Durante longuíssimos meses, a Ucrânia teve mísseis de longo alcance dos EUA que podia usar para atacar russos em território ucraniano mas não russos em território russo. Especialistas ouvidos pela CNN espantam-se - e até ironizam, ainda que com tristeza - com a mensagem que isso passou aos generais russos (é dessa ironia que vem a frase do título, em que um dos especialistas se imagina dentro da cabeça de um chefe militar do Kremlin). E os especialistas dizem outra coisa: a Rússia é muito boa a manipular as mentes dos líderes ocidentais. E a Ucrânia é que paga
O que o termo “escalada” não diz sobre os ataques da Ucrânia à Rússia
por Christian Edwards, CNN
Ao longo de mais de mil dias de guerra, o presidente russo Vladimir Putin avisou repetidamente os aliados ocidentais de Kiev das terríveis consequências - potencialmente nucleares - se “escalarem” a guerra dando à Ucrânia as armas de que necessita para se defender.
As ameaças de Putin tornaram-se ainda mais ferozes este mês, depois de a administração Biden ter finalmente dado autorização a Kiev para lançar armas americanas de longo alcance contra alvos no interior da Rússia. Em resposta, Putin atualizou a doutrina nuclear da Rússia e disparou contra a Ucrânia um novo míssil balístico com capacidade nuclear. A mensagem foi entendida como uma clara ameaça aos apoiantes da Ucrânia: não nos ponham à prova.
Mas, passados quase três anos de guerra, estes desenvolvimentos assumiram um ritmo familiar. De cada vez que a Ucrânia fazia um pedido - primeiro de tanques, depois de caças, depois de munições de fragmentação, depois de armas de longo alcance -, os seus aliados agonizavam sobre se o deviam conceder, temendo uma escalada do conflito e uma reação russa.
Em todas as vezes que o Ocidente aceitou os pedidos da Ucrânia, as ameaças mais catastróficas da Rússia não se concretizaram.
Apesar das ameaças crescentes de Putin, há poucas razões para acreditar que desta vez será diferente, afirmam analistas à CNN.
Em vez disso, dizem que a reação ansiosa aos poderes recentemente concedidos à Ucrânia é outro exemplo da estratégia bem-sucedida do Kremlin de forçar o Ocidente a ver o conflito nos termos da Rússia, confundindo cada nova tentativa da Ucrânia de resistir à agressão russa como uma grande “escalada”.
Paralelamente aos campos de batalha, o Kremlin tem-se empenhado numa luta para forçar o Ocidente a argumentar a partir de premissas russas e não das suas próprias, e a “tomar decisões nessa realidade alternativa do Kremlin que permitirá à Rússia vencer no mundo real”, afirmou o Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), um grupo de reflexão, num relatório de março.
Kateryna Stepanenko, coautora desse relatório, diz à CNN que a estratégia era um renascimento do conceito soviético designado “controlo reflexivo”, através do qual um Estado impõe um falso conjunto de escolhas ao seu adversário, forçando-o a tomar decisões contra os seus próprios interesses.
“Os persistentes debates ocidentais e os atrasos na ajuda militar ocidental à Ucrânia são um exemplo claro do êxito da estratégia de controlo reflexivo do Kremlin, o que comprometeu o Ocidente ”, afirma Stepanenko.
Esta estratégia pôde ser vista em ação esta quinta-feira, depois de a Rússia ter lançado um ataque em grande escala contra a rede elétrica da Ucrânia.
Embora Putin tenha dito que o ataque foi “uma resposta da nossa parte” à decisão da administração Biden sobre armas de maior alcance, a Rússia não precisou de um pretexto para tais ataques no passado.
As recentes mudanças de política dos aliados ocidentais da Ucrânia - que surgiram depois de a Rússia ter envolvido cerca de 11 mil soldados norte-coreanos no seu esforço de guerra - “não é uma escalada como o Kremlin está a tentar apresentar”, afirma Stepanenko. “A Rússia lançou uma invasão não provocada e em grande escala da Ucrânia e tem vindo a intensificar regularmente a guerra para manter a sua iniciativa no campo de batalha. A aprovação da utilização pela Ucrânia de sistemas de ataque de longo alcance contra a Rússia está finalmente a permitir à Ucrânia nivelar as suas capacidades.”
Políticas "absurdas"
A administração Biden enviou sistemas de mísseis táticos do exército, ou ATACMS, fabricados nos EUA para a Ucrânia no início deste ano, mas impôs condições rigorosas quanto à forma como poderiam ser utilizados: podiam ser disparados contra alvos russos na Ucrânia ocupada, mas não no território da Rússia.
William Alberque, ex-diretor do Centro de Controlo de Armas, Desarmamento e Não Proliferação de Armas de Destruição Maciça da NATO, considera que esta política fazia pouco sentido - e que beneficiava enormemente a Rússia.
Ao fornecer à Ucrânia ATACMS mas permitindo-lhe apenas atingir partes da Ucrânia ocupadas pela Rússia, “enviámos à Rússia a mensagem 'sabes que mais? se se moverem apenas alguns metros para lá da fronteira, estão seguros'”, diz Alberque à CNN.
“Tenho a certeza de que os comandantes russos não acreditavam na sua sorte: 'então se eu instalar o meu quartel-general aqui eles rebentam comigo, mas se me instalar a um quilómetro de distância estou bem? a sério? espetacular!'”.
Com efeito, esta política conduziu “à ideia de que a Rússia pode matar qualquer pessoa em qualquer parte da Ucrânia, mas a Ucrânia não pode matar as tropas que a estão a atacar se estiverem do outro lado da fronteira (na Rússia)”. Essa ideia é “absurda”, sublinha Alberque.
As ações da Ucrânia permanecem dentro das leis de conflito armado. Como o ministro dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Radoslaw Sikorski, disse à CNN em setembro, “a vítima de agressão tem o direito de se defender também no território do agressor”.
Mudança das linhas vermelhas
No meio das reações ansiosas aos desenvolvimentos da semana passada, é fácil esquecer que a Ucrânia há muito que lança drones de fabrico nacional contra alvos extremamente profundos na Rússia - e a Ucrânia já tinha disparado armas ocidentais contra território que o Kremlin considera seu. A decisão de disparar armas ocidentais de alcance ligeiramente mais longo é uma diferença de grau, não de género.
Durante mais de um ano, Kiev utilizou os Storm Shadows britânicos para atacar a Crimeia, que a Rússia ocupa desde 2014. Durante meses, Kiev foi autorizada a disparar ATACMS contra alvos russos na Ucrânia ocupada. Por lei, a Rússia considera estes territórios como seus e avisou que haveria consequências terríveis se a Ucrânia os atacasse com armamento ocidental.
Desde maio, Washington também autorizou Kiev a utilizar foguetes americanos de menor alcance para atingir alvos na Rússia, do outro lado da fronteira, a partir da região de Kharkiv, no nordeste da Ucrânia. Antes de o Presidente Joe Biden ter dado luz verde a essa decisão, Putin fez ameaças nucleares, alertando para o facto de a medida poder ter “consequências graves” para “países pequenos e densamente povoados”. Não foi o que aconteceu.
"Uma e outra vez, ficou provado que nada acontece realmente quando se ultrapassa uma falsa linha vermelha.” Mesmo assim, Alberque diz que as ameaças foram suficientes para impedir que o Ocidente desse à Ucrânia o que ela precisava para se defender.
Embora as ameaças tenham voltado a intensificar-se na sequência dos desenvolvimentos da semana passada, Alberque afirma que há poucas razões para suspeitar que desta vez seja de facto diferente. A perspetiva de uma nova administração de Donald Trump - há muito assumida como o resultado desejado por Putin - significa que a Rússia tem ainda menos probabilidades do que o habitual de concretizar as suas ameaças.
“O risco de que a Rússia venha a fazer algo que ponha em risco uma intervenção real dos Estados Unidos ou dos aliados da NATO, ou que mude fundamentalmente as atitudes globais em relação ao conflito, é relativamente baixo”, conclui Alberque.