Entrevista à diretora executiva da Amnistia Internacional da Ucrânia: "Autoridades russas retiram crianças dos territórios ocupados e transferem-nas para igrejas russas"

17 mai 2022, 01:03

Oksana Pokalchuk está em Portugal e em entrevista à CNN Portugal apela à reformulação do sistema internacional para punir crimes de guerra.

Oksana Pokalchuk trabalhou no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Com a anexação da Crimeia e a Revolução da Dignidade, em 2014, sentiu que precisava fazer mais. Juntou-se à Amnistia Internacional Ucrânia, da qual é diretora executiva. Nos primeiros dias da guerra concentrou-se em assegurar a segurança da sua equipa e definir prioridades. Recebeu uma equipa de investigadores da Amnistia Internacional e com eles visitou localidades na Ucrânia para recolher informações sobre crimes de guerra.

“Em Borodyanka, investigamos algumas casas que foram diretamente, precisamente, atingidas por rockets do exército russo. E nesse momento havia mais de 40 pessoas. E os russos sabiam disso porque era uma casa grande onde as pessoas viviam. A Rússia usa ataques indiscriminados contra civis e mata civis”, diz Oksana Pokalchuk.

Tem informações do que se passa nos territórios ocupados pelas tropas russas?

Temos alguma informação, claro, mas não o suficiente.  Mas podemos dizer abertamente que os soldados russos têm feito execuções nos territórios ocupados, diferentes formas de torturas… Quando falo de execuções, estou a falar de assassinatos extrajudiciais.

As tropas russas também têm usado a violação sexual como arma de guerra?

Sim, eu conheci pessoas que são sobreviventes de diferentes formas de violência sexual. São histórias diferentes. Não tenho uma frase para resumi-las a todas. São situações diferentes, histórias diferentes… Todas elas são horríveis. Algumas delas passaram por isso em aldeias onde todos se conhecem. Elas não podem viver mais nessas aldeias. Nós ainda temos uma sociedade muito patriarcal e ter uma experiência como esta vai colocar alguma pressão na sobrevivente para o resto da sua vida. Uma mulher disse-me “Eu não quero voltar. Tenho medo de voltar para a minha aldeia porque vão todos olhar para mim”. Algumas perderam a família nas suas casas, depois de passarem pela violência sexual. E não conseguem voltar porque como é que conseguimos viver na casa onde o nosso marido foi morto? Ou a nossa mãe foi morta? Ou a nossa irmã, juntamente com a mãe e o pai? E nós sobrevivemos porque decidiram violar-nos?”

Acha que vai ser feita justiça? Acha que estes crimes vão ser julgados?

A resposta curta é não. A maioria das provas já foram perdidas para sempre. Não conseguimos preservar essas provas e nem era possível. Estas pessoas têm vivido sob ocupação durante meses depois do que lhes aconteceu. E a maioria ainda não consegue falar. A maioria está em algum país europeu a tentar recuperar física e psicologicamente.

E o que sabe dos chamados “campos de filtragem” russos?

Conheço pessoas que passaram por esses campos de filtragem. Mas eles tiveram muito sucesso porque, temos de perceber, depende muito do local. Não é um campo enorme de filtragem. São diferentes lugares, em diferentes partes da Rússia. As pessoas são literalmente retiradas de, por exemplo, Mariupol ou aldeias à volta, e são enviadas para um lugar na Rússia onde ficam algum tempo. É uma área restrita, não podem sair desse edifício, ou o que seja. Todos os documentos são lhes retirados. Procuram por tatuagens no corpo, fazem uma pesquisa sobre eles no Google, tiram-lhes o telemóvel, pesquisam nas redes sociais… Tentam perceber se essa pessoa apoia de alguma forma o exército ucraniano ou o país em si. Se sim, ainda não sabemos o que está a acontecer a essas pessoas… Só conhecemos aqueles que conseguiram não ser associados. E eles conseguiram porque os que os investigavam, não sabiam como fazê-lo de forma eficaz. Peço desculpa em dizer isto, mas foi isso que lhes salvou a vida. Porque essas pessoas que eu conheço são ativistas conhecidos.

E em relação ao tráfico de crianças?

Na Ucrânia temos a informação de que as autoridades russas retiram crianças dos territórios ocupados e transferem-nas para igrejas russas. Porquê para igrejas? E o que é que as igrejas fazem depois com essas crianças? Não sabemos. Ainda temos igrejas russas na Ucrânia e é através dessas ligações que a informação tem passado para a Ucrânia. Mas se é verdade ou não, terá de ser investigado de forma adequada. Não é possível fazê-lo agora porque a maioria das organizações internacionais estão proibidas na Rússia, as organizações locais não podem trabalhar corretamente por isso não sei quando é que vamos conseguir obter essa informação. Eu acho que a igreja russa colocou-as em mosteiros.

Acha que estão a ser treinadas? Ou a sofrer uma lavagem cerebral?

Acho que vão sofrer uma lavagem cerebral.

Esta pergunta talvez seja mais difícil, mas as tropas ucranianas também terão cometido crimes?

Não é uma pergunta difícil. É uma boa pergunta. Vamos ter informações sobre crimes cometidos pelo lado ucraniano quando os territórios ocupados forem libertos. Porque agora não temos acesso a esses territórios para conseguir informações sobre que armas foram usadas. Sabe? Para fazer uma investigação adequada…

Mas acredita que os ucranianos também tenham cometido crimes?

É impossível estar em guerra e seguir regras. É isso que eu digo. Talvez todos nós tenhamos que repensar essas regras. A realidade mostra-nos algo. Talvez tenhamos que desenvolver novas regras que realmente, na prática, vão dar oportunidade para salvar mais civis. Esse é o grande objetivo. Não palavras bonitas numa qualquer convenção. Precisamos de metodologias a sério em como salvar mais pessoas.

No seu discurso no Conselho dos Direitos Humanos da ONU disse que a Ucrânia precisa de uma “ampla solidariedade global”. Na sua opinião, o que é que a comunidade internacional pode fazer mais?

Acredito que esta é uma grande oportunidade para a comunidade internacional repensar a ordem internacional. Temos que repensar quais organizações são relevantes ou não. O que pode ser feito melhor? Por exemplo, recolher corpos em territórios onde estão a acontecer combates. Sabemos que de acordo com a Lei Internacional Humanitária, ambos os lados têm de parar os bombardeamentos. Cada um recolhe os seus cadáveres, dos seus soldados ou civis, para os seus territórios e continuam os combates. Na realidade isso não funciona. Conheço localidades onde familiares não conseguem recolher os corpos dos seus entes queridos durante meses. (…) Acho que está na altura de repensarmos e criar novas estruturas que vão funcionar não só na Ucrânia, mas que serão relevantes em todo o mundo. Estou farta de viver num mundo onde não podemos fazer nada contra a guerra que está a acontecer.

E qual é a sua opinião em relação à ONU e à postura do Secretário-Geral?

Acho que também temos de repensar a estrutura da ONU. A forma como foi criada, foi depois da Segunda Guerra Mundial. A situação política era muito diferente. E a posição da Rússia em si era muito diferente do que aquela que vemos agora.

Qual será o futuro da Ucrânia?

Acho que a guerra irá acabar, um dia. Espero que termine em breve. Vamos precisar de algum tempo para pensar sobre o que passou. Para pensar nos que foram mortos. Vai ser um trabalho imenso reconstruir o país. Mas nós ucranianos mudámos. Estamos a pagar com as nossas vidas e as vidas dos nossos. Este país tem que se tornar democrático. Um país europeu, assente nos valores europeus.

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