Ataque ao hospital pediátrico de Mariupol poderá constituir um crime de guerra? “É difícil descrever a barbárie deste ataque”

10 mar 2022, 15:49
Voluntários e funcionários de emergência ucranianos carregam uma grávida ferida pelos ataques que atingiram o hospital pediátrico de Mariupol (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

O bombardeamento fez três mortos, incluindo uma criança. Amnistia Internacional Portugal salienta que é preciso uma investigação independente, mas o seu diretor-executivo, Pedro Neto, vê "indícios" de que o ato poderá “constituir um crime de guerra”

O 14.º dia da invasão russa à Ucrânia ficou marcado pelo bombardeamento de um hospital pediátrico em Mariupol, a cidade no sudeste da Ucrânia que está cercada pelas tropas russas e onde já terão morrido mais de mil civis durante o conflito.

Através do seu Centro de Comunicações Estratégicas e Segurança da Informação, a Ucrânia confirmou que o ataque russo causou três mortos, incluindo uma criança, e 17 feridos, entre crianças, mulheres e pessoal médico.

O ataque foi veementemente condenado pelo presidente Volodymyr Zelensky, que reiterou o pedido ao Ocidente, mais concretamente à NATO, para que seja decretada uma zona de exclusão aérea sobre o país.

"Há pessoas entre as ruínas, há crianças entre as ruínas. Isto é uma atrocidade. Quanto tempo mais vai o mundo ser cúmplice ignorando o terror? Fechem o espaço aéreo imediatamente. Parem a matança imediatamente", escreveu Zelensky nas redes sociais, partilhando um vídeo da destruição.

Também António Guterres, secretário-geral da ONU, condenou o bombardeamento. “Os civis estão a pagar o preço mais alto por uma guerra que não tem nada a ver com eles. Esta violência sem sentido deve parar. Acabem com derramamento de sangue agora”, afirmou António Guterres numa pequena mensagem publicada no Twitter.

O ataque, que o Kremlin garantiu ser “fake news”, foi classificado por vários responsáveis políticos ucranianos e internacionais, como o próprio presidente Zelensky, o chefe de Estado polaco, Andrzej Duda, e o ministro da Defesa britânico, James Heappey, como um “crime de guerra”.

Pedro Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, sublinha o facto de haver “muitas variantes” a investigar neste caso como, por exemplo, saber que alvos procuravam os russos atingir com este ataque. No entanto, de acordo com os “indícios” de que dispõe “neste momento”, a organização acredita que o bombardeamento “pode constituir um crime de guerra”.

“Há atenuantes que podem aparecer. Por exemplo, se ao pé do hospital houver instalações de artilharia da Ucrânia ou se o próprio hospital albergar armamento ou militares. É preciso averiguar tudo, as proximidades, as motivações do ataque. No entanto, muito provavelmente não haveria qualquer instituição militar na zona. Os indícios de que dispomos levam-nos a acreditar que pode constituir um crime de guerra”.

Na alínea b) do artigo 8º do Estatuto de Roma, assinado em 1998 e que entrou em vigor em 2002, há vários exemplos do que pode ser classificado como crime de guerra. Entre eles, encontra-se este:

  • “x) Os ataques intencionais a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares”.

Lembrando o ataque no dia 3 de março em Chernihiv, que a Amnistia Internacional já considerou como crime de guerra e no qual 47 pessoas “que estavam na fila para o pão perderam a vida com um ataque indiscriminado”, Pedro Neto afirma que o bombardeamento do hospital pediátrico de Mariupol, não se verificando nenhum dos fatores previamente mencionados, “é ainda mais dramático”.

“Choca-nos ainda mais a crueldade deste ataque. É crueldade e maldade pura. Atingiu e feriu crianças, mulheres em trabalho de parto, mulheres grávidas. É difícil descrever a barbárie deste ataque”.

Não podendo nem a Ucrânia nem a Rússia investigar de forma independente este incidente, o diretor-executivo da Amnistia Internacional apela a uma terceira parte, neste caso o Tribunal Penal Internacional (TPI), para averiguar a ocorrência.

“Apelo a que os investigadores do TPI se possam dirigir ao local o mais depressa possível, para que recolham todas as provas e testemunhos possíveis para que, no caso de se confirmar um crime de guerra, seja também levado para Haia”.

Pedro Neto deixou ainda críticas ao governo russo e à embaixada do país em Portugal, que ontem lançou um comunicado no qual garantia que o exército russo “não ocupa o território ucraniano e toma todas as medidas necessárias para preservar vidas e segurança dos civis” e que as tropas ucranianas “estão a utilizar infraestruturas civis e população como escudos humanos”.

“É uma retórica que não colhe. Dizem que é uma ‘operação especial militar’ e que são alvo de ‘fake news’. Sabemos bem que é o regime de Putin o especialista em divulgar notícias falsas”, atirou.

Caso se confirmem os crimes de guerra, o que poderia acontecer à Rússia?

A provar-se não só este crime de guerra, mas também os outros de que é acusada – o que levará tempo – “não é a Rússia que será responsabilizada e julgada mas sim indivíduos que serão levados à justiça internacional”, assegura Daniela Nascimento. 

“À luz do Estatuto de Roma, qualquer indivíduo que seja comprovadamente responsável ou que tenha tido um papel decisivo na autorização destes crimes de guerra, pode ser julgado ou condenado, independentemente da sua patente, no caso dos militares, ou do cargo de chefia político que possa ocupar”, refere a investigadora do Centro de Estudos Sociais.

E, deste modo, Vladimir Putin, enquanto presidente e estratega da guerra, é o número um da lista, o que tornará o processo ainda mais difícil. “O Tribunal Penal Internacional nasce com a intenção de responsabilizar os dirigentes do Estado e Putin seria julgado, condenado e preso”, afirma Elizabeth Accioly, especialista em Direitos Internacionais e professora na Universidade Europeia.

Quanto ao tipo de pena de prisão que poderia ser aplicada numa condenação por crime de guerra, Elizabeth Accioly diz que o TPI “prevê a prisão perpétua”, mas que esse tema é “algo que foi muito discutido porque muitos Estados não preveem a prisão perpétua - e quando assinaram fizeram uma ressalva com essa questão da prisão perpétua”, ficando o tempo de pena efetiva dependente de cada situação.

Assim que sejam “comprovados os factos e identificados os responsáveis, o próximo passo é levá-los até Haia”, explica Daniela Nascimento, que reconhece que, no caso desta guerra e pelo simples facto de ser Vladimir Putin um dos protagonistas, o cenário torna-se mais complexo. “É muito difícil ir à Rússia e levá-los [os responsáveis acusados] a Haia.” Porém, uma vez que “o TPI depende muito da cooperação dos Estados-membros”, se Putin e outros acusados estiverem fora de solo russo, poderá ser mais fácil levar avante o mandado de captura.

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