veio mudar a nossa perceção da guerra, mostrando que este conflito é muito mais grave e tem contornos muito mais sangrentos do que aquilo que poderíamos imaginar. Depois destas imagens será muito difícil para a Rússia conseguir negar e esconder aquilo que verdadeiramente está a fazer e a destruição que está a deixar atrás de si", sublinhou, em declarações à CNN Portugal.

Para o general Agostinho Costa, à medida que o conflito se prolongar situações deste género vão ser mais recorrentes: "Quando virmos as imagens de Mariupol, vamos ficar tão chocados ou mais. Vamos ver pior." Para Agostinho Costa, esta é uma guerra distinta das anteriores porque o conflito não se desenvolve apenas num campo de batalha mas nas televisões. também. "É uma guerra de perceções: quem ganhar as perceções ganha a guerra e os russos sabem-no. Oxalá que dentro de algum tempo não venhamos a assistir a um incidente químico. Faz parte de toda a encenação das perceções. Não me admira nada que dentro de algum tempo não haja um incidente químico, com armas químicas.",

Para o general Agostinho Costa, o Ocidente já está em guerra com a Rússia no plano político-diplomático, no plano económico e no plano informacional. "Já só falta mesmo o plano militar. Estamos mesmo no fio da navalha", diz. Ainda assim, esta situação em Bucha não será pretexto para uma intervenção da NATO neste conflito, considera, até porque "os americanos decididamente não querem uma guerra na Europa". Mas, de acordo com o general, há países europeus que têm feito declarações "muito preocupantes", como a Lituânia e Polónia, cujo primeiro-ministro, Mateusz Morawiecki, comparou o presidente russo, Vladimir Putin, a Hitler, Estaline e Pol Pot. "Os tambores da guerra estão a rufar. Há gente que não percebe que se entrarmos numa guerra com a Rússia temos uma guerra nuclear na Europa."

Diana Soller aponta que, apesar das duras condenações do Ocidente à Rússia, "a NATO vai manter a sua convicção de que é apenas uma aliança defensiva". E há duas razões que explicam este afastamento, de acordo com a investigadora: por um lado, "os EUA não estão dispostos a entrar numa intervenção militar"; por outro lado, uma eventual intervenção da NATO pode desencadear uma "nova guerra mundial", no sentido em que "praticamente todos os países importantes do sistema internacional ficariam envolvidos nesta guerra".

O factor China

"Onde eu penso que alguma coisa pode efetivamente mudar é na forma como a China se tem posicionado relativamente a este conflito", defende Diana Soller, lembrando que a China tem usado de uma neutralidade pró-russa que, "por um lado, parece impedir o seu envolvimento no conflito e por outro lado, faz com que não condene de forma forte e veemente este conflito". Mas, perante este massacre, "se a China não quiser ser vista como um aliado de um Estado que comete as barbaridades que a Rússia está a cometer, provavelmente será empurrada a ter uma atitude um bocadinho mais proativa relativamente à guerra".

"Isto parece um pormenor mas pode fazer uma grande diferença, porque a Rússia pode perder o seu maior aliado e, por outro lado, a China pode pressionar a Rússia a ter uma atitude diferente no conflito e na mesa das negociações. Até porque a China pauta o seu discurso por ter uma posição construtiva das relações internacionais e ser promotora da paz. E usa muito a narrativa de que não usa a força para obter os seus dividendos internacionais. Vai ser muito difícil continuar a usar este discurso e a apoiar, ainda que neutralmente, a Rússia nos seus intentos relativamente à Ucrânia", argumenta Diana Soller.

Perante as imagens do massacre em Bucha, os líderes europeus não demoraram a reagir, condenando as tropas russas e garantindo sanções mais duras contra Moscovo. Mas este novo pacote de sanções da União Europeia não deverá ir muito além dos anteriores. De acordo com Diana Soller, estas novas sanções podem ser mais personalizadas, isto é, dirigidas contra oligarcas russos, por exemplo. 

"Mas não tenho a certeza de que isso, na prática, crie uma pressão muito maior relativamente à Rússia", considera, apontando que "a Rússia tem sido muito hábil a conseguir que as suas sanções tenham pouco impacto no seu quotidiano", jogando a carta da dependência energética da Europa em relação a Moscovo. "Sabemos que a maior fonte de rendimento da Rússia é a venda de petróleo e de gás e a Europa ainda não é suficientemente autónoma nesse aspeto para poder efetivamente castigá-la de maneira a provocar algum efeito significativo."

Para o antigo ministro da Defesa Azeredo Lopes, mais importante do que implementar novas sanções, deve-se proceder a uma investigação independente do que realmente se passou em Bucha para identificar "o que foi este massacre, quais foram os casos de civis que podem ter sido mortos por bombardeamentos, por exemplo, ou quais foram deliberadamente executados". "Acho mais importante, antes de começarmos a falar no plano político, termos um fundamento sólido para podermos qualificar aquilo como facto ilícito de especial gravidade imputável à Rússia, se for esse o caso, e para podermos avançar, mais tarde ou mais cedo, com mecanismos de responsabilização", refere.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou esta segunda-feira, uma investigação conjunta da UE e da Ucrânia "para recolher provas e investigar crimes de guerra e crimes contra a Humanidade". E o que acontece se, de facto, existirem provas de crimes de guerra na Ucrânia? De acordo com Diana Soller, apesar das ferramentas internacionais disponíveis que permitem criminalizar este tipo de comportamentos, "provavelmente a criminalização da Rússia não vai ter qualquer consequência porque quer o Tribunal Penal Internacional, quer o Tribunal Internacional de Justiça não têm o poder de um tribunal normal dentro de um pais, nem o poder de criar punições".

Mas, para Azeredo Lopes, independentemente das investigações, há já uma certeza: "a maioria dos poderes internacionais está convencida de que a foi a Rússia". "A partir de um determinado momento, isso é a única coisa que conta. Não interessa se foi, se não foi ou se deixou de ser - neste momento já há uma sentença com trânsito em julgado simbólico do ponto de vista político. "Neste momento, do ponto de vista político, a decisão está tomada. É como se já tivesse havido julgamento. Do ponto de vista político - este é um desastre para a Rússia. E, por vezes, os piores desastres são reputacionais."

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