"Já não tenho medo do escuro." Órfão ucraniano encontra esperança com nova família

CNN , Salma Abdelaziz e Dennis Lapin
20 nov 2022, 09:00

Quando as forças russas invadiram o seu país no final de fevereiro, Vladimir Bespalov e Maria Bespalaya recearam que o sonho de ambos de constituir família através da adoção tivesse acabado.

“Lembro-me muito bem daquela manhã de 24 de fevereiro”, disse Vladimir Bespalov, um trabalhador ferroviário de 27 anos, sobre o primeiro dia da guerra. “Pensámos que era demasiado tarde. Percebemos que já estávamos em estado de guerra e julgámos que já não poderíamos adotar.”

Porém, a situação levou o casal a tentar fazê-lo mais cedo, disse. “Estávamos à espera de ganhar mais dinheiro, de ter um carro melhor, de comprar uma casa e construir algo para termos o que dar aos nossos filhos. Mas, quando a guerra começou, pensámos que podíamos adotar uma criança naquele momento e alcançar essas coisas juntos, como uma família.”

Naquele dia, o casal que residia no leste da Ucrânia, publicou um apelo nas redes sociais.

“Queremos adotar qualquer menino ou menina, qualquer recém-nascido ou criança”, podia ler-se.

Semanas depois, a mensagem acabaria por chegar a um voluntário que estava a ajudar as pessoas que fugiam de Mariupol, cidade a sul que se tornou emblemática da implacável campanha do presidente russo Vladimir Putin para ocupar território ucraniano, a qualquer custo.

Durante semanas, os moradores foram obrigados a esconder-se enquanto as tropas russas atacavam a cidade com artilharia. Agora é uma zona devastada, com quase todos os edifícios danificados ou destruídos, e um número desconhecido de mortos sob os escombros.

Entre os sobreviventes estava Ilya Kostushevich, de 6 anos, órfão e sozinho. Ambos os pais foram mortos na primeira semana da guerra.

Ilya Kostushevich, que ficou órfão durante o ataque russo a Mariupol, vive agora em Kiev. Créditos: Maria Bespalaya

A polícia disse mais tarde a Bespalov e a Bespalaya que a mãe do menino foi atingida pela artilharia russa quando saiu de casa para procurar comida para a família.

Sem saber do paradeiro da mulher, o pai de Ilya foi procurá-la no dia seguinte, mas também acabou por ser morto pelos bombardeamentos do exército de Moscovo, disse a polícia.

O pequeno Ilya contou como foi deixado na casa de um vizinho, onde se escondeu durante semanas, com desconhecidos, numa cave fria e escura.

Ele ficou com tanta fome que começou a comer os brinquedos, disse Bespalaya.

“Os homens ingeriam bebidas alcoólicas e os filhos desses vizinhos metiam-se com ele. Ele estava a morrer de fome e de frio”, disse Bespalaya à CNN, num sussurro. Ela tem cuidado para não falar demasiado à vontade da experiência traumatizante de Ilya à frente dele, mas o menino contou à mulher que agora chama “mãe” tudo sobre as três semanas aterrorizantes na cave.

Bespalov e Bespalaya são agora os tutores legais de Ilya. Há mais de seis meses que são uma pequena família e planeiam adotá-lo formalmente o mais depressa possível. Por causa da lei marcial, todos os processos de adoção estão atualmente suspensos na Ucrânia.

Ilya, ao centro, encontrou uma nova felicidade com Vladimir Bespalov e Maria Bespalaya, depois de perder ambos os pais na primeira semana da guerra. Créditos: Maria Bespalaya

 

O casal tenta dar a Ilya uma vida o mais normal possível em tempos de guerra. Créditos: Maria Bespalaya

Como todos os pais, o jovem casal é altamente protetor de Ilya, protegendo-o dos horrores da guerra da melhor maneira possível e tentando dar-lhe uma sensação de segurança e estabilidade.

“Tentamos parar de pensar nos combates para conseguirmos passar tempo com o nosso filho. Tentamos criar memórias de uma infância normal. O nosso trabalho consome tempo, mas passamos todos os momentos livres juntos”, disse Bespalov, cujo emprego crucial como trabalhador ferroviário não o levou a ser chamado para o serviço militar.

Mas não há nada de normal na guerra. Depois de publicarem o apelo no Instagram, o casal preparou dois quartos que tinha vagos para a possível chegada de uma criança - um deles com um berço branco e roupa de cama azul e outro com um beliche e muitos brinquedos.

Bespalaya trabalhou muitos anos num orfanato e sentia-se pronta para o desafio de criar uma criança, independentemente das circunstâncias.

“Deixei completamente de recear a adoção. Estava confiante de que teríamos um filho e de que poderíamos cuidar de qualquer criança, fosse qual fosse a sua personalidade”, disse à CNN.

Mas esse plano também foi destruído pela guerra. Assim que começou, os dois foram obrigados a deixar a casa que tinham em Slovyansk, uma cidade na região da linha de frente de Donetsk, e fugir para Kiev.

“Perdemos a nossa estabilidade. Ficámos ambos desempregados e sem nossa casa. Perdemos todas as nossas poupanças, perdemos absolutamente tudo”, disse Bespalaya.

“Mas acabámos por ganhar muito mais.”

Em abril, receberam finalmente o telefonema pelo qual esperavam de um voluntário em Mariupol. Havia um menino sem pais. O casal poderia cuidar dele?

Na manhã seguinte, iniciaram a viagem de carro de dois dias para Dnipro, onde Ilya estava escondido, para conhecer o menino que se tornaria parte da família.

Maria Bespalaya, Ilya Kostushevich e Vladimir Bespalov sentam-se juntos no banco de um jardim infantil em Kiev. Créditos: Dennis Lapin/CNN

De volta a Kiev, passaram por um complexo processo de quatro meses para se tornarem os tutores legais de Ilya, um processo que envolveu falar com terapeutas, ir a muitas consultas médicas, fazer verificações de antecedentes criminais e uma investigação do governo para garantir que o menino não tinha mesmo outros familiares vivos. Vários doadores, incluindo o clube de futebol Shakhtar Donetsk, ajudaram a dar o apoio financeiro que permitiu à família encontrar uma casa confortável.

“Agora temos esse amor, o amor que nos torna uma família. Não tivemos este bebé, mas o nosso amor é verdadeiro”, disse Bespalaya, enquanto abraçava Ilya, sentado entre ela e Bespalov no banco de um jardim infantil em Kiev.

Apesar da felicidade enquanto nova família, a vida é mais difícil para Ilya à noite, quando a capital sofre apagões causados ​​pelos ataques contínuos da Rússia à rede elétrica - deixando a família sem eletricidade durante horas a fio.

“Às vezes ele fica com medo”, disse Bespalaya. “Fica histérico e vai dizer-me que é como estar de volta a Mariupol, no escuro.”

Mas o pequeno Ilya está a aprender a ultrapassar tudo. Enquanto brincava com o casal numa sala iluminada por velas, durante uma das falhas de eletricidade, ele olhou para cima e disse: “Já não tenho medo do escuro. Sei que a luz vai voltar a acender.”

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