“Zelensky vai sair de Ancara com algo que não se pode medir em mapas: credibilidade acrescida, capital diplomático, e a capacidade de continuar a isolar a Rússia na arena internacional sem precisar de disparar um único míssil”
Há momentos na política internacional que não se medem pelo número de tanques no terreno ou pelas palavras redigidas em comunicados oficiais. Medem-se pelo silêncio, pelo desconforto, pelas ausências que se tornam presenças. Como uma sala preparada para uma conversa que não aconteceu, mas que ainda assim disse tudo. Ontem, em Ancara, foi Volodymyr Zelensky quem protagonizou esse gesto. E talvez, ao fazê-lo, tenha conseguido mais do que se esperava — não por aquilo que foi dito, porque não houve encontro, mas pelo contraste entre quem apareceu e quem preferiu ficar em casa. Quem deseja verdadeiramente a paz e quem apenas procura enganar toda a gente.
Zelensky viajou até à Turquia com um propósito claro: demonstrar, sem equívocos, que a Ucrânia quer encerrar uma guerra que há mais de dois anos devasta o seu território. Não levou ultimatos, não levou exigências maximalistas, levou apenas uma presença política com um significado devastador. O presidente ucraniano não se sentou diante de representantes do Kremlin — sentou-se diante de um vazio. Um vazio cuidadosamente preparado, ocupado por cadeiras que ficaram por preencher. Uma mise-en-scène que se transformou em manifesto.
A ausência de Vladimir Putin — substituído por figuras sem autoridade — não foi apenas uma recusa de diálogo. Foi um cálculo, uma tentativa falhada de manter o jogo diplomático sob controlo, enquanto se prolonga a ocupação no terreno e os ataques. Mas ao não comparecer, Putin ofereceu a Zelensky aquilo que este procurava: a imagem de um interlocutor que não teme sentar-se à mesa, mesmo que seja o único nela presente. Quando todos os protagonistas hesitam ou se escondem, o único gesto verdadeiramente revolucionário é mostrar que se está disponível para falar.
Este episódio não surgiu isoladamente. É a consequência direta da recente visita de vários líderes europeus a Kiev — uma visita que, por si só, alterou o equilíbrio político das últimas semanas. Ao deslocarem-se à capital ucraniana, figuras como Macron, Merz ou Tusk reforçaram o envolvimento europeu no conflito. Não só como fornecedores de armamento, mas como agentes de uma proposta diplomática: um cessar-fogo imediato, uma trégua para permitir que a política recupere espaço na equação.
Essa proposta, desenhada com o objetivo de iniciar já na passada segunda-feira uma suspensão das hostilidades, colocou Putin numa posição desconfortável. Aceitar significaria reconhecer que a Ucrânia mantém legitimidade territorial e política. Recusar, por outro lado, obriga o Kremlin a mostrar aquilo que realmente pretende: não negociar, mas prolongar a guerra até que a exaustão do Ocidente lhe conceda uma vitória por inércia. Engano crasso de Putin ao julgar que o Ocidente acabará por deixar a Ucrânia à sua sorte.
Foi nesse dilema que a viagem de Zelensky a Ancara se transformou em algo mais do que um gesto diplomático. Ao marcar presença, mesmo na ausência do outro, o líder ucraniano inverteu a narrativa. Em vez de um dirigente em busca de apoio, apresentou-se como o único responsável presente. E ao fazê-lo, ofereceu ao mundo uma escolha desconfortável: ou se apoia quem está disponível para negociar, ou se aceita a chantagem de quem transforma a ausência em estratégia.
Há, claro, quem veja nesta deslocação uma encenação, um gesto sem efeitos concretos. Mas essa leitura esquece que a política internacional vive também de símbolos — e que, por vezes, um gesto bem executado pode ter mais impacto do que uma ofensiva militar. Zelensky vai sair de Ancara com algo que não se pode medir em mapas: credibilidade acrescida, capital diplomático, e a capacidade de continuar a isolar a Rússia na arena internacional sem precisar de disparar um único míssil.
É essa reconfiguração que agora se torna relevante. Ao falhar em Ancara, Moscovo não só perdeu uma oportunidade de controlar o ritmo das negociações, como expôs a sua falta de seriedade. A diplomacia russa, já desgastada pela repetição de narrativas contraditórias, tropeçou na própria encenação. Tentou ganhar tempo — e perdeu margem de manobra.
Neste novo ciclo, a Ucrânia não surge como vítima passiva nem como potência desesperada. Surge como o ator político que ainda acredita que é possível devolver à palavra “paz” um sentido concreto. E por isso se move, se desloca, arrisca. Numa altura em que os Estados Unidos hesitam — com Donald Trump a afirmar que só ele poderá resolver o conflito, mas sem demonstrar qualquer pressa em fazê-lo —, a Europa começa, apesar de tudo, a encontrar voz, Merz. E Zelensky, mais uma vez, mostrou saber como escutá-la e usá-la.
Ancara, para já, não resolveu nada. Não trouxe acordos, nem cessar-fogos. Mas fez algo talvez mais importante: expôs as intenções reais dos protagonistas. A ausência de Putin já não pode ser lida como prudência — é recusa. E a presença de Zelensky, por mais solitária que tenha sido, serviu para lembrar que ainda há quem leve a paz a sério.
No xadrez internacional, nem sempre ganha quem avança com mais força. Às vezes, basta mostrar que se está disposto a jogar limpo — mesmo quando o adversário abandona o tabuleiro.