Envio de tropas norte-americanas para a Europa é "projeção de força", mas "porta diplomática ainda está aberta"

2 fev 2022, 23:04

Intenção norte-americana é "dissuadir uma eventual agressão". O Kremlin reitera que as suas pretensões de segurança não estão a ser levadas em conta

Esta quarta-feira ficou marcada pelo anúncio da administração norte-americana do envio de mais de 3.000 tropas para a Alemanha, Polónia e Roménia, num novo desenvolvimento no capítulo da tensão entre o Ocidente e a Rússia. Tudo isto depois de o presidente norte-americano já ter colocado 8.500 soldados em "alerta máximo".

De acordo com os planos divulgados, mais de metade desses efetivos, 1.700, será enviada para a Polónia, enquanto que mil serão transferidos da Alemanha para a Roménia, e uma unidade com cerca de 300 homens irá ficar estacionada em terras germânicas. Segundo o porta-voz do Pentágono, John Kirby, esta manobra “servirá para dissuadir uma eventual agressão e fortalecer as capacidades defensivas nos aliados na linha da frente”.

Em declarações à CNN Portugal, Sónia Sénica, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, considera este envio de tropas “uma projeção de força dos Estados Unidos, em complemento com o processo negocial”.

“Já se percebeu que tanto os Estados Unidos como a Rússia estão num grande impasse, ainda não chegaram a um consenso para poder atenuar a tensão no terreno. Mas aquilo que parece que é bastante difícil é concertar posições no plano negocial que estejam também, por outro lado, a ser articuladas e apoiadas por uma dinâmica militar”, afirmou.

Para a investigadora, estando a intervenção no contexto ucraniano “fora de questão”, como tem sido dito pelo secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, e por outros interlocutores, a atuação militar dos Estados Unidos e aliados europeus e da NATO “tem de ficar mais numa posição de contenção da Rússia por via da demonstração de força no terreno, com a movimentação de tropas e a colocação de aparato militar”.

Esta terça-feira, na receção ao seu grande aliado e homólogo húngaro Viktor Orbán, Vladimir Putin comentou, ao fim de mais de um mês de silêncio, a posição russa sobre a escalada de tensão. O presidente russo reafirmou que não quer invadir a Ucrânia, acusando os Estados Unidos de usar a crise no país liderado por Volodymyr Zelensky para, mais uma vez, “conter” a Federação Russa. Putin considerou, ainda, que as pretensões de segurança exigidas pela Rússia não têm sido levadas em conta pelo Ocidente.

Tropas russas concentradas em Pogonovo, a poucas dezenas de quilómetros da fronteira com a Ucrânia (AP)

Em relação a está última questão, Sónia Sénica lembra uma frase que tem sido “bastante reiterada” pelo Kremlin durante este período: “não se pode ler um livro de olhos fechados”.

“No fundo o que querem dizer é que tem de se perceber que a segurança de um país, neste caso a Ucrânia, não pode ser acautelada em detrimento daquilo que são as expetativas de segurança de outrem, no caso a Federação Russa. Há aqui peças fundamentais e garantias que têm de ser acauteladas para se poder passar para uma fase posterior e pensar numa agenda política de concertação a outros níveis, como uma redução dos exercícios militares de parte a parte e a redução do armamento em solo europeu. Neste momento, a linha vermelha para a Rússia é, obviamente, a questão do não alargamento da NATO à Ucrânia”, afirma a investigadora.

Apesar de reconhecer que o mecanismo diplomático “tem sido bastante estendido e alongado no tempo”, Sónia Sénica considera que esta via “tem sido bem-sucedida”.

“Aquilo que me parece é que estão a ser feitas pequeninas conquistas porque, de outro modo, já haveria uma escalada militar para os vários cenários que têm vindo a ser colocados”.

A investigadora aponta, no entanto, para uma dificuldade enfrentada pelos aliados ocidentais durante as negociações.

 “A dificuldade que me parece existir prende-se com o facto de não haver uma coesão no Ocidente. Há vários formatos e vários modelos que estão a ser esgotados, não só num quadro alargado, mas também num quadro bilateral. Isto denota que há aqui alguma dissonância, alguma falta de coesão e de unidade entre os Estados Unidos e os parceiros europeus”, o que para a investigadora dá uma grande vantagem à Rússia.

“Do lado russo só há um interlocutor. A Rússia percebe que tem aqui uma força em termos negociais precisamente porque são várias as intenções de encetar contactos e são várias as propostas que são colocadas à disposição da Rússia. Isso permite a Putin ter uma posição mais robusta, mais fortalecida no plano negocial”.

Lamentando a pressão e a projeção de força militar dos dois lados, a investigadora afirma, contudo, que a via negocial ainda não está excluída. “A porta diplomática ainda está aberta”, conclui.

“Tem de haver um compromisso para garantir o não avanço da NATO para a Ucrânia”

Em entrevista à CNN Portugal, o coronel Carlos Mendes Dias, presidente do Centro Português de Geopolítica, considera esta situação "insustentável", apesar de a Ucrânia dispor de toda a soberania para decidir aliar-se à organização.

“A NATO na Ucrânia significaria que estaria a 800 quilómetros de Moscovo em terreno plano. Significaria também a fragilização com a fronteira bielorrussa, porque a NATO já está nos países bálticos, a Rússia aí não poderia fazer nada. É praticamente um cerco”.

No entanto, mesmo havendo um compromisso que vigore durante vários anos, Mendes Dias afirma que "mais tarde ou mais cedo, esta questão virá de novo à tona".

Sobre os mais recentes desenvolvimentos, o coronel considera que ambos os lados têm de “esticar a corda, para não mostrar fraqueza”, mas preferem que esta “não rebente”.

Mendes Dias relembra também que, após a invasão russa da Crimeia, a NATO reforçou logo o seu dispositivo militar no leste europeu “exatamente para acautelar estas situações, que são uma constante histórica”.

“Neste ponto de vista, não há nada de novo. Há é circunstâncias que estão esquecidas. Ucrânia quer dizer ‘fronteira’, está exatamente na fronteira entre a península europeia e a massa continental asiática”.

Salientando a natureza democrática da NATO a nível interno, uma vez que todas as decisões são tomadas por unanimidade, Mendes Dias elencou a que, para si, é a “grande questão”.

“Sempre que se encosta o lado russo à fronteira ocidental, os países do leste da Europa pedem tropas da NATO. Custa-me a crer, porque a NATO passou de uma aliança para uma organização de segurança, dado o alargamento, que todos os países estejam dispostos a lançar a sua juventude e não só a morrer na Ucrânia, apesar dos compromissos”, afirma o coronel, que considera que, para a Rússia, “é difícil aceitar a presença da NATO tanto no Báltico como na Ucrânia”.

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