"A Europa mudou para sempre". Como a guerra uniu a resposta europeia para travar Putin

CNN , Análise de Luke McGee
5 mar 2022, 18:00
Bandeiras da União Europeia e da Ucrânia. Foto: AP

Qualquer que seja o resultado final da invasão da Ucrânia pela Rússia, o presidente Vladimir Putin conseguiu uma coisa: o mapa de segurança da Europa foi fundamentalmente alterado e as coisas nunca voltarão a ser como eram.

Em todo o continente, e principalmente na União Europeia, foram tomadas decisões que seriam impensáveis há apenas algumas semanas. No espaço de alguns dias, Bruxelas foi mais longe na sua demanda por se tornar uma potência geopolítica por sua própria iniciativa, do que o fez em décadas.

O choque do regresso da guerra ao continente uniu os 27 estados-membros da UE, já que o bloco aprovou não só o pacote de sanções mais forte jamais imposto, como também concordou em comprar e fornecer armas aos ucranianos.

Historicamente, o bloco está dividido sobre exatamente quanto controlo central Bruxelas deve ter sobre a política externa. Isso sempre foi um obstáculo às grandes ambições globais da UE, já que as propostas políticas eram diluídas nas negociações ou simplesmente vetadas. E, segundo uma pesquisa do Parlamento do Reino Unido, a grande maioria dos estados-membros da UE que também são membros da NATO não atinge há mais de uma década a meta de gastos em defesa de 2%.

“A crise na Ucrânia destruiu a ilusão de que a segurança e a estabilidade na Europa são de graça”, disse um diplomata europeu à CNN. “Quando não havia uma ameaça real, a geopolítica parecia algo distante. Agora, há uma guerra na nossa fronteira. Agora sabemos que temos de pagar e agir em conjunto.”

Não foi apenas a agressão de Putin que despertou a Europa do seu torpor. O diplomata explicou que, em conversas com colegas, foi registada a liderança que o presidente dos EUA, Joe Biden, assumiu na coordenação da resposta do Ocidente.

“Um grande medo nas capitais europeias: o que teria acontecido se Biden não estivesse na Casa Branca, neste momento? Ninguém acredita seriamente que Trump teria lidado bem com isto e podemos tê-lo a ele ou alguém como ele de volta, daqui a uns anos. Efetivamente, isso significa que temos de assumir que estamos sozinhos”, acrescentou o diplomata.

Talvez a mudança mais significativa e simbólica nos últimos dias tenha vindo da Alemanha. O estado-membro mais rico e indiscutivelmente mais poderoso da UE anunciou que mais do que duplicará os seus gastos com a defesa, com um orçamento militar para 2022 estimado em 100 mil milhões de dólares.

Não há muito tempo, a maioria dos políticos alemães e vários políticos por toda a Europa, não se sentiam à vontade com a ideia de o país ter uma grande presença militar, por razões históricas óbvias.

Mas, mais uma vez, a situação na Ucrânia mudou tudo.

“Com base nas conversas dos últimos dias, a maioria dos líderes europeus agora parece à vontade com um enorme exército alemão, se estiver firmemente ancorado na EU”, diz o diplomata, sublinhando que há apenas alguns meses, até colocar as palavras “União Europeia” e “exército” na mesma frase provocaria indignação na maioria das capitais europeias.

Um cínico pode pensar que a união e a determinação da Europa só aconteceram por causa de uma crise singular e uma ameaça pontual à segurança do continente.

No entanto, vários funcionários europeus e da NATO disseram à CNN que não há um futuro em que a Europa possa simplesmente voltar a ser o que era.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi aplaudido de pé pela sua intervenção, por videoconferência, no Parlamento Europeu.

Se a Ucrânia cair, então uma Rússia beligerante terá expandido enormemente a sua fronteira terrestre com a União Europeia.

Mas se a Ucrânia se mantiver firme e obrigar à saída das tropas russas, então teremos um Putin ferido e imprevisível a cismar no Kremlin. E como disse esta semana ao “Politico” a antiga assessora da Casa Branca para a Rússia, Fiona Hill, quando questionada sobre se Putin usaria as suas armas nucleares: “Sim, usaria.”

Um alto funcionário de Bruxelas disse à CNN que, ainda agora, os estados-membros consideram a influência russa demasiado próxima para se sentirem confortáveis. “A Finlândia partilha uma enorme fronteira terrestre com a Rússia. As frotas romenas partilham o Mar Negro com a marinha russa. Depois de meses de pessoas a dizer que ele não entraria na Ucrânia, ele entrou. Esta é uma situação realmente muito assustadora.”

O funcionário explicou que, ao longo da semana passada, “decisões que levariam anos a tomar demoraram apenas alguns dias porque a Europa mudou para sempre. Simplesmente não temos mais tempo para a inação e a complacência.”

Outra mudança notável que aconteceu nos bastidores, em Bruxelas, é a atitude das chamadas “nações neutras” da UE (Áustria, Irlanda, Finlândia e Suécia). São países que se consideram militarmente não-aliados, embora tenham ligações políticas à UE e aos seus aliados globais.

“Acho que entendemos agora que fazer questão de ser neutro e não fazer parte da NATO não é sinónimo de segurança”, disse um conselheiro em relações externas da UE à CNN.

Uma das principais razões para a resposta ocidental, especialmente na Europa, ter sido tão invulgarmente coordenada é que a UE e a NATO trabalharam inesperadamente bem. Funcionários de ambas as instituições disseram que isso acontece porque, pela primeira vez, ambas as instituições mantiveram as suas competências e trabalharam em sintonia.

Incêndio em Kharkiv após bombardeamentos da Rússia, a 2 de março de 2022.

Bruxelas tem resistido a usar a crise para apelar a um exército da UE, algo que historicamente levou a discussões amargas entre os estados-membros. Alguns acreditavam que isso prejudicaria a NATO e tornaria a Europa menos segura, enquanto outros suspeitavam que os que eram mais a favor o usariam para conduzir uma visão particular da Europa como um estado federal.

Um funcionário do governo de um dos estados-membros neutros da UE disse que a maioria das pessoas agora aceita que não haveria “uma vantagem adicional num exército da UE. A nossa arma mais forte são as sanções económicas, enquanto que a NATO pode tratar da estratégia política e militar.”

Acrescentaram que o “importante agora é garantir que a relação entre a UE e a NATO continue a funcionar bem” nos meses que se seguem, apelidando a resposta conjunta à crise da Ucrânia de um “plano” para o futuro.

As ideias europeias sobre defesa, segurança e relações externas evoluíram anos-luz em poucos dias. Desperta agora de um sonho de décadas de que a estabilidade proporcionada por um mundo interligado impediria a guerra e que, se o pior acontecesse, os Estados Unidos resolveriam o problema.

Vislumbram-se muitos meses penosos pela frente, acabe como acabar esta crise. E para que a Europa saia deles mais forte e segura, precisa de se basear nos progressos feitos nas últimas semanas.

Se não o fizer e regressar ao pensamento ilusório do passado, poderá descobrir que a próxima crise a abater-se sobre o continente não poderá ser corrigida com sanções rápidas e a entrega de dinheiro a terceiros, como acontece com a Ucrânia. Especialmente se essa crise acontecer dentro das próprias fronteiras do bloco.

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