A Rússia revela as suas verdadeiras intenções ao atacar o porto de Odessa horas depois de assinar o acordo sobre os cereais

CNN , Análise de Nic Robertson
25 jul 2022, 14:26

Esta falta de clareza é comum nas autoridades russas - e é essa a questão

O líder das Nações Unidas, António Guterres, parecia ao mesmo tempo aliviado e apreensivo quando o acordo relativo à exportação de cereais, por ele negociado, foi assinado à sua frente em Istambul, na sexta-feira.

Imediatamente após as assinaturas da Rússia, da Ucrânia e da Turquia, a intermediária, o Secretário-Geral da ONU disse que o acordo oferecia um “sinal de esperança”, anunciando ajuda alimentar para o mundo em desenvolvimento.

Infelizmente para Guterres e para todos aqueles que contavam com o tão necessário alimento, os meses que ele passou em penoso trabalho diplomático - incluindo visitas a Moscovo e a Kiev para conseguir o acordo – apenas trouxeram à luz do dia as limitações de confiar na Rússia.

Não há um cessar-fogo explícito no acordo, mas as obrigações da Rússia estavam claramente definidas: “A Federação Russa comprometeu-se a facilitar a exportação de alimentos, de óleo de girassol e de fertilizantes”, disse o gabinete de Guterres em comunicado.

Menos de 24 horas após a assinatura, a calma pós-acordo em Odessa - o principal porto mencionado no acordo - foi quebrada quando dois mísseis cruzeiro russos Kalibr, lançados do mar, atingiram o porto.

As janelas de edifícios a 1,5 quilómetros de distância estilhaçaram-se. Os bombeiros correram para o porto para apagar os fogos em vários barcos. Segundo as autoridades, um funcionário do porto ficou ferido.

Os danos poderiam ter sido muito piores. Dois outros mísseis de precisão de 6 milhões de dólares foram abatidos pela defesa aérea da Ucrânia. As pessoas que frequentam a praia em Odessa, e que ainda no ano passado disputavam lugares na areia com os turistas russos, aplaudiram quando os mísseis foram abatidos, mesmo por cima das suas cabeças.

O aparente remate da Rússia ao acordo dos cereais que assinou foi lamentado pela Ucrânia e pelos seus aliados - e amplamente considerado como uma prova da duplicidade russa.

Falando à CNN poucas horas após o ataque, o membro do parlamento ucraniano Oleksiy Goncharenko disse que a Rússia está “a mostrar que quer continuar a ameaçar a segurança alimentar do mundo.”

“O ataque lançou sérias dúvidas sobre a credibilidade do empenho da Rússia”, disse o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acrescentando que “prejudica o trabalho da ONU, da Turquia e da Ucrânia de fazer chegar os alimentos essenciais aos mercados mundiais.”

“Mostra que não há uma única palavra [do presidente russo Vladimir Putin] que seja de confiança”, disse Liz Truss, Ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido - e potencial próxima primeira-ministra.

Foto cedida pelo gabinete de imprensa da Câmara Municipal de Odessa a 23 de julho de 2022

De forma incrível, a resposta inicial da Rússia aos relatos do ataque foi a negação.

Segundo a Turquia - cossignatária do acordo e mediadora da sua implementação segura e justa - o Kremlin disse a Ancara “em termos inequívocos” que “não tinha nada que ver com este ataque.”

No entanto, apenas 12 horas depois, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Maria Zakharova, anulou a mentira inicial. Disse que, afinal, tinham sido ataques russos, e afirmou que o ataque destruiu a “infraestrutura militar” ucraniana no porto.

A Ucrânia disse que os ataques atingiram uma estação de bombeamento no porto de Odessa.

Esta falta de clareza é comum nas autoridades russas - e é essa a questão. O acordo dos cereais não mudou nada no cálculo de Moscovo para travar a guerra, apesar de todo o difícil trabalho diplomático de Guterres.

E o dano aqui causado não serve só para lembrar ao mundo a relação ambígua de Moscovo com a verdade. A Rússia também queimou a boa-fé do intermediário no acordo, a Turquia.

Sob os termos do acordo, a Turquia está a criar um Centro de Comando Conjunto (JCC) com a ajuda da ONU para monitorizar o cumprimento do acordo. Mas a Rússia já arruinou toda a confiança ao manter a sua abordagem cínica face à guerra na Ucrânia.

A invasão russa a um dos celeiros do mundo causou a insegurança alimentar global, mas Moscovo conseguiu concessões, através do acordo, para permitir o fluxo dos cereais da Ucrânia. Isso tem um nome: extorsão.

Para conseguir que a Rússia libertasse os cereais, pondo fim aos bloqueios nos portos ucranianos, Guterres teve de fechar um acordo paralelo com a Rússia, aliviando efetivamente algumas sanções sobre os alimentos e os fertilizantes. Representantes da ONU explicaram a manobra diplomática como “baseada no princípio de que as medidas impostas à Federação Russa não se aplicam a esses produtos.”

O alívio dessas sanções levará dinheiro aos cofres de Moscovo - algo que talvez seja a lição duradoura do acordo de Guterres: Putin fará concessões limitadas em troca de dinheiro.

Mas, ao fazê-lo, Putin talvez tenha revelado, como o Smaug de Tolkien, uma vulnerabilidade potencialmente fatal das suas defesas. A fraqueza do dragão mítico era uma escama que faltava, e a de Putin parece ser a ferradela económica das sanções internacionais. Quaisquer que sejam as suas outras razões para concordar com o acordo, a necessidade de pagar a guerra deve pesar mais.

Falando em Istambul após o ataque com mísseis de sábado, o ministro-adjunto das infraestruturas da Ucrânia, Yurii Vaskov, disse que as reuniões técnicas para implementar o acordo estão em andamento.

“A Ucrânia está decidida a iniciar a exportação dos cereais o mais depressa possível”, disse ele.

O “ataque da Rússia também está na agenda”, acrescentou Vaskov.

Guterres estava certo em ter esperança. A futura eficácia do Conselho de Segurança da ONU depende da capacidade dele de impedir a Rússia de agravar a guerra por ela iniciada. Mas se Guterres já estava apreensivo na assinatura do acordo, na sexta-feira, nada do que viu até agora terá aplacado os seus receios. Muito menos as declarações do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, no domingo, a embelezar o acordo, alegando que os navios russos ajudariam a escoltar os cargueiros. Uma declaração que, tal como o ataque com mísseis, pretende apenas provocar a Ucrânia.

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